Retraimento e regressão: A percepção do corpo e de si mesmo

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Retraimento e regressão: Um estudo de caso em massagem biodinâmica com a possibilidade de redescobrir a percepção do corpo e de si mesmo.

Terapeuta biodinâmica Escolhi descrever esse caso, que foi um processo de psicoterapia e não um caso só de massagem, porque ficou muito evidente a necessidade de uma intervenção diferenciada, as massagens foram cruciais para o desenvolvimento do processo e somente no verbal a terapia não seria tão eficaz e não atenderia às necessidades da paciente. A paciente Paula começou a ter uma transformação efetiva após as aplicações das massagens biodinâmicas, pois apresentava grande dificuldade em expressar verbalmente o que sentia, não sabia dar nome para os seus sentimentos e emoções, não sabia o que estava sentindo, ficando por muitas vezes no silêncio, o que dificultava o processo terapêutico. Não identificava sensações e percepções do seu próprio corpo, relatando em algumas vezes, por exemplo, que havia passado mal e quando alguém lhe perguntava se ela havia se alimentado, acabava por se dar conta que não constatando que o mal estar era simplesmente fome. Era uma paciente psicossomática, todo o conteúdo emocional era canalizado para seu corpo, apresentava dores de estômago e dores de cabeça constantes, quase que crônicas; Alergias e muita acne na pele, intolerância ao leite e a vários outros alimentos. Diante desse quadro, dificuldade na expressão verbal e a evidencia de uma paciente que precisava de acolhimento e manejos não interpretativos -passeia aplicar as técnicas de massagem biodinâmica a fim de me aproximar mais dessa paciente e como uma alternativa do processo psicoterapêutico, visando amenizar suas dores físicas, ajudando- a se apropriar de seu corpo, conectando e nomeando suas emoções e sentimentos. Essa paciente esteve em processo por 4 anos e 4 meses, nos quais nos primeiros 7 meses o processo desenrolou-se apenas verbal, com manejos e manobras corporais na própria poltrona, apenas para sentir um pouco mais o seu corpo, sem nenhum toque especifico. Nos anos seguintes foram introduzidas as massagens biodinâmicas juntamente com intervenções verbais e no último ano de processo a massagem foi a técnica mais utilizadas no setting terapêutico. Hoje, a paciente encontra-se em alta, com a finalização do processo. A paciente começou o processo com 24 anos e hoje, após 4 anos e 4 meses de terapia encontra-se com 28 anos. É a filha caçula de uma família de 3 filhos (sendo a filha temporão, pois) e sua mãe a teve após 4 anos de diferença do irmão do meio. Sempre foi comparada com a irmã mais velha, com 6 anos de diferença de idade, sentindo-se exigida a ser como a irmã, a fazer como a irmã. Mesmo com a diferença de idade, era cobrada pararealizar as tarefas como a irmã. O que a deixava se sentindo muito desvalorizada, pois a irmã sempre se dava melhor, até por ser mais velha e ter mais condições de realizar atividades adequadas à sua idade. Este fato a fazia se sentir “burra, a que não sabia nada, a diferente e inferior”. Também sentia-se muito mal por ter nascido depois de muito tempo e escutava constantemente damãe que ela não queria mais filhos quando engravidou de Paula. Sentia-se como o estorvo da família, principalmente da mãe e reforçada pelas atitudes da irmã mais velha que sempre a desdenhou, fazendo-a de boba, enganando-a e usando-a para conseguir o que queria. Morava na casa dos pais (atualmente ainda mora) e isso também era algo muito perturbador, pois ela achava que já deveria estar morando sozinha, ter suas coisas e ser independente, pois sentia que atrapalhava. Fez faculdade em outra cidade, época que morou com a avó. Após o término da faculdade voltou para a cidade dos pais, e logo começou a trabalhar. Quando criança não teve nenhuma orientação e cuidado da mãe, pois elatrabalhava muito e o pai também. Paula ficava sempre sozinha com os irmãos. As lembranças são poucas e sempre que lembrava da mãe, ela se via com 4 anos e diante da saia dela, mãe, somente o que ela via eram as pernas de sua mãe; não se lembrava de receber carinho, afeto e cuidados maternos. Sua mãe sempre foi doente, tem dores de cabeça e dores muito severas no corpo, devido à artrite, além de inflamações