Valdete Aparecida Ferreira
Email: valdaferreira1@hotmail.com
Especialista em Psicologia Biodinâmica pelo Instituto Biomater em parceria com o IBPB
“Alimentar uma criança com toques, suprir sua pele e suas costas, é tão importante quanto encher seu estômago”
Frederick Leboyer
AGRADECIMENTOS
À querida Sandra Milessi por seu carinho, dedicação e incentivo, trazendo a Biodinâmica para a vida de tantas pessoas aqui no Vale do Paraíba, não só pelos multiplicadores profissionais atuantes, mas pelo benefício que tantos atendidos em massagem e/ou análise Biodinâmica já tiveram e ainda vão ter….; e neste momento, em especial, a mim mesma que me sinto inundada de gratidão por essa mudança em minha vida como um todo: formação, aprendizado, pessoa, etc.etc.etc.
A todos os demais professores, que com grande carinho, dedicação, nos trouxeram o conhecimento, pois “feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.” Cora Coralina
À Winnicott, onde quer que esteja, que esteja sob a luz de Deus. Sem sua teoria, seria difícil compreender a etiologia das dificuldades de algumas crianças com as quais trabalho.
Em especial ao professor e Analista Biodinâmico Roberto Pin Filho, que muito me ensinou e me transformou com as massagens e terapia que dele recebi numa época muito difícil em minha vida.
“Eu sou aquela mulher
a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida
e não desistir da luta,
recomeçar na derrota,
renunciar a palavras
e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos
e ser otimista.”
Cora Coralina
INTRODUÇÃO
Vou iniciar contando da minha experiência com massagens…
Em 2005 fui trabalhar pela prefeitura de Taubaté, na Casa da Mãe Taubateana, e para minha alegria fazia parte do meu trabalho a massagem em bebês. Foram 4 anos de muito contentamento (de julho de 2005 à julho de 2009). Eu nunca havia feito curso de massagens, mas amava as propagandas de óleos de massagem para bebês que falavam sobre a Shantala, e procurei cada vez mais através de estudos na internet e leitura de livros, me aperfeiçoar como massagista… dentro de mim já sentia um desejo de pelas mãos cuidar do outro… no caso, um ser tão delicado e frágil: os bebês… E foram muitos, muitos que passaram pelas minhas mãos e pelo meu coração…
Em 2007 iniciei o curso em Taubaté, onde a coordenadora era a Maria Forlani. Fiz 2 anos do curso de Psicologia Biodinâmica. Cheguei até mesmo a conhecer pessoalmente alguém que tive o maior prazer: a professora Eliana Pommé, consultora do material de massagens da Natura, pois já conhecia seu trabalho, o “Guia de Boas-vindas” do qual fazia já uso especial. Assim, cada dia mais eu aperfeiçoava meu trabalho.
Lá eu atendia crianças de 0 a 3 anos, que eram encaminhadas pelos hospitais municipais. Eram bebês que nasciam prematuros, com seqüelas de sofrimento fetal, com síndrome, surdez, cegueira, nanismo, anóxia perinatal ou pós-natal, etc.
Era um trabalho muito gratificante. Minha sala era pintada da cor azul clara, com desenhos com motivos de mar (peixe, estrela-do-mar, conchas, etc.). Eu fazia parte de uma equipe multidisciplinar, onde o neuropediatra e toda a equipe valorizava muito meus trabalhos de massagem. Quando uma mãe se queixava que seu filho não estava dormindo à noite, ele imediatamente recomendava a minha massagem; se o filho era hiperativo e a mãe queria que ele lhe receitasse um calmante, ele imediatamente receitava: “massagem”. E era contra dar remédios à crianças tão pequenas, quando eram problemas apenas comportamentais, eu me sentia a fada que tinha uma varinha mágica.
Assim, queria apenas demonstrar aqui um período que, durante 4 anos ininterruptos e consecutivos trabalhei, durante 40 horas semanais fazendo anamnese, avaliando crianças, orientando mães e massageando com a Shantala seus bebês semanalmente, com horários cheios e obtendo resultados maravilhosos.
Quero dizer que, horas de massagem tenho, portanto, muitas horas, mas gostaria de registrar aqui apenas a sensação extraordinária que Gerda sentia, onde a sala, o setting terapêutico, a intenção, o toque, são muito importantes.
E como disse no início, “fiz dois anos do curso”, pois eu o interrompi logo que nasceu meu segundo filho, pois morava em outra cidade, bebê novo, e outros motivos, não consegui então dar continuidade.
Reiniciei o curso em 2014, na Turma T3 do Biomater e agora o estou concluindo.
Trabalho em outra prefeitura e escolhi este caso por ser um trabalho em Análise Biodinâmica infantil, onde através do lúdico e da massagem e princípios da Biodinâmica, foi o caso que mais tocou meu coração.
INFORMAÇÕES GERAIS SOBRE O CASO
Eu atendi esta criança na rede municipal de minha cidade. Veio encaminhada pela escola.
Em minha sala hoje há brinquedos, mesa infantil, duas carteiras escolares para atividades, uma mesinha de madeira com quatro cadeiras pequenas para crianças, uma maca de massagem, almofadas e um colchonete.
Faço novamente parte de uma equipe multidisciplinar, porém há mais pedagogas. E da área de saúde há fonoaudiólogas e apenas eu de psicóloga neste núcleo.
Histórico da criança:
Esta criança é um menino, que vou chamá-lo de Tito. Veio encaminhado pela escola com suspeita de transtorno do espectro autista (TEA).
Já na anamnese, apesar de impressionada com a forma que a mãe relatava alguns fatos, tive que fazer cara de “paisagem”, ou de “azulejo”, como dizia uma amiga de primeira turma (a turma que não concluí).
Era agosto de 2013, sendo que atendi o caso até abril de 2017. A mãe já tinha um filho quando engravidou dele; o casal vivia razoavelmente bem. Ela estava com 24 anos. A gravidez não foi planejada. Disse que praticamente não fez o pré-natal, pois demorou a descobrir a gravidez, e que só percebeu aumentar o apetite, e que não passou mal como da gravidez anterior.
