A paciente procurou a psicoterapia com um pedido claro e direto: “- Preciso que me ajude a não perder a calma”. Relata que seu esposo realizou um transplante a algum tempo e neste momento apresenta sintomas complicados. “Ele não tem apetite, quando se alimenta a comida volta. Ele vomita. Eu constatei que estou perdendo a paciência pois cozinho todos os dias. Ele sempre comeu bem. Almoço e jantar, comidinhas diferentes e leves pois não é qualquer coisa que ele pode comer”. Após este relato repete o pedido “- Não quero perder a paciência com ele. Sei que é só uma fase. Ele vai ficar bom e as coisas voltarão a ser como antes”. O casal está junto a mais de trinta anos tem dois filhos bem encaminhados que já trabalham, namoram e praticamente não ficam em casa. Em virtude do adoecimento do pai o filho assumiu a empresa familiar e a noite trás questões do trabalho para discutir com ele, quando isto é possível. No início do processo, contou sobre a descoberta da gravidade da doença e a necessidade do transplante. Narrou a angústia pela espera para obter um orgão compatível. Descreveu a alegria em receber a noticia de que a cirurgia estava marcada, assim como a certeza que construiu no pós-cirúrgico de que o pior já havia passado e que tudo ficaria bem. A partir deste instante o grande problema passou a ser os vômitos e a falta de apetite do marido. A paciente no ápice de seu desespero não queria sentir a que estava sentindo. Acreditava que sua raiva se originava ao fato de que ele não aceitava seu carinho em forma de comida. Poucas sessões foram necessárias para que a paciente concluísse que sua raiva encobria um medo de que estes sinais representassem sintomas de rejeição. O organismo do marido poderia estar rejeitando o órgão recebido e isto significaria o fracasso do procedimento e em última instancia tal situação poderia levá-lo a morte. A psicoterapia atravessou um momento de grande densidade e o trabalho que se sucedeu foi extremamente difícil. O medo da paciente cresceu quando a febre do marido surgiu mais forte. Tal situação levou a nova internação. Este fato, teve como consequência, um afastamento das sessões, porém, não do processo. A paciente entrou em contato comigo e solicitou um encaminhamento para uma psicóloga que pudesse atender o marido. Tal atitude demostra o reconhecimento dos efeitos iniciais do seu tratamento. O encaminhamento não se fez possível pois a situação se agravou. Ele foi transferido para a UTI e faleceu. Em uma conversa com ela afirmei que estava esperando pela sua volta a psicoterapia. Em prantos responde: “- O que é que vou fazer lá? Nada mais faz sentido. Acabou”. Respondi então que ela poderia falar sobre a sua dor e sobre seu sofrimento. Após um curto espaço de tempo a paciente aceita o convite e retoma o percurso, porém, em outra direção. Decididamente põe-se a trabalhar sobre a dor, a tristeza e a perda deste homem que tanto amava. Falava sobre o vazio que ficou, a dificuldade em dormir e acordar sem a presença dele. Vivia uma dor tão dilacerante que a fazia temer até chorar. A paciente acreditava que se começasse a chorar não conseguiria mais parar. Aos poucos, através da minha presença pude ir acompanhando estes medos iniciais e criando o espaço e as condições necessárias para que a paciente pudesse se expressar, chorar, gritar, apresentar a si mesma, seu desespero e a sensação de total falta de sentido da existência. Ela questionava: “- Chorar? para que? Isso não vai mudar nada. Chorar não traz de volta. O que mais me apavora é que nunca mais o verei”. Esta expressão, nunca mais, transformou-se no primeiro objeto de trabalho da paciente. Segundo suas próprias palavras, é exatamente o que ela não conseguia digerir. Ela chorava. Chorava muito pela falta do marido, a falta do pai dos filhos, a falta do homem que a ouvia e a aconselhava, a falta de sentido da vida sem ele. O que fazer diante deste enorme vazio? A família e os amigos são muito importantes nesta hora. Entretanto, enquanto ela se debatia intensamente com a dificuldade de aceitar que ele não estava mais, com a impossibilidade de remover as roupas dele do armário, de olhar para uma foto, eles começaram a pressioná-la. “- Você é muito nova. Vai encontrar alguém. Vai casar de novo”. Ela sabia que era uma tentativa de tirá-la do sofrimento, porém, isto só aumentava sua dor. Expressava sua indignação da seguinte forma: “- Como as pessoas acham que vou encontrar outro para colocar no lugar do amor da minha vida?”