nos ossos até hoje. Por isso nunca estava disposta a desempenhar os cuidados necessários para afilha e tinha que trabalhar fora, o que dificultava o contato das duas desde que Paula era bebê. Quando bebê lembra-se muito do cuidado da tia materna, pois ficava muito tempo na casa da avó quando não ia junto com a mãe para a confecção de roupas que esta possuía. Ela conta que sempre se sentia muito diferente na escola, pois era a única que não entendia nada, chegava em casa e não tinha noção do que fazia na escola. Achava que ela tinha que aprender tudo sozinha, e não sabia que podia perguntar para a professora, não tinha nenhuma orientação em casa para isso e sempre tentou fazer suas tarefas escolares sozinha. Acreditava que assim é que deveria ser, ela tinha que saber. Ao menor questionamento era julgada como burra e tinha que se esforçar mais. Assim passou anos sem saber o que fazia na escola, fazendo tudo automaticamente, com muita dificuldade e sem entender as questões da necessidade da aprendizagem e crescimento. Lembra também que ficava esperando a mãe por muito tempo na escola, e isso foi a vida inteira. Por ser mais nova estudava em horário diferente dos irmãos e a mãe a esquecia na escola constantemente. Ela ficava com muita fome (até passava a fome de tanto esperar), não sabia o que acontecia, mas não perguntava nada à mãe. A família é tida pelos parentes como a família do atraso. Estão sempre atrasados para tudo. Os familiares chegam a dizer horários adiantados de festas e reuniões para eles não se atrasarem demais. Isso é uma característica incorporada por Paula que ao longo de 5 anos nunca chegou no horário certo da sessão, sempre atrasava mas nunca faltava. Nos últimos anos o atraso diminuiu muito, no inicio chegava a se atrasar até 20 minutos e no decorrer do processo, diminuiu para 5 e no máximo 10 minutos. Por muitas vezes conseguiu chegar no horário, o que para ela era fantástico. A paciente chegou para o tratamento muito frustrada, perdida e confusa, pois tinha acabado de voltar de uma viagem mal sucedida para o exterior. Interessou-se em fazer um intercâmbio de 3 meses, onde iria trabalhar numa ONG. Ajeitou toda a documentação e os trâmites necessários para a viagem, mas chegando ao aeroporto ficou barrada pela policia, ali permanecendo por três dias, sendo maltratada e julgada pela equipe de imigração. Ela foi deportada para o Brasil, não conseguindo realizar um sonho que havia se preparado há a mais ou menos um ano. Esse acontecimento a fez sentir muito triste e depressiva, não queria mais trabalhar na sua área, pois tudo a lembrava do ocorrido. Chegou muito confusa, parecia exaurida, sem ânimo para pensar em nada e não sabia o que fazer da sua vida. Apresentava-se muito tímida, não sabia o que falar nas sessões, seu olhar era longe e desconectado, suas repostas eram evasivas e permanecia muito tempo em silêncio.Sentava quase que deitando na poltrona e permanecia na mesma posição a sessão inteira, demonstrandocansaço em falar e falta de energia. Não evidenciava nenhuma emoção ao relatar os fatos de sua vida, dizia ser assim sempre, ela se identificava como “morna”, nunca saia daquela sensação. Dizia que gostaria de experimentar sensações, como por exemplo, de alegria e felicidade de um gol num jogo de futebol, mas não entendia como as pessoas ficavam assim e ela não. Suas verbalizações por um bom tempo giraram em torno do acontecimento no exterior,da sua falta de emoções, de cansaço e confusão no que fazer da vida. Durante mais ou menos um ano de atendimento semanal, busquei colher alguns dados da sua história pessoal, mas sempre sem emoção e sentimento pelo que relatava. Era impossível fazer interpretações pois ela não se apropriava dos conteúdos trazidos e nem sabia nomear o que sentia diante de tudo aquilo. Naquele momento da terapia ela não se relacionava mais com os amigos, não estava namorando, não trabalhava e canalizava suas energias para pensar no que ela deveria fazer para retomar sua vida. A paciente chegou com a queixa de muita tristeza e sensação de estar perdida, sem rumo, não sabia o que fazer e não tinha ânimo para fazer nada. Sentia muita dor de cabeça, dores crônicas de estômago, com diagnósticos de enxaqueca e gastrite, que por muito tempo foi tratada com medicação, mas nada adiantava,até