Trauma: um diálogo aberto entre a Psicologia

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Introdução

Creio que tudo está conectado, que hácerta teia de aranha láfora. E nessa teia de aranha todo o universo estáconectado .O passado, o futuro, o universo, os planetas, toda forma de vida estáconectada. (Isabel Allende)

A prática da psicologia clinica vem acompanhada por reflexões, discussões e estudos sobre a relação entre doenças e fatores emocionais. Este éum tema que habita o cotidiano da clinica, jáque os clientes que nos procuram freqüentemente apresentam sintomas físicos como dores, fadiga, insônia, acompanhados de angústias, ansiedades e outras queixas. Especulações sobre a relação entre doenças e fatores emocionais jáaconteciam em tempos remotos na nossa história e, especialmente no Oriente, Mente-Corpo-Emoções se mantiveram como um sistema unitário, indissociável e interdependente. Nas sociedades ocidentais o enfoque mecanicista foi predominante e influenciou todas as áreas do conhecimento gerando uma visão fragmentada do Homem e do seu mundo. O pensamento vigente mantinha corpo e mente completamente cindidos, separados e sem comunicação entre si. No estudo e tratamento das moléstias privilegiava-se o aspecto somático, assim se o mal estava no corpo nele centrava-se o cuidado e a observação. São recentes os estudos sistematizados sobre o tema adoecimento e emoções, pode-se dizer que o interesse sobre este assunto éretomado a partir do século XIX quando a Psicologia vai discretamente despontando nas rodas da ciência da época. Alguns psicanalistas interessaram-se em estudar esta relação e no presente estudo meu foco recairásobre o pensamento de Wilhelm Reich, precursor das “psicoterapias corporais”, especialmente das duas abordagens que a seguir me dedicarei a tarefa de propor uma interlocução: a Psicologia Biodinâmica de Gerda Boyesen e a Somatic Experiencing de Peter Levine. Reich dedicou-se a desvendar a dinâmica psíquica vinculada ao somático. Sua abordagem, a vegetoterapia carátero-analítica, origem das duas linhas acima mencionadas, pretendia um enfoque corporal para atingir os conteúdos recalcados, influenciando o sistema nervoso autônomo (antigo neurovegetativo). Sua idéia era que o humano constitui-se numa “unidade funcional psique-corpo”, isto é, agimos e reagimos de forma única: uma situação de ameaça faz contrair o corpo e sentir medo. As doenças aparecem quando esta unidade éafetada, se desorganiza e cinde, desencadeando doenças somáticas ou transtornos psíquicos. A psicoterapia corporal propõe uma reorganização da unidade funcional, fazendo uso da escuta analítica, de trabalhos com a respiração, de movimentos expressivos e de intervenções na musculatura voluntária, propondo-se a restabelecer a saúde mental, a vitalidade e a pulsação naturais das pessoas tratadas. Reich deixou vários seguidores que fundaram suas escolas. Na esteira do seu pensamento temos a Psicologia Biodinâmica que, fazendo uso da massagem na musculatura, no periósteo, no tecido conjuntivo ou na pele, pretende, assim como Reich, influenciar o sistema nervoso autônomo, restituindo a capacidade humana inata de autorregulação.

Sabemos que toda recordação do conteúdo de uma idéia recalcada produz também alívio psíquico. Contudo, este alívio não constitui uma cura, como julgam os leigos. Como se produz este alívio? Sempre defendemos que ele éproduzido por uma descarga de energia previamente ligada. Deixemos de lado o alívio e a sensação de satisfação que acompanham cada nova realização. A tensão psíquica e o alívio não podem existir sem uma representação somática, porque a tensão e o relaxamento são estados biofísicos…Mas seria errado falar na transferência de conceitos fisiológicos para a esfera psíquica, porque o que temos em mente não éuma analogia e sim uma identidade real: a unidade da função psíquica e somática.(Reich, 1998, p. 315)

Porém, nem Reich nem Boyesen possuíam os recursos técnicos que ora dispomos para verificar cientificamente os resultados obtidos na clínica. Suas teorias são falhas, ficam aquém dos resultados práticos. A abordagem de Peter Levine émais recente e possui uma fundamentação teórica sólida e consistente para referenciar o que acontece, em termos de sistema nervoso autônomo, quando um organismo se depara com situações acima de sua capacidade de processamento. O foco deste trabalho écriar um diálogo entre duas abordagens corporais que constituem importantes ferramentas na minha prática clinica. A idéia éfomentar reflexões sobre a possibilidade de integrar certos princípios e práticas da Psicologia Biodinamica e da Somatic Experiencing e usá-los nos casos em que queixas e sintomas apontam para vivências traumáticas.

Trauma Uma visão geral

Existem variados estudos sobre Trauma, alguns compartilham dos mesmos pressupostos e outros apresentam idéias e explicações diversas sobre este tema, mas em um apecto eles convergem: o de que a pessoa traumatizada sofre pelos efeitos deste choque. Os sinais e sintomas aliados ao sofrimento citado, podem ser observados sob o aspecto psico-emocional ou pelo aspecto corporal, conforme o modelo conceitual usado nesta observação. Assim, a ciência médica e afins estaria mais voltada às pesquisas envolvendo a fisiologia diante dos efeitos e respostas ao trauma, enquanto as ciências psicológicas dariam ênfase aos danos emocionais provocados pela situação traumática. Esta separação se fez presente até alguns anos atrás, mas a aproximação entre as Ciências, a expansão do conhecimento das Neurociências, Neuropsicologia, Neuropsicoimunolgia e outras, prepara uma mudança na compreensão do Trauma e seus efeitos na vida humana. Com a decadência do modelo dicotômico Mente – Corpo e aceitação do Organismo Humano como uma unidade multifuncional, os estudos sobre Trauma avançam e este evento que atravessa a existência humana ganha espaço, respeito e importância em todas as abordagens que tratam do sofrimento do Homem. A palavra Trauma origina-se do Idioma grego, “Trávma”que significa ferida e Travmatismo, a ação de ferir. Na área médica este termo é usado para designar injurias no corpo enquanto no campo psíquico refere-se a situações nas quais o indivíduo perde a sua capacidade de defesa. O Trauma psicológico ganha destaque quando Freud relaciona os sintomas da Histeria à situações traumáticas vivenciadas anteriormente por suas pacientes. Segundo Freud, o trauma acontece quando diante de um aumento na corrente de excitações o indivíduo vivencia sentimentos avassaladores de impotência que produz um registro, uma cicatriz no aparelho psíquico. Encontra-se no Dicionário Enciclopédico de Psicanálise – O Legado de Freud e Lacan, a observação de que Freud enfatiza a relação entre trauma e os estados de impotência ou desamparo do organismo e que o fator individual subjetivo seria o responsável pela diferença de reação dos sujeitos diante de uma mesma situação catastrófica. Assim, o evento real passa a ser entendido simplesmente como o gatilho que desencadeia o desequilíbrio do organismo e o trauma como o efeito produzido por esta ocorrência ( evento) no domínio psíquico do sujeito.