A gravidez não teve intercorrências, foi parto normal, saiu junto com a mãe do hospital.
Aos 9 meses a mãe abandonou a família e deixou os filhos com o pai. Ela mencionou que o pai não cuidava nem um pouco deles, e deixava o Tito chorar bastante. Quem cuidava eram mulheres que o pai pagava para ele poder trabalhar; porém, vizinhas contaram para a mãe, pós-retorno da mesma, que todas as cuidadoras “judiavam das crianças”. A mãe ficou afastada de casa e da família até Tito completar 2 anos (por volta de 1 e 3 meses de ausência).
Quando retornou, Tito estava começando a andar.
Utilizou chupeta até 3 anos, mãe retirou o uso porque ele havia engolido um bico de chupeta que ele mesmo cortou com os dentes e quase morreu – sic.
Ele não foi amamentado no seio materno, assim como o irmão, porque a mãe não ofereceu, pois “tinha medo que caíssem os peitos”.
Utilizou mamadeira até sua chegada ao tratamento. Não comia bem. E seus hábitos alimentares aos 5 anos eram: mamadeira e bolacha. Na escola também estava mamando, pois não aceitava nada no copo. Mas aceitava também coxinha de frango e sopa.
Veio com fralda, ainda fazendo uso.
Mãe disse que apesar do pai maltratá-lo muitas vezes, ele é “grudado” com o pai.
Bate a cabeça na parede quando quer algo e não é atendido; e se não for contido, ele mesmo se bate e se machuca (sic).
Quando mãe voltou para casa, logo engravidou da terceira criança, e quando começou o tratamento dele, a menina já estava com 1 a 2 meses.
A criança entrou para escola aos 4 anos, porém, permanecia somente por 2 horas e 30 minutos, e ainda permanece este período.
Mãe tentou tirá-lo da fralda, mas disse que ele tentou ingerir fezes e não foi treinado mais no controle esfincteriano. E quando a fralda está pesada de urina, ele começa a retirar e comer o gel.
Tito: não fala, solta apenas sons. Gosta de assistir televisão, especialmente desenhos. Gosta de rasgar revistas, e fica enrolando as tiras nos dedos, e depois pica-as todinhas.
Gosta de ir à escola, porém mãe percebe que ele se isola dos colegas.
Ela diz que ele não mantém atenção e concentração. E diz que sua compreensão é ruim. Bate palmas, abraça bonecos e abraça e acaricia as pessoas da família. Brinca e sorri para as mãos. Anda na ponta dos pés. Não sabe pedalar bicicleta ou velotrol.
Olha para cima e pisca constantemente e ininterruptamente, com um sorriso estranho nos lábios – para o nada.
Em escala de desenvolvimento infantil acusava estar com idade funcional de 2 anos e 10 meses, com atraso de 44% em seu desenvolvimento.
Gosta de dividir o que está comendo com os irmãos. Tem 19Kg, com 5 anos de idade.
Neuropediatra receitou Carbamazepina – toma desde julho/13.
Histórico da mãe:
Ela também sofreu abandono materno. Conta que quando estava com a mesma idade (9 meses), sua mãe que judiava dela, a abandonou dentro de um caixote na rua. Policiais a encontraram e a levaram para a delegacia. Foi encaminhada para um lar de crianças, na cidade onde morava, em São Paulo. Lá morou dos 9 meses até os 16 anos. Foi usuária de drogas, e tentou suicidar-se. Acredito que ela seja Borderline. Mãe disse que acha que o “problema” do filho seja por causa dela mesmo, por abandoná-lo.
Histórico do pai:
É hipertenso, tem problemas nas pernas, tinha 60 anos em 2013, e continuava a trabalhar. Agressivo. Acha que o filho não é dele, só por ele ter “problemas” e geralmente o ignora (sic com a mãe).
“Pegou” a companheira das ruas – já usava drogas de todos os tipos – sic.
Em final de 2016 amputou uma das pernas.
DESCRIÇÃO DO ATENDIMENTO
Primeiro período – de agosto à dezembro de 2013
Dia 28/08/13 eu o vi pela primeira vez. Uma criança carinhosa, que gosta de dar e receber carinho. Olhava-me nos olhos, mas ausente muitas vezes, piscando os olhos insistentemente e olhando para cima, para o nada.
Um menino agitado, que traz os brinquedos para a mesa infantil a todo instante, mas não brinca, apenas observa-os; à medida que vou estimulando, aguardo, como no método da parteira (termo criado por Gerda Boyesen, fundadora da Psicologia Biodinâmica), que mais tarde vá adquirindo a capacidade simbólica e que comece a brincar.
Confiei muito na frase de Winnicott: “todo indivíduo humano é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento”. (DIAS, 2003, p.13) O que eu precisava então, seria favorecer este amadurecimento, onde quer que seu desenvolvimento tenha sido inibido, falho. E como eu disse, confiei muito nesta frase, não que eu quisesse ter uma varinha mágica, mas o que meu trabalho pudesse fazer para este paciente “despertar” para a vida, eu o faria; com massagens e estimulações em todas as áreas: linguagem, cognitiva, social, motora e atividade de vida diária…
Tito é um menino dócil, miúdo, de pele bem morena, cabelo bem encaracolado… Logo me encantei com seu jeitinho de ser, retraído num mundo próprio, arisco, rápido nos movimentos, semblante sempre pensativo, buscando algo para mexer…
Inicialmente foi trabalhado a formação de vínculo e aceitação de massagem, o que ele parece ter entendido perfeitamente. Percebi que ele precisava de toque, e a massagem bem calorosa, que o envolvesse num ambiente favorável, era o que ele naquele momento mais necessitava.