que o médico lhe alertou que tudo tinha fundo emocional. Sempre que comia algo sentia-se mal, fez várias investigações médicas e teve um diagnóstico de intolerância a vários alimentos, como leite, açúcar, e outros mais. Na adolescência tivera muita acne e se tratou com medicações muito fortes e agressivas ao organismo, e até o momento, tinha muita preocupação em relação a isso, pois diante de algum stress a acne voltava. Seu objetivo na terapia era se livrar desses sintomas, ou ao menos aliviá-los e também se achar no mundo. O contrato fechado com a paciente foi o de psicoterapia e durante os 7 primeiros meses o trabalho foi muito verbal, sem nenhuma mudança efetiva. As dores continuavam intensas e constantes, nas sessões falava pouco e sem conexão com os sentimentos, porém aos poucos fui introduzindo o toque e fiz uma proposta para que realizássemos um trabalho corporal mais regular, baseado na massagem biodinâmica. A paciente concordou e daí por diante comecei aumentar a constância em que aplicava a massagem em Paula. A paciente gostou da minha proposta e sentiu-se bem diante da massagem, pois era difícil para ela falar e, então naquele momento, ela estava se livrando de um incômodo de vir para sessão e não saber o que dizer. E também por muitas vezes relatou que gostaria de ficar quieta, só na minha presença, pois era algo que sentia fora do setting, pois todos a cobravam para falar ou fazer alguma coisa. Durante os primeiros meses do processo terapêutico, não interpretei o seu silêncio e os atrasos como resistência ao tratamento. Sentia como terapeuta, que a paciente estava na falta, tinha um caráter esquizóide predominante e quando não falava era porque não sabia, pois tinha grande dificuldade no contato; quando faltava era porque se perdia no horário, tinha dificuldade de se organizar no tempo e no espaço; quando não sentia nada era porque não sabia nomear seus sentimentos; quando não sabia que estava com fome era porque não estava habitando o seu corpo. Diante desse quadro, achei necessário respeitar todas essas características da paciente, oferecendo compreensão, acolhimento e aceitação de como ela era, sem julgá-la ou exigir que ela fosse uma paciente que ela não estava preparada para ser. Meu objetivo terapêutico era desenvolver a integração corporal da paciente, e ajudá-la a perceber como as emoções e os sentimentos afetavam seu corpo e o que causavam em seu organismo. As massagens seriam utilizadas para a redescoberta da possibilidade de redescobrir a percepção do corpo e de si mesmo. As massagens biodinâmicas se resumiram em: deslizamento, amassamento, polaridade nas extremidades, toque da borboleta na região dos olhos e Shantala no corpo todo. E em algumas sessões íamos para o verbal para trabalhar o que havia sentido nas massagens. Escolhi começar pelos toques nas extremidades para ir fazendo amizade com a resistência, não invadir a paciente e fortalecer o vínculo terapêutico, além de oferecer acolhimento e aceitação. Tocava essencialmente a cabeça, as mãos e os pés. A paciente aceitou muito bem essas intervenções, já nas primeiras sessões conseguia relaxar e chegava a dormir, havia sempre muito barulho no esteto, mas não barulhos fluídos e sim mais secos e como estouros. Eram muitos barulhos, o que supostamente caracterizava, juntamente com sua história pessoal, uma paciente que estava inundada em seus conteúdos emocionais, desorganizada interna e corporalmente, sem percepção do contorno e limites do seu corpo e de suas emoções. Ao final das massagens, a paciente estava visivelmente relaxada, sua aparência melhorava,ficava mais vibrante e corada, não parecia mais tão cansada e sem energia, dizia que estava se sentindo muito bem, mas se restringia a isso. Não relatava nenhuma sensação ou imagem ocorrida durante o trabalho. Sempre voltava para as sessões relatando o quanto havia ficado melhor após a massagem e gostaria de continuar com esse procedimento. Aos poucos fui tocando o rosto e principalmente a região dos olhos, com deslizamentos e toque da borboleta, sempre com a intenção de cuidado e relaxamento. Nos anos que se seguiram, ou seja, fui intercalando as massagens com as intervenções verbais, e já sentia muita diferença na sua postura frente à terapia e à vida. Paula já conseguia identificar melhor suas dores