O Trauma ocupa um lugar historicamente fundamental em Psicanálise…estão ligadas ao trauma as noções capitais da amnésia e do recalcamento…do latente e do manifesto. A ênfase é posta sobre o aspecto energético econômico do processo: as experiências traumáticas devem sua força patogênica ao fato de produzirem quantidades de excitação grande demais para serem processadas pelo aparelho psíquico (Kaufmann- 1996 – p. 558)

A Hipnose como método cartártico foi a primeira terapêutica utilizada com o propósito de fazer lembrar e reviver a cena traumática. Mas os resultados logo mostraram-se falhos e insuficientes, pois os sintomas decorrentes do trauma voltavam a incomodar. O tema Trauma atraiu a atenção de muitos autores além de Freud, dentro da história da psicanálise cujos estudos sugerem diferentes abordagens e visões. Podemos citar duas grandes tendências: ” Por um lado a atenção conferida ao evento traumático, à sua realidade e a seu reconhecimento pelo terapeuta; por outro, a preferencia dada à atividade fantasística, na ordem da realidade psíquica, em torno do evento em questão.” (Kaufmann,1996, p. 559). O Trauma em seu aspecto psíquico gera fixações que persistem e levam à repetição, reenviam o sujeito ao evento traumático, provocam sintomas e prejudicam o seu desenvolvimento. Ciente disto, Freud em ” Recordar, repetir, elaborar”, conclui que atrair para a consciência a lembrança da situação catastrófica, reviver repetidamente a emoção provocada, não garante a cura do trauma. É preciso elaborar a lembrança reconstituída. (Freud, 1914, p.146) A Psicanálise passa a influenciar o enfoque e a terapêutica para lidar com sobreviventes de grandes tragédias como as geradas pela segunda guerra mundial, incluindo os traumas ligados ao desenvolvimento humano, como a separação da mãe – trauma ” arquioriginário” sugerido por Ferenczi, recebem a atenção desta Escola. No panorama do pós-guerra novas abordagens de psicoterapia começam a surgir, dentre elas as psicoterapias corporais de herança reichiana. A introdução do corpo na compreensão e intervenção das questões psico-emocionais oferece renovados recursos ao estudo das patologias decorrentes do trauma em humanos. Peter Levine, idealizador da Somatic Experiencing -SE uma abordagem naturalista para estudo do trauma, afirma:

…o trauma não é, não será, e nunca pode ser plenamente curado até que nós abordemos o papel essencial representado pelo corpo. Temos que entender como o corpo é afetado pelo trauma e sua posição central na cura de suas conseqüências. Sem essa base, nossas tentativas de dominar o trauma serão limitadas e unilaterais. (Levine, 1999, p.15)

 

Somatic Experiencing O trauma no cenário do corpo

A Somatic Experiencingéfruto de mais de trinta anos de estudos sobre estresse e trauma, desenvolvidos pelo Dr Peter A. Levine Ph.D em física médica e biológica e doutor em psicologia. Neste percurso em que busca desvendar os mistérios do trauma, Levine envereda seus estudos pelos campos da fisiologia, ciência neurológica, etologia, matemática, filosofia, psicologia e outros. Assim constitui-se o método e modelo da Somatic Experiencing, abordagem corporal que lida com os efeitos do trauma em seres humanos. “Por que os animais não se traumatizam?”Esta questão parece ter aberto um caminho novo que traz `a cena do trauma nossa biologia, nossa fisiologia, nossa semelhança com os animais de quatro patas, como veremos mais adiante. Na apostila do curso de SE para iniciantes em 2012, Levine define trauma como um acontecimento em que o organismo éforçado acima da sua capacidade adaptativa de regulação dos estados de ativação do sistema nervoso. Ocorre uma desorganização do sistema nervoso que falha, não consegue recuperar completamente seu equilíbrio. Disto resulta um estado de fixação global que leva àperda da capacidade rítmica de auto-regulação e dificuldade para orientar-se no presente, bem como redução na capacidade desfrutar a vida com fluidez As vítimas de um evento traumático convivem com um constante estado de medo, sentimento de impotência, perda de controle, ameaça de aniquilamento.Sua capacidade de adaptação `a vida torna-se limitada e os sintomas físicos e emocionais a mantém aprisionada em um ir e vir de acontecimentos que se repetem e constroem as grades desta prisão. O choque traumático ocorre quando uma pessoa passa por experiências que potencialmente colocam a vida em risco e superam a sua capacidade de responder de forma eficaz ao evento. Portanto, o que mais importa nesta visão não éo evento em si, não éa catástrofe, mas o efeito, o registro arquivado no sistema nervoso de quem sofreu o trauma. Segundo Peter Levine “O trauma éum fato da vida, mas não precisa ser uma condenação perpetua”. (Levine, 1999, p.15) O Trauma nos rodeia rotineiramente por vivermos sob um sistema que exige de nós: perfeição, alta performance, pede que sejamos frios nas decisões e éimplacável com nossas falhas. Soma-se a isto o efeito da violência que nos invade através das noticias e dos acontecimentos graves e próximos a nós, ou aproximados pela mídia. Os eventos traumáticos mais comuns são os acidentes, doenças graves, cirurgias, procedimentos médicos e dentários invasivos, assaltos, experimentar ou testemunhar violência, guerras, desastres naturais, etc. Eles podem acontecer durante o período de vida adulta ou mesmo na infância, interferindo no desenvolvimento. Neste caso, são chamados, por esta abordagem, traumas de desenvolvimento. Os traumas de desenvolvimento em geral decorrem de negligência ou inadequação dos cuidados ou orientação dada àcriança, e deixam marcas psicológicas que interferem negativamente no desenvolvimento do ser adulto. Traumas de choque são os que superam a capacidade que o organismo tem naquele momento de dar resposta adequada àsituação. Parece que a saída para este mundo traumatizado éencarar a força destrutiva do trauma, liberando o potencial inato para cura que éo caminho natural do corpo e pode ser observado nos animais selvagens. Diz Peter Levine:

…existe um organismo que tem sensações e sentimentos, que conhece e vive… Este corpo vivo, uma condição que compartilhamos com todos os seres sencientes, nos informa de nossa capacidade inata para nos curar dos efeitos do trauma…aprender a utilizar e transformar as energias surpreendentes, primordiais e inteligentes do corpo…(Levine, 1999, p.16)

O que nos impede então de acessar esta força natural? Por que sofremos com o estresse pós traumático? O que faz com que nossa capacidade de auto-regulação fique prejudicada? Gerda Boyesen, criadora da abordagem corporal que leva o nome de Psicologia Biodinâmica, parece ter sido tocada por estes mesmos questionamentos. Ela estrutura sua teoria sobre ciclo vaso-motor, circulação emocional percebida ao nível do sangue, a partir das ideías de Freud e Reich:

Freud…postulou seu princípio de constância, isto é, recebido um estímulo ( carga) nossa resposta seria procurar uma descarga para voltar ao estado de relaxamento. Reich viu no orgasmo a tradução perfeita para esta fórmula e sua curva orgástica, ao revelar a potência orgástica, era a medida de saúde(Forlani, 2014)

Quando este ciclo de carga e descarga não se completa o organismo tende a acumular resíduos metabólicos nos tecidos corporais e estes passam a funcionar como uma barreira `a livre circulação da energia vital, interferindo na capacidade de pulsar e manter a saúde. Gerda chama o choque traumático de “Reflexo de sobressalto”, nele o corpo se contrai, a musculatura lisa fica fora de ação, a liberação das tensões através das vísceras ésuspensa, assim como a distribuição da energia. No seu trabalho com massagem, ela notou que era comum surgirem sons peristálticos na medida em que o massageado ia saindo do estado de estresse. “Descobri que o corpo tem seu próprio mecanismo natural de eliminação e regulação. O peristaltismo tem como função dissolver e eliminar a tensão nervosa.”(Boyesen,1986, p. 86) Hoje, uso do estetoscópio sobre o ventre, uma rotina na prática da massagem biodinâmica, pode ser explicado através do conhecimento maior sobre o funcionamento do sistema nervoso. Sabe-se que o intestino tem um sistema nervoso próprio: o Sistema Nervoso entérico.

A psicoperistalse é um instrumento de saúde, de auto-regulação, descarga energética daquilo que restou em estase, seja nos inúmeros ciclos vaso-motores incompletos, seja dos reflexos de sobressalto…Trabalhando com a aperistalse podemos equilibrar o que éretido e o que émobilizado para acrescentar ao trabalho de análise de conteúdos recalcados, dos sonhos etc. Possuímos mais controle sobre o que podemos integrar e o que émais ameaçador: o quanto de energia pode entrar em circuito sem a inundação do eu.( Forlani, 2014)

 

Humanos e mamíferos Similaridades

Peter Levine busca na etologia um caminho para desvendar os mistérios do trauma. Exponho aqui uma cena apresentada em vídeo nos treinamentos em SE e descrita no livro O Despertar do Tigre e apostilas do curso. A idéia éilustrar as semelhanças e diferenças na forma como nós e outros animais solucionamos as situações de grande ameaça, o que háde comum pela herança biológica e também algumas diferenças que pela evolução reside na nossa fisiologia.Seguindo esta linha de pensamento, o corpo entra como tema central ou pelo menos alterna este privilégio com a mente. O que faço agora não éuma transcrição literal do que assisti e li, mas vou recontar a cena descrita na íntegra na página 27 do livro O Despertar do Tigre. Numa savana uma manada de impalas alterna sua atenção entre o pasto e os movimentos ao seu redor. A mudança do vento, cheiros novos, ruídos, a tudo isto os Impalas reagem, observam e voltam àsua atividade, relaxados e vigilantes quando não sentem perigo nestas manifestações da natureza. A cada estímulo, seja a passagem de um pequeno animal ou o simples som das folhas se movendo, épercebido pela manada; todos param, retesam os músculos e o corpo entra em prontidão perscrutando o perigo. Tal comportamento se dedica a avaliar a situação e aumentar as chances no caso de uma fuga rápida. Espreitando o ambiente, um chita aguarda o melhor momento para dar o bote. No momento do ataque, ao saltar em direção `a sua presa, o chita vêtoda a manada entrar rapidamente em disparada de fuga. Um dos impalas, poucos segundos mais lento do que os outros, passa a ser perseguido pelo predador. O animal tenta fugir, mas éabatido pelo chita. No entanto, uma fração de segundos antes de ser atacado, imediatamente antes de ser ferido, o impala cai no chão, entregue como morto. Esta reação, conhecida como resposta de imobilização éuma estratégia de sobrevivência de último momento, que evita o sofrimento pela dor e ainda dáuma chance para o animal fugir do predador caso este perca seu interesse por aquela presa. O Sistema Nervoso de répteis e mamíferos oferece três respostas primárias frente àsituações avassaladoras: lutar, fugir e imobilizar ou congelar. No congelamento o animal entra em um estado alterado de consciência que suprime a dor. Étambém uma reação semelhante ao “fingir-se de morto”. Caso o predador entenda que aquela presa jáestava morta éprovável que se desinteresse e váembora ou fique afastado observando, o que daria a chance do “morto” levantar-se e rapidamente empreender uma fuga. Passada a ameaça o animal perseguido restabelece seu equilíbrio e sua vida logo depois do corpo atravessar uma série de reações fisiológicas como: arrepios, tremores e respiração naturalmente profunda, cuja função éeliminar os efeitos e resíduos do trauma no organismo e preparar o animal para retomar sua rotina. No animal humano este mesmo conjunto de respostas édesencadeado após uma situação de ameaça. Tanto quanto nos outros animais, nosso corpo éconvidado a passar por tremores, estremecimentos, ondulações, arrepios, reações vigorosas que fazem parte do processo inato que reinicia o sistema nervoso após a passagem pelo evento traumático.