Com base no texto do Ricardo Rego sobre “Massagem em Psicoterapia: Usos e Contraindicações” (2014), a massagem biodinâmica está ligada à Psicologia, inclusive a Gerda se referiu a ela como “Psicanálise do corpo”, e se baseia no ciclo emocional, tanto nos aspectos físicos quanto emocional, e na dinâmica da personalidade de cada um, então escolhi a que melhor serviria à Tito, de acordo com sua história de vida, a Shantala. Esse tipo de massagem torna-se um bom instrumento para fazer um vínculo de entrega, a partir da confiança no outro ou para analisar o quanto a pessoa não se entrega ao cuidado, com dificuldade de soltar-se, e essa dificuldade Tito teve mesmo.
Ainda, de acordo com Rego, a maternagem que a massagem proporciona, ajuda as pessoas com problemas relacionados ao primeiro ano de vida, na relação mãe-bebê. E o terapeuta dá um ressignificado, que acalma a pessoa, harmonizando a sensação que foi despertada no início da massagem. É a reparação das faltas deste período, e o fundamental aqui é a presença terapêutica. No manejo da relação, a pessoa vai refazendo objetos internos, através deste vínculo com o terapeuta, a pessoa vai se reconstruindo. E a “fome de toque” produz na pessoa a sensação de falta, que foi gerada na infância quando não recebeu todos os cuidados físicos necessários da mãe suficientemente boa, e o uso da massagem pode abrir caminhos no contato com o terapeuta, trazer o aconchego, a pessoa pode senti-la como um carinho que necessitava, e isto também certamente contribui com relação ao vínculo, tão necessário para o bom trabalho e confiança de entrar em contato com suas frustrações, traumas e senti-los de uma forma mais natural e colocá-los para fora, e assim poder sentir a capacidade de estar só, com suas angústias, a solidão existencial de ser único, de perceber-se enquanto ser vivente, singular. No caso de Tito sabe-se que houve uma falha num estágio primitivo, talvez na dependência relativa, pois a mãe o deixou quando estava com 9 meses, ou ainda bem antes, pois apesar da sua presença física, não se sabe como era essa relação com o seu bebê. (REGO, 2014, p.249-250)
Dulce Amabis também relata a importância dos cuidados maternos:
(…) O bebê ao nascer não sabe que as sensações como fome, frio, calor ou qualquer desconforto vem do seu corpo. O alojamento da psique no corpo ou personalização é um processo que depende do manejo da mãe. Esse manejo implica que o bebê não só seja prontamente atendido nas suas necessidades básicas, como também que seja acariciado, embalado, afagado, massageado e que lhe seja feita a oposição necessária para exercitar a motilidade. Quando o cuidado materno favorece a coesão psicossomática, o eu pessoal é sentido como estando contido nos contornos dados pelos limites da pele. (…)
Esses cuidados são alimentos tão indispensáveis quanto o leite, pois a pele é o maior órgão sensorial do corpo, e o toque provoca uma sensação muito significativa no ser humano. Na visão de Montagu (1986, p.22), ela é mais determinante do que a do olfato, paladar, audição ou visão, especialmente nos bebês e crianças(…) (AMABIS, 2014, p.100-101).
Houve uma insistência minha com relação ao olhar – sempre fazia questão que me olhasse nos olhos, pela sua dificuldade em fazer esse contato. E por isso eu estava sempre disponível à ele. Entendendo que Psicologia Biodinâmica está sempre voltada à relação entre pessoas, ela não é de forma alguma invasiva, respeitando sempre o momento de vida do paciente e as suas necessidades.
Aceitou bem a massagem escolhida: a Shantala – ele permanecia no atendimento de fralda. Foi fácil segurar naquele corpinho ainda frágil e magro, de pele muito ressecada, onde deslizava suavemente as minhas mãos com o óleo de massagem…
Como a maca fica encostada no espelho da parede, ele gostava de ficar se olhando e fazendo caretas (o que eu achava ótimo).
Sempre fiz massagens com músicas infantis, no rádio ou eu mesma cantava.
Até dezembro ele já pedia a massagem logo que chegava à sala de atendimento, direcionando-se para a maca e querendo subir nela.
Neste período, trazia todos os dias papel picado, ou alguma folha suja, revista velha, propagandas que encontrava no chão da rua, etc. Nada significativo materialmente aos meus olhos, mas comecei a perceber ali os objetos transicionais… para ele havia um grande significado. Os fenômenos transicionais, para Winnicott, no estágio da dependência relativa:
Quando começam a ocorrer, por volta dos oito ou dez meses, o processo de desilusão já se iniciou. São eles que dão continuidade à ilusão, com modificações graduais na onipotência. Caracterizam-se pelo apego ao objeto transicional e constituem o início da capacidade de simbolização; desenvolvem-se, depois, na capacidade de brincar e se estendem, à medida que o amadurecimento prossegue, por todo o espaço cultural. Os objetos transicionais, e depois o brincar, são os precursores da capacidade do adulto de usar o campo da cultura, da religião, da arte, para o necessário e salutar descanso da eterna tarefa de separar os fatos da fantasia. Mas o que está no início de tudo é a ilusão, pois a criança precisa começar vivendo ‘num mundo subjetivo em que é a criadora de todas as coisas. (DIAS, 2003, p.234)
Para Tito apetrechos davam a impressão de serem bonitos, especiais, sempre a andar com aqueles papeizinhos, que trazia e não os esquecia. E eu os valorizei para a mãe, que neste aspecto nunca me pareceu brigar com ele… não que Tito seja um bebê, mas ele me parece uma criança muito regredida, fixada em alguma fase do desenvolvimento lá atrás, olhando pela teoria freudiana; talvez na fase oral, já que ainda mama em mamadeira… Mas voltemos ao objeto transicional de Winnicott:
Se essa experiência for permitida ao bebê, o objeto, com o tempo, será ‘não tanto esquecido, mas relegado ao limbo. […] perde o significado, e isso se deve ao fato de os fenômenos transicionais tornarem-se difusos, espalhando-se por todo o território intermediário entre a ‘realidade psíquica interna’ e ‘o mundo externo’ […]
E logo mais à frente ele continua:
No início da passagem da adaptação absoluta para a adaptação relativa, os objetos transicionais exercem a indispensável função de amparo, por substituírem a mãe que se desadapta e desilude o bebê. A transicionalidade marca o início da desmistura, da quebra da unidade mãe-bebê (…) Exatamente no espaço de separação entre mãe e bebê, entra o objeto transicional, que é, ao mesmo tempo, separação e símbolo da união com o que está sendo separado; ele representa a mãe ou o seio, ou até o si-mesmo da criança, tal como está nesse momento do amadurecimento. A atividade simbólica, que aqui tem início, traz uma amplitude enorme à experiência uma vez que ‘o símbolo de união proporciona um alcance mais amplo à experiência humana do que a própria união. (DIAS, p.235-237; grifos meus)
Segundo período – de fevereiro à dezembro de 2014
Os atendimentos iniciaram em fevereiro de 2014, porém mãe, que é bem desorganizada, não veio nas primeiras semanas após as férias.