e suas causas, aliviando muito a sua angustia frente a elas, aumentando sua percepção do que estava acontecendo internamente e externo a ela. Sabia dizer quando estava com fome, diferenciando seu malestar, quando era fome ou quando tinha passado por algum stress. Sua vida começou a mudar, voltou a trabalhar onde havia trabalhado anteriormente, entrou num cursinho preparatório para o vestibular para fazer outra faculdade, e depois de um ano, passou numa faculdade federal. Voltou a ter contato com os amigos e começou a namorar, estabelecendo seus contatos com mais segurança e adequação. No último ano do processo, mais ou menos no começo de 2011, passei para a técnica da shantala, buscando a intensificação da integração do corpo físico, estabelecimento dos limites corporais e emocionais, e ajudá-la a perceber seu próprio corpo e o que acontece nele. E esta foi a manobra essencialmente utilizada durante esse período até a alta. Em todas as sessões que realizei a shantala, a paciente se mostrava entregue à massagem, sua respiração era profunda, em algumas sessões chegava a dormir, a peristalse estava funcionando, de início com barulhos secos e com muita intensidade, mas aos poucos fui percebendo que os barulhos continuavam, agora com mais fluidez e barulho de água escorrendo. Desta forma, pude também ajudá-la no relaxamento e no restabelecimento da autorregulação do seu organismo. Após mais ou menos 1 ano de sessões de massagens , com poucas sessões verbais para saber como ela estava se sentindo e como estava em sua vida, pude verificar que a paciente havia se transformado completamente. A organização corporal que a massagem oferecera, podia ser vista também na organização de sua vida, nas suas escolhas e tomadas de decisão, como também, nas relações interpessoais. Não era mais uma menininha assustada, que não sabia o que dizer e o que fazer, já sabia se posicionar frente às pessoas, principalmente em casa com seus familiares e no serviço. Estava completamente engajada na faculdade, muito satisfeita com a sua escolha e sabia que não queria mais trabalhar naquela agência e gostaria de se dedicar ao seu curso e a sua profissão futura. Assim, fui percebendo que a paciente já se apropriava de sua vida, fazendo escolhas saudáveis e coerentes, suas dores diminuíram consideravelmente, quase que cessaram. Sua pele estava cada vez melhor, sem episódios de intensa acne, as alergias na pele diminuíram e a intolerância aos alimentos amenizou. Já conseguia comer sem passar mal, podia até tomar leite sem exageros. Começou a estabelecer limites para sua vida, sabendo o que poderia fazer para não sentir tanta dor, o que precisava evitar para não sentir mal estar. Nomeava seus sentimentos e relatou que não estava mais morna. Atualmente vive com mais intensidade a sua vida, vivenciando cada momento e identificando suas emoções. Então percebi que esta paciente já podia entrar em processo de alta, e precisava sentir que ela podia andar com suas próprias pernas, apropriar-se de sua potência e capacidade, pois já estava integrada. A alta foi realizada e o processo se finalizou. Foi de suma importância para o processo psicoterapêutico, a ênfase no corpo e o encaminhamento adequado da massagem frenteà problemática da paciente. Se eu insistisse no verbal, acredito que ela não teria permanecido no tratamento. As massagens biodinâmicas foram técnicas que me ajudaram a oferecer o cuidado adequado a essa paciente, pois o que ela necessitava era de um cuidado que a remetesse a falta que tivera quando bebê e a auxiliasse a se reorganizar físico e emocionalmente. Ela necessitava de contorno e limites fisicos, para estabelecer e fortalecer as fronteiras entre ela e o mundo, apropriando-se do seu corpo e assimvir a habitá-lo. Antes de trabalhar as emoções na consciência, sentia necessidade da paciente reconhecer e organizar as sensações e percepções em seu corpo. Assim, pude confirmar a complementaridade psique e soma, o quanto a partir de uma organização corporal, do estabelecimento dos limites físicos e das percepções internas, Paula pode transpor tudo isso para sua vida, transformando seu comportamento frente ao mundo e às pessoas, e, principalmente, consigo própria, entendendo-se e se cuidando cada vez mais.  

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