“O termo ‘peste emocional’ não é uma classificação depreciativa. Não implica malevolência consciente, degeneração moral ou biológica, imoralidade, etc. Um organismo cuja mobilidade natural tem sido continuamente contrariada desde o berço desenvolve formas artificiais de movimento. Coxeia ou anda de muletas. Do mesmo modo, um homem atravessa a vida com as muletas da peste emocional quando as expressões naturais e auto-reguladoras da vida são suprimidas desde o nascimento” pg 305 analise do caráter Francisco acaba de sair de uma depressão profunda quando chega ao consultório,e descreve que sofria de uma falta de reação ao mundo. Há um mês atrás podia ficar dias sem sentir forças para sair da cama, comer ou tomar banho, suas pernas tremiam ao ponto de não conseguir mais subir as escadas de sua casa sem ajuda e permanecia sem acessar o andar de cima.Ele era claramente incapaz de achar energia para se mover no fluxo da vida. Esse fora o único período em que não trabalhou. Dono de uma empresa de seguros se orgulhava pela dedicação que tinha a empresa, a função imprescindível que ocupava e a pressão resultante. De volta ao “mundo” assumiu novamente a rotina maçante (como ele mesmo dizia) e opressora, em seu rosto uma máscara importante para a encenação que realizava todos os dias em seu trabalho. Ele necessitava se sentir aceito e pertencente socialmente. Conta que ao iniciar o tratamento com psicotrópicos conseguiu novamente andar por suas pernas executando suas tarefas com afinco, mas estava como que num alojamento precário no mundo e interiormente dizia não sentir nada. Observando-o desde sua chegada a sala do consultório, a sensação era de que ele não estava ali e não sabia se estava de fato em algum lugar. No rosto um olhar distante, na queixa uma sensação de vazio e rigidez. Sua fala me atingia de modo monótono, amortecida, sem variação de intensidade. Francisco se comunicava do mesmo modo que vivia. Ele medicado escolheu ir em frente inflexível em sua rigidez de máquina. Rigidez e desânimo de uma vida interna claramente manifesta em seu corpo e em seu modo operante de conduzir a vida. Essa era a manifestação da sua personalidade secundária que de acordo com Boyesen “A personalidade secundária é a expressão do choque na luta pela vida. A energia está encapsulada e o contato com a bioenergia foi perdido” (boyesen, pg 68).Franscisco se impossibilitava de sentir sua circulação libidinal e o cansaço tomava conta de seu corpo e rosto. Dono de um rosto hipotônico e uma respiração difícil de detectar, era possível cogitar a hipótese de que: pela tensão emocional acumulada e inibição da espontaneidade havia naquele corpo uma tensão muscular crônica (que foi confirmada nas massagens), que o impossibilitava de estar presente na sessão, ele não sabia o que dizer, não se abria, não sentia. Na depressão: “Não sente as perturbações no funcionamento de seu corpo, sua mobilidade reduzida e a respiração inibida, pois se identifica com ego, sua vontade e sua imaginação. A vida de seu corpo, que é a vida no presente, é considerada como irrelevante….” (Lowen, 1983,og 23) Francisco ainda não estava pronto para o encontro, do mesmo modo que ainda não havia chegado ao consultório, e que para ele era ainda um não-lugar. Habituado aos não-lugares, ele não sabia como permanecer e pertencer à sala de terapia, como existir em um lugar, em um corpo. “Não-lugares desencorajam a idéia de “estabelecer-se” (…) aceitam a inevitabilidade de uma adiada passagem, às vezes muito longa, de estranhos, e fazem o que podem para que sua presença seja, “meramente física” e socialmente pouco diferente, e preferencialmente indistinguível da ausência, para cancelar, nivelar, ou zerar as idiossincráticas subjetividades de seus “passantes” (Bauman, 2001, p 119 . Cadernos humaizasus, 2015) Francisco estava acostumado aos não-lugares, sociais ou pessoais a característica frequente era da impessoalidade, espaços comuns, sem potencial de encontro, porque para ele não fazia sentido. Ele sem saber reproduzia a lógica social, onde cada vez mais os lugares são passagens, são feitos para a não-demora, para o acesso rápido e fácil, exigência de um tempo veloz. Mesmo sua casa era impessoal, mudou-se há um ano por conta da esposa, construiu a casa mas não participou das escolhas. Agora não sentia aquele espaço como seu. Indagado sobre a possibilidade de ter um cômodo na casa que pudesse se sentir a vontade, ergueu os ombros, como se nada pudesse ser feito. Do mesmo modo que na sessão terapêutica ele também sentia que nada pudesse ser feito para ajudá-lo num tempo que passava longo. Ir em direção a um lugar lhe causava medo, insegurança, era um terreno não conhecido onde ele teria que ter a coragem para estar presente, permitir o encontro, sofrer a experiência e sentir. Esta situação durou cerca de 2 meses, a couraça começou a ceder, se afrouxar diante da receptividade que sentia. Ali ele começou a compreender que poderia ser ele mesmo sem o medo de meu julgamento. Eu permanecia presente em suas queixas e dificuldades, num espaço da sessão para que a experiência realmente acontecesse, recebendo numa postura que Boyesen,1986, p.102, chama de método da parteira: “Chamo este método terapêutico de método da parteira. O terapeuta deve estar separado de sua própria necessidade de estar ativo, de falar, etc., a fim de que possa estar passivo, paciente e que possa deixar desenvolver o processo dinâmico curativo. O terapeuta deve simplesmente oferecer uma aceitação e um amor total para que o “estímulo interior” possa se