Assim que ele entrou na sala de terapia, lembrou-se da massagem, e foi direto para a maca.
Minha intenção é ajudá-lo a entender o nosso mundo, a viver nele da melhor forma possível, com todo o seu potencial se desenvolvendo, e para isso procuro ser “uma mãe viva” naqueles momentos em que ele está ali comigo, trabalhar como terapeuta infantil biodinâmica sobre a falta que ele vivenciou e ainda vivencia…
Rego coloca sobre a teoria winnicottiana:
O bebê nasce não integrado, com os núcleos do ego dispersos. Ele vive uma unidade com o ambiente, em estado de dependência absoluta. Entre as metas vivenciadas nesse momento estão a integração dos núcleos do ego numa unidade e o alojamento gradual da psique no corpo, uma integração que se dá a partir de fora (a mãe que alimenta, protege, embala, banha, cuida, nomeia) e de dentro (experiências pulsionais). (2014, p.245)
Está crescendo. Se olha muito no espelho durante as massagens e abre a boca, mostra língua, sorri, olha os dentes.
E diz “Ti” o tempo todo (querendo dizer “Tia”).
Ele cantarola já músicas e apenas pelo tom e melodia eu descobria qual era. Um dia cantarolou uma música gostosa, eu não reconhecia. A mãe disse que ele adora assistir na televisão o “Discovery Kids” e que era de lá essa música. Eu então comecei a assistir para aprender e descobri: a música fala de cachorro, pato, porquinho e canguru. Ele adorou quando cantei e compreendi sua música. Toda sessão passamos a cantá-la. Sempre dou um retorno do atendimento à mãe, é uma forma de fazê-la se envolver e ela me dá um feedback de como ele está em casa…
Segundo Glória Cintra (2014):
Para Winnicott, o que traumatiza é a repetição da falha materna, tanto da mãe-pessoa quanto da mãe-ambiente. O excesso de interferência gera rupturas nos estados tranqüilos do bebê, provocando respostas de submissão ou reatividade ao ambiente e acarretando no indivíduo a formação de um falso self.
Assim, ao atender pacientes regredidos, Winnicott formulou um modelo de atendimento à necessidades do ser humano em que o terapeuta, à semelhança da mãe suficientemente boa, cuida do paciente – mais atento às questões do holding e do manejo no setting do que às interpretações dos desejos do sujeito.
A mãe suficientemente boa, para Winnicott, é aquela que se adapta ativamente aos ritmos e às necessidades do bebê – conceito que gerou uma nova forma de atuação clínica e influenciou a nossa visão da Psicologia Biodinâmica.
E quanto às falhas na constituição do sujeito e manejo materno, salienta:
A Psicologia Biodinâmica, com suas técnicas corporais, vem contribuindo para a reparação de falhas na constituição do sujeito e para a retomada do desenvolvimento emocional do paciente em processo de análise; além disso, propicia maior integração psicossomática, alivia sintomas e promove a elaboração imaginativa das funções corpóreas para que o verdadeiro self do indivíduo possa florescer.
A Massagem Biodinâmica pode ser vista como um processo que busca a reparação de falhas do manejo materno; já o setting é um lugar seguro e confiável, no qual o paciente pode reviver traumas antigos e diminuir relações defensivas que perturbam o seu viver(…). É um instrumento terapêutico importante, que permite ao paciente experimentar diversas sensações: ser ninado, embalado, protegido, nutrido, contido, acolhido e vinculado, permitindo o descongelamento do trauma, a retomada do processo maturacional, o fortalecimento do ego, o desenvolvimento da identidade, a autonomia, a autoafirmação e a autorrealização. (CINTRA, 2014, p. 36-37)
E Tito ama o toque. Eu o abraço na chegada e na saída, considero isso um holding. E lhe jogo beijo lá fora da sala. Ele repete. Ele já não traz mais papéis picados, velhos, tampinhas, etc.
Ricardo Rego, assim fala do toque e da massagem:
Dentro da perspectiva biodinâmica, o toque físico e a massagem seriam dispositivos úteis para o manejo de pacientes regredidos, pois eles muitas vezes convidam os núcleos primitivos a se fazerem vistos e ouvidos, na medida em que constituem algo que tem grande semelhança com os cuidados que os bebês recebem no período de dependência absoluta. É claro que aqui o fundamental não é a técnica, e sim a presença terapêutica. (…) Acredito que o toque é uma linguagem mais natural do que a fala para dar suporte à comunicação de conteúdos desse período, dado que o ser humano nessa fase só recebe e emite sinais não-verbais.
Conforme Dias (2003, p.155), ‘no campo experiencial, envolvendo bebês e psicóticos, a compreensão não acontece por via exclusivamente intelectual ou mental, mas exige um tipo de proximidade e de comunicação com o paciente, semelhante ao contato entre a mãe e o bebê. A essa linguagem pertence, essencialmente, o silêncio, a comunicação pré-verbal e a pré-representacional. (REGO, 2014, p. 250-251)
Em nota de rodapé, acrescenta:
Para que isso ocorra a contento, é necessário que o analista desenvolva sua capacidade de empatia e seja capaz de se colocar num estado semelhante ao que Winnicott chamou de “preocupação materna primária”.