Estas rotações e ondulações são formas pelas quais nosso sistema nervoso se livra da última experiência estimulante e nos “ancora”, deixando-nos preparados para o próximo encontro com o perigo, a excitação e a vida. São mecanismos que ajudam a restaurar o equilíbrio depois de uma ameaça ou de uma grande agitação…tais reações fisiológicas estão no âmago da auto-regulação e resiliência… (Levine , 2012, p.30)

Segundo Peter Levine, a resposta de congelamento éo fator mais importante na descoberta do mistério do trauma humano, pois nela residem os entraves que impedem o restabelecimento natural do fluxo da vida após o trauma, promovendo os sintomas comuns ao TEPT-Transtorno de Estresse Pós-Traumático.

Lute, fuja, congele As três respostas fisiológicas

Diante de uma situação de perigo a ordem emitida pela nossa biologia é: lute, fuja ou congele.

Nosso cérebro primitivo manda esta informação ao nosso sistema, desencadeia-se uma resposta instintiva carregada de força curativa e restauradora, capaz de proteger o organismo dos efeitos crônicos do trauma. Nosso organismo estápreparado para enfrentar os desafios do cotidiano, assim como os animais na savana; nosso corpo e nossa mente estão naturalmente equipados para lidar com as situações estressantes. Mas, quando a situação éexcessiva, intensa demais e a descarga impedida de se manifestar, a energia mobilizada para lidar com a situação mantém-se aprisionada no sistema desencadeando os sintoma traumáticos. As reações de luta e fuga mobilizadas na presença de uma ameaça mas impedidas de se completarem deixam um registro no sistema nervoso e interferem na capacidade natural de auto regulação. O cérebro humano éum órgão de grande complexidade e pode ser estudado sob variadas abordagens.Seu funcionamento foi sempre um desafio ao conhecimento. Registros contam que na antiguidade o médico Grego Alcmeon procurou estabelecer a conexão entre os órgãos dos sentidos e o cérebro.Depois dele, outros como Hipócrates, Galeno, Paracelso, Vesalius, Descartes, ocuparam-se com este tema e deixaram sua contribuição. Mas o estudo sistemático e as grandes descobertas sobre este órgão são bem mais recentes, a maior parte delas aconteceu do último século para hoje, um avanço em paralelo com as tecnologias. No Campo das Neurociências as recentes descobertas seguem ao lado de áreas como: filosofia, psicologia, antropologia; interessadas em levantar as bases biológicas do comportamento. Os estudos e pesquisas derrubam qualquer aproximação entre o cérebro humano e os computadores criados pelo homem. Na contra mão deste pensamento colocam a distância devida ao afirmarem que o cérebro écomposto por mapas neurais. Neste trabalho vou acompanhar as idéias de MacLean sobre o cérebro Trino, dividido em Reptiliano, Límbico e o Neocortical ou Racional, a partir da evolução do tronco cerebral ao Neocórtex. Segundo este anatomista, evolutivamente o cérebro humano divide-se em três, do mais antigo ao mais recente: Reptiliano, Límbico e Neocortical.

… a evolução do cérebro humano, de acordo com MacLean, processou-se àsemelhança de uma casa àqual novas alas e superestruturas foram adicionadas no decorrer da filogênese…O homem foi assim provido de um cérebro mais antigo, semelhante aos répteis, de outro, herdado dos mamíferos inferiores; e de um terceiro, aquisição dos mamíferos superiores, o qual atinge seu máximo desenvolvimento no homem, dando-lhe o poder ímpar de linguagem simbólica. (citado por Marino, 2005, p.57)

O cérebro reptiliano éa sede dos instintos. Nele estão codificadas as estratégias instintivas que asseguram a sobrevivência das espécies bem como o controle de todas as funções vitais e involuntárias do organismo. Neste cérebro reside a natureza animal, biologia pura, sobre a qual se edificou toda a vida superior. Todas as estratégias defensivas, geneticamente programadas, encontram-se codificadas nestas estruturas arcaicas.Responsável pelos comandos da vida, suas estruturas regulam os estados internos por meio do controle autônomo das vísceras e circulação sanguínea: sono/vigília, respiração, temperatura, batimentos cardíacos, digestão, sexualidade, movimentos involuntários, input sensorial e também pelas reações físicas básicas ao perigo, ou seja, reações de luta, fuga e congelamento. Os animais regidos pela lei do instinto tem uma vida simplificada na qual o instinto cuida de tudo, os dias, as estações, o tempo que se sucede em ciclos de comportamentos e se mantém pelo sucesso da sua funcionalidade. O instinto ésomente instinto, controla a demanda por comida, abrigo e de um parceiro para continuar a espécie. Nada para lembrar, planejar ou aprender, conforme ilustra Levine:

O inseto se arrasta na direção de um lagarto que toma sol num tronco. A língua do lagarto se move, o inseto se foi. O lagarto não pára para pensar se estácom fome. Não existem perguntas com relação a se o inseto estásuficientemente limpo para ser comido. O lagarto não se preocupa com a contagem de calorias ingeridas ao dia. Ele simplesmente come. Do mesmo modo que dorme, se reproduz, foge, congela , luta etc. A vida dominada pelo instinto ésimples… (Levine ,1999, p. 84)

A porção inferior do reptiliano, o tronco encefálico, estádestinada a interagir com o mundo exterior. Na situação de trauma este sistema nervoso arcaico écolocado em permanente estado de ativação, como se o organismo estivesse em perigo e por isso produzindo reações impulsivas e automáticas manifestadas em comportamentos que se alternam entre a hiperexcitação, o retraimento e a paralisia.