. Estas palavras indicavam a direção a ser seguida no tratamento. Elas possibilitaram a construção de uma certeza, uma convicção que acompanhou todas as suas sessões: Por mais difícil que fosse estar junto de sua dor, não poderia tentar afastá-la, tirá-la ou distraí-la. A tarefa do tratamento consistia em suportar o insuportável. Ouvir aquilo que ela realmente desejava expressar: Sua dor, sua tristeza e sua solidão. A psicoterapia se transformou no único lugar onde tal condição poderia se tornar possível. Por outro lado, no seu cotidiano, a insistência das pessoas persistia… Tarefas, trabalhos, atividades voluntárias, qualquer coisa, diziam… A paciente, por sua vez, se perguntava se ela realmente precisava encontrar uma atividade, uma ocupação, uma distração. Seu interesse era entender como seguir a própria vida uma vez que nunca havia pensado em seguir em frente tão precocemente e sem alguém tão importante para ela. Queria pensar, chorar e especialmente ansiava por um lugar de proteção, como uma caverna para se refugiar aos moldes de um animal ferido. Tratar seus ferimentos e um dia, quem sabe, sair do seu refúgio. A psicoterapia possibilitou e criou esta caverna. Lugar onde a paciente questionava seus sentimentos seu medo de criticas ou julgamentos. Sem pressões. Um dos grandes riscos para um psicoterapeuta é que a tarefa de acompanhar esta dor dilacerante passo a passo pode tocar, em eventuais marcas, traumas, dores que o mesmo possui. É importante que ele perceba, identifique e assim possa lidar com seus sentimentos, para não cair na armadilha de tentar acelerar um processo que exige muito trabalho e tempo de elaboração. Um exemplo deste apressamento seria encaminhar a paciente para utilizar uma medicação. Cabe a pergunta de a quem o psicoterapeuta estaria encaminhando? Seria realmente necessário e possível tentar amortecer esta dor, esta tristeza? A tristeza não é um afeto patológico. Ela integra a gama dos sentimentos humanos. A patologia está na exacerbação de sua potencialidade. Da mesma forma, na tentativa de fuga, ou, na recusa e/ou possibilidade em senti-la. Certamente, a tristeza pode ser um caminho para ajudar o paciente a acessar o desconhecido que o habita. Parafraseando o poeta, Nelson Cavaquinho. “Tire seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”. A evolução do processo psicoterápico conduziu a paciente lentamente a encontrar o que lhe proporcionava um mínimo de conforto: A leitura de romances irreais, caminhadas para exercitar o corpo – e não passar o dia todo deitada na cama e a frequência às sessões de psicoterapia. O passo seguinte do processo foi marcado pelo surgimento de indignação. Tal sentimento verificou-se no mal estar surgido em situações que outrora eram confortantes. Exemplos disso puderam ser expressos pela paciente nas seguintes perguntas: – “Como eu nunca pensei que isso poderia acontecer? Como pude ficar calada quando me disseram que eu iria encontrar alguém? Por que não desliguei o telefone quando me ligavam para falar da dor pela ausência do meu marido? E a minha dor? Sua indignação, oriunda de sua passividade e pela constatação de que ninguém de sua convivência seria capaz de escutá-la levaram ao definitivo e derradeiro engajamento no processo psicoterapêutico. Aos poucos, reconhece a importância de possuir um lugar para falar sobre o que lhe aprouvesse e não para agradar alguém. Narra as dificuldades em atravessar as datas comemorativas, aniversários, natais, páscoa, comemorações de campeonato de futebol e festas de casamento. Refez o percurso de sua vida com ele do primeiro ao último encontro. Casou-se muito jovem, e, juntos batalharam pelo relacionamento construído a duras penas e longas batalhas. Esta caminhada decidida e constante possibilitou a ela um grande desenvolvimento como ser humano. As crises não