Tito quando termina a massagem vai brincar: agora a brincadeira já tem uma função simbólica. Ele está melhorando o vocabulário, fala algumas palavras que consigo entender.
Adora brincar com homenzinhos e carrinhos tipo jipe. Achou um patinho amarelo no meio dos brinquedos e começou a cantar: “quá quá quá”, e eu entendi que era a música da televisão. Então cantei para ele fazendo os movimentos com o pato. Adorou e sorria, depois ele fez os movimentos com o pato.
Dias (2003) traz a idéia winnicottiana a respeito de criatividade originária, um conceito que é inédito no âmbito da psicanálise:
(…) Winnicott formula a ideia de uma criatividade psíquica originária que é inerente à natureza humana e está presente desde o início: ‘Cada ser humano cria o mundo de novo e começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento e da primeira mamada teórica.’ (1988, p.130) É o bebê, diz Winnicott, ‘que cria o seio, a mãe e o mundo’ (1989xf, p.341). Intimamente relacionada à espontaneidade básica – oposta à reatividade -, a criatividade originária participa da constituição do que será o si-mesmo unitário, visto que ‘é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (si-mesmo)’ (1971r, p.80).
Tanto nesse momento inicial como em qualquer fase posterior, a criatividade diz respeito não a algum fazer ou produção original ou artística, mas ao modo como o indivíduo se relaciona com o sentido de realidade que caracteriza um dado momento do amadurecimento; a isto se acresce, com o tempo, a capacidade de transitar pelos vários sentidos de realidade sem perder o contato com o seu mundo pessoal e imaginativo. Ao longo da vida, e amadurecendo, o indivíduo saudável continuará a exercer a criatividade de formas cada vez mais complexas, mas é sobre a criatividade originária que todo viver criativo pode ser construído: ‘A criatividade é a manutenção, através da vida, de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo’ (DIAS, 1986h, p. 32)
Havia uma falta ao atendimento de vez em quando, e isso atrapalhava um pouco o andamento do processo no transcorrer do ano, faltas sem justificativa plausível, devido aos desarranjos da mãe. Com a fonoaudiologia perdeu a vaga.
Essa é uma dura realidade… e o sistema municipal não ajuda… a assistência social ficou cada vez mais distante dos outros trabalhos municipais e quando pedi uma intervenção, simplesmente visitaram o lar, mas parecia falar outra língua que não era a minha…
Infelizmente é uma mãe que também precisa de todos os cuidados, mas que o meio não oferece. Por isso, a orientação a fazia centrar mais na sua responsabilidade, até mesmo com os outros filhos… Tito ainda precisa de muitos cuidados, é uma criança com necessidades especiais, voltando à teoria winnicottiana, em Dias (2003):
Propiciar ao bebê que ele possa criar aquilo que encontra é um cuidado de extrema delicadeza que não está contido em nenhum fazer específico da mãe, mas no ‘como’ ela lhe apresenta as pequenas amostras de mundo que ele está apto a experienciar no âmbito de sua onipotência. (…) Por outro lado, se o bebê fizer o gesto e a mãe estiver ausente, distraída ou concentrada em si mesma, o gesto ficará parado no vazio, à espera de algo que não vem.
Em nota de rodapé, acrescenta:
Isto configura o trauma do não-acontecido, que será guardado, não no inconsciente reprimido – o que já suporia um alto grau de amadurecimento, com uma realidade psíquica interna constituída -, mas no inconsciente ‘não acontecido’, que é a forma negativa do inconsciente originário.
E continua:
O resultado, (…) não é a frustração – uma vez que ainda não há desejo, que é um sentimento altamente sofisticado próprio de um eu unitário -, mas quebra na continuidade de ser (breakdown). Se este é o padrão de atitude ambiental, pode ocorrer aniquilação. (DIAS, p. 172-173)
Houve uma sessão em que, enquanto eu orientava a mãe, ele pareou todos os personagens do jogo da memória do Chaves! E eu antes tentava fazer com ele, mas ele não parecia se interessar…
Certa vez tentou pular corda, mas não conseguiu. Mas já estou vendo seus progressos.
Comecei a notar certa regressão nele, pois um dia fiz a massagem, não percebi ele muito presente, e notei ele diferente, brincou depois com uma tartaruga que é desmontável, e com um barbante ele a puxava pela sala, e na hora de ir embora quis levar o pedaço de barbante. E neste dia estava também com um canudo que não largou. Levou os dois embora… era pra mim aquilo um objeto transicional novamente.