O cérebro primitivo se comunica por meio de sensações físicas, geradas por fontes externas e processadas em nossos cinco sentidos ou no interior do corpo. Ele não reconhece a passagem do tempo. O trauma écontagioso e a atração do vórtice do trauma émagnética. (Ross, 2014, p.29)

Caminhando pela escala evolutiva encontramos os Mamíferos que além do núcleo reptiliano tem desenvolvido o centro límbico, responsável pelos comportamentos emocionais e sociais complexos. O cérebro límbico éuma estrutura elaborada e representa um salto evolutivo, jáque oferece uma gama de comportamentos novos que complementam e ampliam os impulsos instintivos, dando aos mamíferos novos comportamentos e oportunidade de escolhas maior do que tem seus parentes os répteis. Esta camada étambém conhecida como Paleomamífero ou cérebro emocional, a partir do qual desenvolveu-se a memória e as emoções favorecendo a interação social e o aprimoramento da regulação interna do organismo. Neste segundo cérebro reside ainda a motivação e a atenção, além da memória emocional; sua expressão se dáatravés de imagens, metáforas e emoções.Sob sua regência estão todas a s funções sociais, os relacionamentos interpessoais, a formação de vínculos, a percepção do outro, ou seja tudo o que nos habilita a conviver em grupo. As emoções mediam a convivência em grupos e estar em grupos éuma estratégia que ampliou a possibilidade de sobrevivência. Uma manada de animais se comunica e funciona como um sócorpo frente ao perigo, pois informação sobre a ameça étransmitida e percebida por todos, estratégia que permite maiores chances de fuga.

O cérebro Límbico existe em todos os animais superiores ( inclusive em nós) e éo local primário dos comportamentos emocionais e sociais complexos que inexistem nos répteis. Esses comportamentos não substituem os impulsos instintivos que derivam do cérebro reptiliano; eles o complementam e ampliam. O cérebro Límbico recebe impulsos do núcleo reptiliano e elabora dados. Este salto evolutivo dáaos mamíferos mais escolhas do que os répteis . (Levine, 1999, p.85)

Nos estados traumáticos este centro emocional hiperativado sustenta reações defensivas de luta, fuga ou congelamento, mesmo quando não são mais necessárias. Este sistema Límbico influencia todos os circuitos cerebrais e os processos que emergem dele, e estáintrinsecamente conectado com o Neocórtex. Apoiado nesta base biológica instintiva e emocional, desenvolve-se o intelecto, cuja sede éo Neocórtex, nossa mais recente aquisição. Neocortex ou Neopálio éa formação mais externa e responde pelo controle, percepção, simbolização, linguagem e manipulação do ambiente externo. A memória conservada e organizada em eventos e cronologicamente colocados na linha do tempo, ou seja, a história contada em sequência, éuma função neocortical, bem como capacidade de ordenar, organizar, planejar. O surgimento do Neocortex faz nascer a consciência de si, o pensamento abstrato, a cognição e a linguagem. Estamos mais identificados com este último estrato cerebral, valorizamos o nosso intelecto e acabamos por esquecer que esta função refinada éfruto da evolução e não se manifesta independente das estruturas e funções desenvolvidas anteriormente. Nos seres humanos, instinto, emoção e intelecto se articulam para que um leque de escolhas esteja disponível nas situações que a vida exige.

Ele controla o uso da linguagem, as habilidades de comunicação e as funções cognitivas superiores, inclusive a aprendizagem, solução de problemas, escolhas, raciocínio, planejamento e flexibilidade. O Neocórtex também domina o movimento voluntário, sendo o centro de controle que regula as outras duas camadas do cérebro. (Ross, 2014, p.28)

Assim, linguagem, idéias e conceitos formam o idioma desta camada cerebral. Em situações traumáticas o dano se dájustamente na habilidade de discriminar ou de inibir a atividade das outras partes do cérebro, influenciando inclusive, na capacidade de auto-regulação do sistema nervoso. Nestes casos os processos de pensamento construtivo, a habilidade de resolução racional de problemas e a flexibilidade para adaptações fica completamente prejudicada. Nesta terceira e mais recente camada cerebral estão alocadas as áreas responsáveis pela associação sensorial. Quando ocorre um trauma as três camadas cerebrais perdem sua unidade funcional e passam a trabalhar desconectadas umas das outras e, esta falta de integração desorienta o sistema nervoso. A reintegração destas três partes pode ser alcançada a partir do rastreamento das sensações internas do corpo ( cérebro primitivo) pela consciência intencional que éuma atividade do Neocórtex. Sobre isto, Peter Levine afirma:

Pensamentos e sentimentos não são processos novos e independentes, divorciados da atividade visceral – sentimos e pensamos com as nossas entranhas. O processo digestivo, por exemplo, ésentido inicialmente na forma de sensações físicas ( fome pura), depois como sensações emocionais ( por exemplo fome como agressão) e, por fim, como refinamentos corticais no modo de assimilação de novas percepções e conceitos (como em fome de conhecimento e digestão de conhecimento novo. (Levine, 2012, p. 227).