estiveram ausentes do relacionamento, inclusive as financeiras. Próximo ao adoecimento do marido, concluíram a construção da casa ideal, que agora sem ele estava completamente vazia. Sem a presença dele muita coisa não fazia mais sentido, arrumar-se por exemplo. Ela procurava fazer isso para ele, para agradá-lo e isso a deixava feliz, pois, reconhecia o quanto ele estava gostando. Em determinado momento, concluiu que não fazia mais sentido manter as roupas dele dentro do armário e precisava de forças para retirá-las. Quando o choro cessava, aos poucos, lentamente separava algo e organizava cuidadosamente o que faria com cada peça de roupa. Cada peça tinha uma história desde a aquisição até a aparência dele quando as usava. O trabalho com o luto levou a um afastamento de integrantes da sua família, especialmente aqueles que não conseguiam compreender nem respeitar seu sofrimento. Ela desenvolveu este ponto em inúmeras sessões, a que reforçava a ideia de caverna. Um lugar seguro para curar suas feridas. O processo psicoterápico possibilitou que ela entendesse que era impossível evitar algumas obrigações, porém, questionava a real necessidade de determinados atos como visitar os pais, sair para jantar com familiares. O processo a conduziu a momentos cruciais de seu passado. Um aborto espontâneo no inicio do casamento. Outras dores antigas também foram trabalhadas, mas, nada era mais difícil do que a tristeza atual: Vivia a pior de todas as dores. Aproximadamente, após um ano do início do processo a paciente afirma que a dor continuava a mesma. Ela não diminuíra. Conheceu sua capacidade de suportá-la, falar dela e continuar vivendo, tornava-se sua grande aliada. Zelar pelos filhos, acompanhá-los, e preservá-los, para não sufocá-los ou prendê-los em função de seu sofrimento. Encontrou atividades que objetivavam apenas passar o tempo, como fazer bijuterias ou tear. Esta atividade relativamente simples e aparentemente inocente como juntar pecinhas para fazer um colar, soaria uma ofensa aqueles que por ventura avaliassem a capacidade intelectual do paciente. Entretanto este movimento transcendia o simples ato e cabe ao psicoterapeuta não julgar nem interferir, pois, era para ela de fundamental importância. Frente às inúmeras pressões que surgiram no sentido de recomeçar a vida construiu uma resposta radical: Tatuar no seu braço algo que remetia definitivamente ao esposo. Este gesto acalmou a dor da falta. O mundo contemporâneo cobra resultados, respostas rápidas, não tolera demoras e erros. Tal grau de exigência impede o que está surgindo ou o processo de acontecer. A prática clinica é um lugar que existe a parte desta pessa por resultados, por produção em nossa ou em série. A clínica funda a possibilidade de um encontro que poderá produzir efeitos. A condição fundamental para que isso venha a acontecer reúne a criatividade genuína e simples de escutar alguém, sem regras ou direcionamentos de fale sobre isso ou aquilo. Quando tudo isso acontecer uma verdadeira troca de aceitação e entrega se efetua. Acompanhando este processo compreendi que a dor não é a perda, pelo contrário, a dor é o capital, a perda é irrecuperável, porém, a dor, esta nos ensina e proporciona juntamente com espaços de solidão um inigualável momento para um verdadeiro encontro consigo. Todo o processo de elaborar a relação com o marido, a vida sem ele, o seu lugar no mundo, a relação com os filhos, a própria finitude foi feito e refeito inúmeras vezes. Num ir e vir, semelhante a confecção de um tear ou de uma bijuteria. Todo esse trabalho possibilitou a paciente a abertura para o que a vida ainda podia lhe oferecer. Desta ela recebeu um presente que não aceitou de pronto e nem imediatamente, também aí fez-se necessário uma construção. A Avó. Um novo lugar no mundo a esperava e ela se dispôs a ocupá-lo. Diante disto a paciente apresentou a questão de interromper o processo após alguns anos. Perguntei se já estava pronta para sair da caverna. Com um sorriso ela respondeu que sim e que já havia percebido a beleza no céu e o calor do sol.
Tristeza – Afeto Patológico?
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