Em conversa com a mãe, descobri que ela judia constantemente dele (e me disse para perguntar para o filho de 7 anos!) que às vezes bate em sua cabeça ou belisca-o…. Ela admitiu que só lhe dá carinho quando Tito está doente! E tantas vezes ele chegava parecendo um bichinho assustado… Ela não sabe como lidar com ele, quer interna-lo em algum lugar. Em casa ele fica mais no quintal, de terra, como um cachorrinho… ela não consegue ver quantos progressos o filho já teve! Por isso conversamos muito, eu emocionada, com tanta tristeza, por gostar tanto daquela criança e não conseguir ver o tamanho do amor desta mãe por ele…
Vejamos novamente na teoria winnicottiana:
O exercício incompadecido do impulso instintual, além de ser a mais primitiva das experiências de integração, é altamente gratificante para o bebê. (…) O bebê depende inteiramente do modo como a mãe recebe as manifestações decorrentes do fato de ele estar vivo, ter necessidades e de ocupa-la em todos os seus aspectos; depende do modo como ela responde ao gesto espontâneo. (…) Às vezes, há, na reação da mãe, uma espécie de desaprovação ao que está vivo ou ao que parece agressivo exatamente por estar vivo. Pode também ocorrer de ela estar enferma. Uma depressão materna, por exemplo, pode traumatizar o bebê de forma especializada: cheio de vitalidade, o bebê avança para o seio e é amortecido pelo contato com um objeto sem vida (…)
Se, ao invés de voracidade, aparece avidez (greediness), então já não se trata mais de manifestação de vitalidade. A avidez é uma espécie de sofreguidão imperiosa, que vem acompanhada de sofrimento, e aparece insaciável. Neste caso, é preciso supor que a criança está sofrendo algum grau de privação (deprivation). Este tipo de privação decorre do fato de alguma necessidade pessoal primordial não estar sendo reconhecida e suprida; em qualquer de suas variantes, a avidez significa a busca compulsiva de um cuidado especial, um cuidado que poderíamos chamar de uma ‘terapia’ a ser fornecida pela mãe que causou a privação.(…) Os traumas derivados das falhas ambientais, as quais frequentemente se devem ao estado emocional ou às anormalidades psiquiátricas da mãe, inibem a espontaneidade do bebê, impedem-no de simplesmente ser, relaxar, viver experiências instintuais; deixam uma espécie de sobressalto que fica nele incorporado. Aí embutida, existe uma raiva, que advém da perda do ser, resultante dessas experiências traumáticas. (DIAS, p.187-188)
Na sessão seguinte perguntei à mãe como foi após nossa conversa, e ela relata que quando está nervosa, o filho de 7 anos pede a ela para sair de perto do Tito e ele a lembra do que lhe falei… sobre amor… sobre o que ela também ficou na falta… E eu lhe dei um abraço carinhoso, e a elogiei, e disse-lhe que sabia que ela é uma boa mãe! Sinto que ela gosta de mim, e precisa de uma “mãe”, ou alguém que ressignifique uma mãe para ela… e pelo que vejo, sou neste momento, esta pessoa também…
Terceiro período: Fevereiro à dezembro de 2015
Novamente em fevereiro como já era de se esperar e apesar das orientações, a mãe e a criança não aparecem… Temos que ligar e cobrá-la das faltas, senão seu filho perderá a vaga.
Quando retornam, a massagem estava constantemente em nossos atendimentos, que é uma vez por semana. Era raro o dia em que não era realizada, e depois continuávamos a interagir com os brinquedos.
Em outra sessão, Tito contou os números de encaixe de um relógio de madeira até 10. E está com a dicção bem melhor, e ainda está sem os atendimentos de fonoaudióloga. Pediu-me um brinquedo que estava no alto da estante, sorrindo e me olhando nos olhos.
Em maio, vi a gravação do celular da mãe, um vídeo onde ele fazia apresentação, junto com a turma da sala de aula, para o Dia das Mães, ele fazendo os mesmos gestos dos amigos, não era de forma perfeita, mas ficou lindo! E faz o que as outras crianças também fazem (há uma menina, que segundo a mãe, fala que é namorada dele, e ela o abraça no vídeo). Fiquei encantada… nesse mesmo dia, no atendimento, ele montou o lego de trenzinho, depois o lego normal, em que apanhou o “mamute” que uma outra criança fez e também o robozinho que eu tinha feito. E, incrível: juntou os ombros (parece braço) do mamute com o robô, me olhando nos olhos! Foi muito significativo aquele “dar as mãos”, ou os braços, pois podia significar um abraço…
Às vezes brincamos com tintas e massinha para lidar com a fase anal…. ele gosta, porém, quer limpar as mãos a todo instante… sinal que já não vê as fezes como algo comestível.
Mesmo tendo sido iniciados o processo de separação e a atividade simbólica, isto não garante que a imagem e o significado do objeto transicional se mantenham vivo, a não ser que o cuidado materno concreto permaneça sustentando a continuidade do processo. Ou seja, o bebê pode utilizar o objeto transicional para fazer as vezes da mãe, enquanto o objeto subjetivo está vivo, é real, suficientemente bom e não muito persecutório. (DIAS, 2003, p.239)
Constantemente oriento a mãe, mostro fotos dos nossos momentos no atendimento: massagem, caretas no espelho, montagem de lego, quebra-cabeças, incentivo ela também, para despertar nela mais valor ao filho… mais orgulho, mais complacência, carinho… e brincar em casa com ele! Terem momentos juntos…
Continuamos geralmente com a Shantala, ele continua se descobrindo e olhando no espelho, e eu vou dizendo, nomeando cada parte de seu rosto que ele mexe ou aponta, como a mãe que vai dizendo ao bebê. Enquanto toco seus outros membros também vou falando… e ele presta atenção a tudo e tenta repetir.
Em outra sessão, a mãe contou que ele esteve em consulta com outro neurologista, está tomando agora, além da Carbamazepina, o Risperidon, e a mãe diz que tem sido uma benção, pois ele está mais calmo e comendo bem melhor também. Eu lhe fiz a Shantala, cantando as músicas que ele gosta, ele ri e presta atenção, estava até gargalhando, e com mais atenção a tudo…
Oriento mãe para tirá-lo da fralda, mas ele “acostumou-se a fazer no quintal”. Ela diz que o põe no banheiro, mostra, como eu já orientei, os irmãos fazerem, até o tchau que os irmãos derem ao cocô será um bom exemplo, mas ele ri e vai para o quintal fazer. Talvez seja uma forma de dizer: eu quero assim….