 

Sensação e sensopercepção O idioma do corpo

Wilhelm Reich, pai das psicoterapias corporais, caracterizava a apreensão sensorial como um fenômeno essencial àexistência dos seres vivos, especialmente do Homem, jáque épor meio das sensações que cada ser percebe o ambiente que o rodeia bem como o que se passa no seu mundo interno. Como apontado no texto acima, a sensação éa linguagem da mente primeva, do cérebro reptiliano, que instalado nos subsolos da mente nem sempre encontra caminho aberto para a consciência. O organismo vivo estápermanentemente em contato e reagindo às mudanças do ambiente externo ou interno, todo tempo produzindo sensações emitidas pelos órgãos internos, em constante movimento.O corpo vivo sóperde o movimento na sua morte. Reconectar sensações, emoções e pensamentos parece ser um caminho para restaurar a saúde e bem estar daqueles que sofrem com os efeitos do trauma. Como dito anteriormente são as vítimas de situações em que a carga excessiva para o organismo, por não encontrar caminho para expressar-se mantém-se como energia aprisionada no sistema nervoso. Trabalhar o trauma élidar com a sobrecarga que foi provocada no organismo por um evento que aconteceu cedo demais, rápido demais ou foi intenso demais e impediu o organismo de defender-se ativamente: lutar ou fugir. Eventos menos importantes , mas que se repetem por períodos prolongados sem que o organismo tenha oportunidade de se recompor, também podem desencadear sintomas de traumas. Segundo a Experiência Somática, o trauma éfisiológico, funcional, trata-se de uma fissura na barreira protetora que organismo usa contra a super-estimulação. Este processo de defesa natural, cujas respostas são lutar, fugir ou congelar, éregido pelo sistema límbico-reptiliano. Os sintomas do trauma desenham um processo em espiral que se inicia nos mecanismos mais primitivos da nossa biologia e tem como centro o cérebro reptiliano, responsável pela resposta de imobilidade ou congelamento. Na esfera emocional, a resposta frustrada de luta desencadeia a raiva e a resposta frustrada de fuga se transforma em impotência. Mas estas não são posições fixas, neste processo o indivíduo pode transitar de uma àoutra posição, de um ponto a outro da espiral. Nosso sistema neurofisiológico esta articulado para restaurar a ruptura causada no sistema de defesa e para tanto, sua ferramenta éa autorregulação, a capacidade de restabelecer o equilíbrio do organismo. Gina Ross afirma que na cura do trauma deve-se buscar a consciência focalizada nas sensações internas para regular o sistema nervoso, restabelecer um fluxo saudável de energia no corpo e integrar nossos pensamentos e emoções. A Somatic Experiencing propõe um trabalho que privilegie o feltsense, traduzido como senso percepção ou sensações corporais internas. A proposta éque através da sensopercepção chega-se àbase fisiológica do trauma e que através da conexão entre as funções cerebrais superiores, como a consciência, e os mais primitivos instintos animais épossível ao ser humano transformar e curar o trauma.

Definição de Sensopercepção: De acordo com Eugene Gendlin, Ph.D., que criou o termo em seu livro, Focusing ( Focalizando), a sensopercepção não éuma experiência mental, mas sim física, uma consciência corporal de uma situação, pessoa ou evento. Uma aura interna que abrange tudo o que vocêsente ou sabe sobre um determinado tema num dado momento – abrange e comunica a vocêtudo de uma vez, em vez de detalhe por detalhe. Uma percepção gestáltica da experiência. (Apostila de SE, 1997, p.9)

A sensopercepção éum fenômeno não linear, difícil de ser apreendido em palavras e que diz respeito àcapacidade da consciência de reconhecer a sensação que estáocorrendo no momento, a sensação sentida. Éela, a sensação, quem nos informa a partir da consciência o que estáacontecendo internamente e como nos sentimos em relação a uma determinada experiência.

Pode-se dizer que a sensopercepção éo meio pelo qual experenciamos a totalidade da sensação…Todos os acontecimentos podem ser experenciados em sua dualidade, como partes individuais e como um todo unificado. Aqueles que são percebidos numa forma unificada pela sensopercepção podem trazer revelações a respeito de como desfazer o trauma. (Levine, 1999, p.69)

Michael Heller em seu texto ” Jellyfish ou o Mundo Reichiano de Gerda Boyesen –Parte I “, descreve sua experiência de totalidade:

Num determinado momento da minha vida, meditei e explorei a mim mesmo num mundo chamado Psicologia Biodinamica. Fechando os meus olhos eu focalizava a atenção em todas aquelas partes que estivessem entrando e saindo do palco da minha consciência. Vagarosamente descobri que não ésomente na frente de um espelho que posso descobrir-me como um todo, como uma Gestalt. Pois a medida que meus sentidos aprendem a escanear aquilo de que o mim éfeito, eu descubro uma unidade interna: um fluxo que eu suponho seja chamado vida. Um tipo de latejamento profundo interno do self que coordena os movimentos do meu corpo e sentimentos que ocorrem quando eu amo…como Gerda falava, éuma bio-lógica… (Heller, 1993, p.3)

Mas esta habilidade de experimentar conscientemente a totalidade da sensação ébem reduzida, subdesenvolvida, na maior parte dos adultos contemporâneos. Este homem da modernidade, desacostumado a viver em contato com as sensações com o seu feltsense, e filho da cultura ocidental que não ensina a experenciar e valorizar as sensações de forma integrada. Poucos são capazes de espontânea e conscientemente reconhecer este sentido e menos ainda são os que o cultivam. Segundo Levine, parte da dinâmica do trauma éque ele nos separa de nossa experiência interna, como um modo de proteger nosso organismo das sensações e emoções que poderiam ser excessivas. Perceber e percorrer as sensações éfazer contato com a linguagem do corpo e da mente, recebendo em tempo real as informações sobre o ambiente externo e interno. Tais informações são emitidas mesmo quando não estamos conscientes das nossas sensações e influenciam a nossa memória corporal. Temos um tipo de memória que éalcançada e tocada através do corpo échamada memória implícita, e outra, a memória explicita, acessada primariamente pela cognição. O corpo carrega uma sabedoria intuitiva, natural, que transcende a sabedoria mental e comunica informações diferentes das que o cérebro pensante costuma proporcionar. Assim, um organismo torna-se mais resiliente, mais fortalecido quando écapaz de integrar seus instintos primários com a capacidade humana de usar a consciência. Esta gestalt amplia a criatividade, promove as agradáveis experiências de paz, bem estar, conexão com o Self. A proposta de integração dos aspectos animais com os humanos aparece em várias mitologias através de representações como os centauros e outras criaturas, cujos corpos guardam parte animal e parte homem. Através das sensações experimentamos e reconhecemos estados que vão do conforto ao desconforto, do prazer ao desprazer, da constrição `a abertura. Voltando às idéias de Reich, o movimento de expansão, de abertura, em geral estárelacionado às experiências de prazer, ao passo que a angústia éexperimentada como contração. O medo faz encolher, a vergonha leva a esconder-se em si mesmo etc. Segundo Reich, a pulsação éuma capacidade inerente ao vivo de experimentar e transitar entre os movimentos de expansão e contração. Fortalecer padrões de cura sintonizando os impulsos instintivos sutis e os recursos fundamentais para a cura do trauma éabrir um caminho para a recuperação da habilidade inata do organismo: Pulsar. Destaca-se na literatura reichiana a noção de pulsação como no texto a seguir:

…pulsação se refere àquele quadro geral que diz que todos os animais quando estressados ou em perigo, tendem a contrair o seu corpo no espaço. Équando o corpo ocupa menos espaço possível. enquanto o prazer e a expressão são sempre acompanhados por uma expansão do corpo no espaço relacionada a um alcançar e a uma tendência a se movimentar na direção de um objetivo. (Heller,1993, p.6 )

Segundo o SE……As sensações podem ser intensas e pouco confortáveis, mas elas têm vida curta, começo – meio e fim e estão sempre mudando e fluindo. Focalizar as sensações internas com a sensopercepção ajuda a atravessar rápida e suavemente este desconforto; assim, manter a atenção na sensação de constrição tende a dissipá-la. A ênfase estána consciência da experiência sentida ao invés do que vai no pensamento, sem tentar explicar, julgar ou interpretar o que estásendo observado. Desta forma pode-se abordar o conteúdo traumático aos poucos e gentilmente, em respeito àsensibilidade do processo. Conforme Gina Ross, no diálogo com o cérebro primitivo a pergunta a ser feita seria: ” Qual éa minha sensação e o meu sentimento” ou ” Quais são as características de minhas sensações?”; ao passo que com o Neocórtex a conversa seria outra e envolveria perguntas como por exemplo: o que penso, como avalio. Em todo o trabalho com o feltsense, o convite épara que a mente participe do que estáse passando no corpo. Éfazer com que a mente se mantenha curiosa e interessada nos processos do corpo. Neste palco em que mente e corpo interagem, o cenário fica por conta do sistema nervoso e sua essencial função de auto-regulação do organismo.

Conclusão

A Psicologia Biodinamica de Gerda Boyesen e a Experiencia Somática de Peter Levine apresentam estreito grau de parentesco na família de sobrenome “Corporal”gerada por Wilhelm Reich. Como primas, carregam traços comuns e outros que se distanciam, tanto na sua prática quanto no campo teórico. Longe de querer dar conta das diferenças e defender uma ou outra, minha pretensão éde compartilhar alguns pontos que despertaram curiosidade e o desejo de melhor compreender seu uso na prática clinica. As duas abordagens concordam que não ha separação entre mente e corpo e que o corpo éo território no qual conteúdos psíquicos pode ser acessados. Assim, consciência corporal e o conhecimento de si são imprescindíveis para a desarticulação dos fios que compõe o trauma e consequentemente, para a retomada da harmonia, do bem estar interior e da saúde. O conceito de auto-regulação se coloca na cena principal. Segundo Reich, a auto-regulação é, na sua essência, a capacidade do ser humano de ouvir sua própria natureza, estar em contato com suas próprias necessidades, permitindo que o organismo cumpra seu fluxo de carga e descarga das emoções, tensões, traumas. Esta capacidade inata écomum aos animais. Mas, no caso do Homem que vive inserido em uma cultura, sofre a interferência dos centros cerebrais superiores responsáveis pela linguagem, pelo pensamento etc. Buscar a auto-regulação éuma das finalidades da Psicologia Biodinâmica. Nos enunciados da International Foundation forr Biodynamic Psychology temos que:

O organismo saudável tem o poder de exprimir, resolver e digerir atémesmo violentos choques emocionais, contanto que tenha condições necessárias de paz e segurança. Apenas quando a pessoa perde sua capacidade inerente e natural de autor-regulação e de autocura éque a neurose se desenvolve. A terapia Biodinâmica procura restaurar esta perda ou diminuição da capacidade de autor-regulação, e procura alcançar o “núcleo vivo”, o âmago da pessoa, estimulando e encorajando sua expansão. (Cadernos de Psicologia Biodinâmica, V 1, 1983, p10).

A grande contribuição de Gerda Boyesen às terapias corporais éjustamente a idéia a respeito do peristaltismo como regulador da tensão nervosa acumulada nos tecidos corporais do indivíduo. Nos seres humanos nota-se uma variação quanto ao impacto do que potencialmente traumatiza bem como dos gatilhos que provocam a liberação dos efeitos do trauma. Ao que parece esta variação estáassociada `a singularidade humana, a historia de vida, os acontecimentos e seus efeitos na formação psíquica do indivíduo desde os primeiros momentos de sua jornada. A teoria do amadurecimento desenvolvida pelo psicanalista Donald Winnicott enfatiza a importância das experiências relacionais nos primeiros anos de vida para o desenvolvimento saudável do indivíduo. Para ele a constituição do psiquismo e do corpo éuma conquista, conforme Rego:

Acho muito interessante essa visão de que a integração entre o psiquismo e o corpo não éalgo automático, e sim uma conquista gradual que pode ou não acontecer, ou acontecer de modo incompleto, de acordo com as vicissitudes do amadurecimento. Para Winnicott (1990c, p.37), [ “a base da psique éo soma, em termos de evolução , o soma foi o primeiro a chegar. A psique começa como uma função imaginativa das funções somáticas, tendo como sua tarefa mais importante a interligação das experiências passadas com as potencialidades, a consciência do momento presente e as expectativas do futuro. Édesta forma que o self passa a existir.”] (Rego, 2014, p.246)

Diferente dos outros mamíferos que jánascem prontos, o animal humano nasce frágil e dependente da condição de vida oferecida pelos outros humanos, país, familiares etc. Nesta linha de pensamento, as experiências primárias, cujo registro se mantém nos arquivos do corpo e do psiquismo, têm influência direta no desenvolvimento da capacidade de enfrentamento, da resiliência, da capacidade de recuperação diante de situações de stress e da governança da energia que circula no organismo. Na Psicologia Biodinâmica o psiquismo ocupa lugar central e o corpo éo território no qual o mundo psíquico se expressa.

A Psicologia Biodinâmica, desenvolvida pela psicóloga e fisioterapeuta norueguesa Gerda Boyesen, estuda e trata dos processos psicológicos no contexto amplo dos processo de vida de uma pessoa. Os processos “da mente”e “do corpo”são vistos como aspectos em interfuncionamento de de um único desenvolvimento biodinâmico. (Cadernos v.1,1983,p.9)

Gerda, assim como Freud e Reich, se ocuparam de encontrar caminhos para que o inconsciente chegasse `a consciência e pudesse por ela ser traduzido. A Psicoterapia Biodinâmica funciona neste paradigma de conscientizar o inconsciente e assim influenciar positivamente conflitos, sintomas, escolhas, na sua maioria determinados pelo inconsciente. Boyesen, no seu trabalho como fisioterapeuta no Instituto Bulow-Hansen, encontra na massagem uma via de acesso os conteúdos arquivados ao longo da historia de cada pessoa.

Tendo como primeiros alicerces as idéias de Reich e a terapia com Raknes, Boyesen viria a construir as bases da Psicologia Biodinâmica, que faz da massagem, do relaxamento dinâmico e da escuta do impulso interior seus principais recursos terapêuticos…nosso corpo éa inscrição viva do nosso percurso existencial.(Aldrighi, 2014, p.64)

O idéia de que o trabalho corporal produz efeitos no âmbito psicológico e de que através da massagem tocam-se as entranhas psíquicas do indivíduo, estána base da teoria de Gerda. Neste sentido, em seu livro Entre Psiquêe Soma, encontramos a referencia de que a Massagem Biodinâmica é“uma massagem que funciona como psicanálise”. Conforme diz Rego:

A psicanálise aparece nos textos de Gerda quase sempre articulada com as idéias de Wilhelm Reich…em que são importantes tanto as intervenções corporais quanto os conceitos freudianos. A noção de recalque se faz muito presente em seus escritos…( Rego, 2014,p.41)

No dicionário de Psicanálise recalque édefinido como: “operação na qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representações ( pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão”(Laplanche & Pontalis, 1991,p.430) A Psicologia Biodinâmicae a Experiência Somática entraram na minha prática clínica simultâneamente, jáque iniciei meus estudos em Biodinâmica na mesma época em que caminhava para a finalização da minha formação em SE. Eu tinha como objetivo integrar a experiência adquirida no meu trabalho com a Psicologia, com a Medicina Tradicional Chinesa e com outras modalidades de massagem, construindo assim uma atuação clínica consistente. Desde então, venho trabalhando o corpo e a sensopercepção com resultados que julgo interessantes e pertinentes. A idéia de que a auto-percepção, através da sensopercepção, ou seja, de que o refinamento da percepção sobre si mesmo favorece e amplia a capacidade de autorregulação do organismo, transformou-se em um dos pilares da minha clínica. Ao usar toques e massagem ou mesmo nos momentos em que a pessoa conta algo sobre si, o organismo pode liberar reações vegetativas que foram inibidas durante o trauma, como choro, contrações musculares, tremores, movimentos involuntários etc. A excitação excessiva vai sendo descarregada, diminuem as defesas e vai sendo restabelecida a função natural do organismo de autorregulação. Rastrear as sensações, como se passando esta dimensão sensorial por um scanner, éuma poderosa ferramenta de acesso ao mundo interno. Ao ensinar isto aos pacientes usando com frequência o exercício de rastrear nos meus atendimentos e também incentivando a sua prática na rotina diária destas pessoas, notei que se ampliava a capacidade para entrar em contato com vivências emocionais que provocam um aumento de excitação. Acredito que com isso as pessoas aprendem a modular a saída da energia que fica encapsulada, congelada no momento do trauma. A descarga suave torna menos assustador o contato com as correntes vegetativas. Neste ponto éque entra o importante papel do terapeuta Biodinâmico que, com sua postura respeitosa, acolhedora, empática, consciente do ritmo diferente para cada organismo e da sua responsabilidade ao ser testemunha da história do seu cliente, cria um ambiente seguro e convoca a expressão do movimento que foi interrompido na situação traumática. A presença calma, tranquila e tolerante, descrita por Gerda como a de uma parteira que acompanha o nascimento do bebêe interfere de forma justa, estabelecendo um ambiente propicio `a confiança, à expressão das emoções e ao contato. Usando um pensamento livre e simplório, talvez seja possível dizer que o arcaico sistema reptiliano éconvocado pela tranquilidade, pela fala suave do terapeuta, pela presença firme e calma. O sistema entende que não háperigo, que épossível descansar. O sistema límbico se manifesta deixando fluírem emoções e lembranças; e o sistema neocortical assume o papel de observador. No meu trabalho rastrear as sensações écomo desligar o alarme e abrir a porta para entrar no mundo interno. Aprender a modular as sensações, ou como se diz no SE a pendular, equivale a ensinar o sistema a evitar entrar em curto circuito. Em outros termos, este processo vai abrindo um caminho para que o sistema nervoso recupere o movimento natural entre a atuação simpática e parassimpática. Entre ativação e relaxamento. Lembro-me do atendimento a uma paciente que sofria de crises de ansiedade e que durante o trabalho em que usei toque e rastreamento ela me disse que sentia como “se tivesse sido desligada a bomba relógio que vivia em seu peito”. Mas este ésóo início do trabalho, um modo de facilitar o mergulho na alma. A história do paciente, sua relação com o momento atual, os relacionamentos, as dificuldades, as repetições, o que hápara ser traduzido pela consciência, continua a ser o foco da minha clínica. Espero com este texto despertar a curiosidade para que outras aconteçam, mais conexões sobre o tema se façam, favorecendo assim a ampliação e fortalecimento da nossa pratica clinica.

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