Quando ao invés de confiabilidade, há um padrão de invasões às quais o bebê tem de reagir, o sentido de ser se perde e só pode ser recuperado por um retorno ao isolamento. (…) Se as invasões forem excessivas, não haverá nem mesmo lugar de descanso para a experiência individual; neste caso, estão ausentes as condições para que o indivíduo venha a tornar-se uma unidade integrada:
O ‘indivíduo’, então, se desenvolve como uma extensão da casca, e não do cerne, e como uma extensão do meio ambiente invasor. O que resta de um cerne fica oculto, sendo difícil acha-lo mesmo em uma análise muito profunda. O indivíduo, neste caso, só existe enquanto não encontrado. (DIAS, 1958b, p. 297)
Este ponto é essencial para o entendimento de certas patologias psicóticas, visto que, segundo o autor, ‘o material dos estados de não-excitação está mais próximo de um estudo sobre a psicose’ (1965t, p.40). Uma interpretação possível para esta declaração é a seguinte: a dificuldade básica nas psicoses é a do contato com a realidade, e isto está associado ao fracasso da tarefa de dar início às relações objetais, tarefa que é própria dos estados excitados. No entanto, para que o impulso e o encontro com o objeto sejam sentidos como reais, é preciso que partam de um estado de repouso. Ou seja, o retorno ao relaxamento da não-integração é a condição necessária para que o que quer que se dê nos estados excitados seja sentido como real e possa favorecer a integração num si-mesmo também sentido como real. Se o que se estabelece é uma impossibilidade de descanso, o gesto já estará alienado na base.
Novamente em nota de rodapé, acrescenta:
“Este tema é da maior importância na configuração das patologias esquizoides”. (DIAS, 192-193)
Há sessões que ele lá fora chora para entrar, e corre para o brinquedo que tanto queria: geralmente o lego para construir algo. Deita-se na sala para montar…
Ensinei-lhe a fazer quebra-cabeças com poucas peças: eu trouxe um que sabia que ele ia adorar: do pica-pau. Acertei na escolha. Esse quebra-cabeça foi uma constante dali então em nossos atendimentos. E eu e ele fazíamos o som do pica-pau do desenho da televisão: “Eheheh eheheh heeeee”.
Agora toda vez que vai embora, sabe que tem que levar o cartão de controle de frequência e me dá tchau e manda beijo sem que eu peça.
Quarto período: Fevereiro à dezembro de 2016
Novamente a mesma história no início do ano… mãe demora a trazer o filho, mas retorna.
Houve uma sessão em que ele chegou bem agitado e eu queria fazer-lhe então a massagem, mas ele gesticulava, e tentava me dizer algo, resmungava alto, falava enrolado, e ajoelhou-se no tapete, e eu perguntava, ele puxou a bermuda e me mostrou a fralda suja… Estava lotada! Devia fazer tempo… eu o levei até a mãe, que foi trocá-lo. Percebi mais uma vez o quanto essa mãe não tem discernimento para entender esse filho, ou não tem capacidade para isto… é algo piedosamente triste. Mas como ela vai dar o que não teve? Neste dia, como o tempo era curto, fiz a massagem apenas em decúbito dorsal. Ele gostou mesmo assim. Ao passar pela pedagoga que também o atende, ele disse: “Oi, tia!”
Na sessão seguinte ele faltou.
Na próxima, soube que seu pai amputou uma perna. Ele veio e estava bem calmo, e quando me viu no pátio, pulou em meus braços e me deu um abraço gostoso, e tirou os pés do chão! Fiquei surpresa! Mãe contou então o ocorrido com o pai dele. Fiz a massagem, e depois, ao terminar, ensinei-lhe a beijar meu rosto. Ele só encostou-me os lábios, dei-lhe outro beijo e pedi novamente que me beijasse: ele então beijou-me e fez até estalo! Chamei a mãe e eu contei o que havia acabado de ensinar-lhe, que era só uma questão dela querer ensinar também.
Em outra sessão brincou com um tanque de guerra de lego, brincou pela sala toda; e eu coloquei soldados em cada jipe e dávamos voltas pelo chão, ao redor do tapete, ele com sons de carro e eu também; e sempre me olhando nos olhos o tempo todo; tiramos e colocamos homens dentro de uma casinha de lego, vi que ele é muito cuidadoso… era hora de ir embora, e eu quis deixar ele mostrar para a mãe, mas ao abrir a porta, a irmãzinha entrou direto e destruiu aquele tanque e a maior parte da casinha… ele ficou paralisado e não mais me ajudou a guardar! Eu verbalizei o seu descontentamento, sua decepção. Contei para a mãe qual era nossa intenção, e pedi a ela para olhar em casa também a menina para não destruir o que ele tem construído, pois ele está passando por um período de criatividade, construção de si mesmo… Ela me contou que em casa está cada vez melhor, o pai está mais amoroso com todos após a amputação da perna, principalmente com o Tito, parece que “a diferença”, o ser diferente das outras pessoas está aproximando ele do filho.
Como ele não tem mais aparecido com objetos transicionais, suponho que está confiando mais na realidade externa:
Deve-se portanto, assinalar que a realidade e o caráter simbólico do objeto transicional dependem da vivacidade e da confiabilidade do objeto subjetivo que, por sua vez, depende da permanência e da vitalidade do objeto externo. A perda do objeto subjetivo é ‘uma grande catástrofe’, algo que pertence à ordem de coisas que são chamadas, na teoria winnicottiana, agonias impensáveis. Se a criança ‘perde’ a mãe, durante um período demasiadamente longo, ‘o objeto subjetivo morre’ e a capacidade simbólica do objeto transicional se esvai. Por isso, apesar da importância do caráter simbólico do objeto transicional, Winnicott faz notar que, no início, o importante não é tanto o seu valor simbólico, mas a sua realidade. (…) (DIAS, 2003, p. 240-241)
Vejo que uma grande catástrofe aconteceu na fase das agonias impensáveis,
O medo de perder a capacidade de relacionar-se com objetos, cujo ponto de origem pode ser localizado na perda do objeto subjetivo, é uma das experiências traumáticas – uma agonia impensável – que estão na base das patologias psicóticas. (DIAS, p.242)
Em uma das sessões, quando fui busca-lo estava feliz com a minha chegada, e pegou meu braço e passou por cima de sua cabeça até seu ombro, chegando minha mão até seu peito. E fomos rumo à sala de terapia, olhei para a mãe, que me disse que esse era o jeito que ela anda com ele… fiz massagem no campo sutil. Ele não entendia, mas ria. Apenas colocava minha intenção de que as energias fluíssem em seu corpo, e que ele progredisse nos aprendizados… E só passei óleo nos pés. E dessa vez pegou o lego e fez torre para derrubar depois, contamos: “1,2,3, madeira!”, ele adorou, aprendeu rápido. Falava a todo instante também: “mamãe”, “papai” – eu admirada batia palmas, e ele então ria.
Chegou um dia me chamando de “Val”, e eu amei! A todo instante era “Val”, aquilo foi um presente… Diz também “Pica-pau”, e imita monstro da televisão, fazendo voz grossa, estranha… eu dou risada; e ele também gosta. Ele punha o trem que havia feito com lego, um trem muito comprido, admirado o arrastava pelo chão e fazia o som que eu já havia ensinado, e usando de imaginação pôs o trem atrás do colchonete encostado na parede, e me chamou para olhar. O trem ali, no cantinho, parecia descansar, como se o trem também precisasse de um momento só seu… como é a terapia para o Tito…
No dia 30/11 chegou fazendo muitos sons de animais e falando: “3,2,1, já!”, pegou uma bola, chutava, caía ao chão e gritava: “GOOOOL”. Quando cansou-se fomos para a massagem para relaxar…
Também pega ao telefone de brinquedo e diz: “Alouuu” e resmunga tentando dizer alguma coisa e depois diz “tchau”.
Houve uma sessão em que ensinei-lhe o Lince, para achar figuras da Turma da Mônica, e ele adorou! Tem ótima atenção… fico espantada quanto ao potencial dessa criança. Neste mesmo dia, a pedagoga, no pátio, mostrou-me uma foto dele segurando bem o lápis, e uma foto sorrindo, sua compreensão vendo assim, parece ótima.
Continuo fazendo a massagem Shantala, ou também O Toque da Borboleta.
Ele já diz: “ó, mãe…”, e “obrigada, de nada” e “desculpa” – chegou dizendo todas estas palavras num só dia, como se tivesse aprendido e quisesse me contar. Jogamos tapa-certo, e ele demonstrou ter já uma ótima atenção, mesmo que ainda se canse logo e comece a brincar fugindo à regra… Ao final do atendimento, fui dar uma palavrinha com a mãe, e ela disse que estava engasgada, por ver uma pessoa ralhar com seu filho, e ela não gostou. Percebi que a mãe realmente é Borderline, rumina idéias, fala direto sobre aquilo, e provavelmente, o filho dizia aquelas palavras repetindo o que passou ouvindo da mãe nos desabafos, ao não aceitar o episódio dessa pessoa ralhar com o Tito; já a encaminhei ao CAPS, mas imagino que certamente não ira´.
Ele já conta os animais corretamente até 19. Quase já monta o quebra-cabeças do Pica-pau inteiro, tem já muita noção visual-motora, dei pouquíssima ajuda. Todos os momentos, de massagem ou de brinquedo, ele me olha nos olhos, é um falar através do olhar… eu o entendo, e basta.
Em outra sessão novamente, fez os robôs darem as mãos e ficarem assim juntos, me olha para que eu valide sua intenção. E eu, simplesmente o compreendo. E vibro.
No ano de 2017, de fevereiro a março aguardamos o comparecimento da mãe com o filho, mas como eles não compareceram, demos como desistência…
E eu senti muito a sua falta.
Em outubro encontrei com a família na rua: a mãe levava o Tito e a menina para a escola, era hora do almoço. Eu os vi de costas e os reconheci. Chovia, e os três estavam embaixo de um guarda-chuva. Chamei a mãe pelo nome. Ao virar, notei: estava grávida!
Eu a cumprimentei, falei com Tito, disse-lhes que tinha saudades e ali soube que o bebê era para dezembro. Ou seja: descobri o porquê dela ter deixado de levar o filho aos atendimentos – provavelmente estivesse com “vergonha”, ou devido à carga estar maior agora…
Conclusão
Como terapeuta o desejo de fazer o melhor pelo meu paciente é muito importante desde o primeiro contato. Abraço cada caso como o único, e dou o melhor de mim, mesmo sendo um serviço público, pra mim não faz a menor diferença. Preocupo-me em dar o meu melhor, mesmo sabendo que a equipe possa não me compreender, mas a minha sorte, é que se tratando de Winnicott, um pouquinho que seja de sua teoria, as pedagogas, elas já ouviram falar, ou até têm algum conhecimento.
Este paciente, Tito, como aqui é chamado, não se sabe como será sua vida futura, mas seu desenvolvimento emocional e intelectual comprometido está. O que pude fazer eu sinto que fiz: dar minha contribuição para que ele pudesse desenvolver o seu potencial ao máximo que poderia atingir naquele período. Às vezes me esbarro também na insegurança, e penso: será que haveria mais ainda por fazer?
Que a vida possa agora lhe reservar todos os recursos para que ele se desenvolva mais, que sua tendência inata ao amadurecimento possa ser o alicerce para uma vida melhor, que ele possa desenvolver seu potencial criativo, possa se sentir um eu verdadeiro, espontâneo.
Concluo que a teoria winnicottiana me trouxe a luz, ajudando-me a entender o caso, e que o conhecimento das massagens biodinâmicas também, além de toda amorosidade, a relação, a intenção, o método da parteira, tudo que prega a Psicologia Biodinâmica, é primordial no trabalho com o outro…
Ser analista biodinâmico é estar sempre vivo, como eu estava sempre com o Tito… e isso me remete a lembrar dos pré-requisitos que Jeff Blume alerta serem fundamentais a um bom terapeuta: compreenda, embale, faça terapia, seja consistente, fique presente, seja empático, comprometa-se, etc. E é isso que todo terapeuta tem que ser. Fico feliz, com a alma leve, sabendo que fiz tudo isso da melhor forma que pude, fui vital, útil, expansiva, necessária…
Referências Bibliográficas
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