desenvolver completamente e transformar o ser do paciente.” Francisco pode então começar a se expressar num tom mais profundo e suas queixas não eram mais apenas um acúmulo de palavras mecânicas. Por várias sessões o paciente revia suas escolhas no presente, e buscava modificar o que queria fora do espaço psicoterápico, porém na sessão seguinte reclamava que era apenas estar no mundo que se desconectava de si, de seu ritmo interno, recém descoberto, frágil, e lhe voltava à sensação de falta de energia, inutilidade e impotência. Francisco reproduzia a experiência de outros tantos humanos na sociedade atual e foi importante para ele conscientizá-lo da natureza desumanizadora do tempo. Um tempo social que não é regido pelo tempo interno das pessoas, tempo artificial, tempo máquina acelerado. Para Safra, nós, como psicoterapeutas, devemos compreender as possibilidades de existência humana do paciente em sua história nesta realidade. Uma realidade atual que “coisifica” o ser humano reduzindo-os a mera abstração. Abstração sem ritmo, sem tempo interno. Para Francisco até iniciar a psicoterapia só existia o tempo organizado socialmente sentido como invasão. Seu tempo subjetivo não havia se constituído e ele não o sentia. Percebia nas sessões que havia um desencontro precoce do paciente com seu ritmo interno o que agravava sua sensação de impotência assim que saia da sessão psicoterápica. Propus, então, que realizássemos exercício de respiração e que ele repetisse esse exercício todos os dias em algum período de seu dia. O objetivo era ajudá-lo a conectar com seu ritmo interno, a descobrir seu tempo subjetivo, sabendo que assim também abriria as portas para um tempo compartilhado comigo e com os demais. “a entrada no tempo compartilhado só pode ocorrer de forma satisfatória se o tempo subjetivo foi bem constituído. (…) É um movimento que possibilita que ela tolere as flutuações entre presenças e ausências (o não-eu) e se instrumentalize na habilidade de utilizar a imaginação para lidar com essas experiências. Com estes recursos, ela consegue colocar a nova experiência sob o domínio de sua criatividade. Paulatina e criativamente, ela se movimenta do tempo subjetivo ao convencionado nesse percurso, inicia-se o uso do tempo transicional. O tempo do faz-de-conta.” (Safra, 2005,p.67) Para Safra o tempo transicional é o tempo despendido para com um começo, meio e fim numa atividade do faz-de-conta, do encantamento. Quando a pessoa não tem seu tempo subjetivo estabelecido ela não consegue ter a dimensão de um fim, e toda a situação psíquica é vivida como eterna. Este estado preenche o ser e lhe confina na angústia, visto que sente sua situação como sem saída, aprisionado em um estado psíquico de estática. Nas palavras de Safra “É uma experiência terrível, pois o indivíduo sente-se em espera, em depressão, em ansiedade para todo o sempre. Sem poder viver ou morrer.” (Safra, 2005,p.68). Assim compreendia a extensão de como Francisco se sentia fora do mundo, fora do tempo e sem perspectiva do encontro com o Outro e para mim era só com o contato com seu tempo subjetivo que ele conseguiria se conectar, sentindo a continuidade da vida e acontecer o si mesmo no mundo, ou seja, resgatar sua personalidade primária. Iniciamos com uma técnica simples, que Gaiarsa descreve em seu livro “Respiração e circulação”, o paciente deitado em decúbito dorsal com as mãos formando um U para cima ao lado da cabeça, suas pernas juntas flexionadas em direção ao tronco escolhem um lado para permanecerem e a cabeça se projeta para o lado oposto das pernas. Após um período se inverte a posição das pernas e cabeça. Pra mim foi surpreendente quando Francisco me olha e pede para que eu realizasse juntamente com ele o exercício. Asensação era de que para ele era importante uma presença que respeitasse e seguisse seu ritmo, um outro ali, se fazendo presença para que o gesto ocorresse e ele pudesse enfim se reconectar ao seu tempo interno. Havia outro motivo para os exercícios de respiração. O fato era que o paciente apresentava uma respiração superficial, curta, sem movimentar em nada o peito. Ele respirava como vivia, comprimido, sem se posicionar no mundo, desvitalizado. Posição depressiva típica, condição que deixava claro seu cansaço e falta de ação. “mais importante, contudo, é a diminuição da absorção de oxigênio devido a marcada diminuição da atividade respiratória (…) A relação entre a disposição depressiva e a respiração depressiva é tão direta e imediata que qualquer técnica que ative a respiração afrouxa a garra do estado depressivo. Isto acontece pelo aumento do nível de energia do corpo e pelo reestabelecimento da parte do fluxo de excitação corporal.”(Lowen, 1983, p.68) Com esta técnica foi possível alongar os músculos da respiração, que acreditava eu estarem retesados: tanto quanto notava quando o paciente estava deitado um acúmulo de fluido na região abdominal e uma má distribuição energética. “Esta má administração energética na pessoa, sempre causada de fora para dentro, do social para o pessoal, e produzida por desequilíbrios de nossa vida psíquica e emocional, devido, sobretudo, a bloqueios permanentes da sexualidade; passa também a ser a causa dos sintomas neuróticos, como as fobias, a angústia, a ansiedade, a depressão, as incompetências e impotências criativas, sexuais e afetivas (Freire, 2006, p.35) Era necessário aumentar a carga energética e cooperar na dissolução das couraças, afim de Francisco sentir-se mais disposto a agir no mundo em sua volta. Isto feito com muita delicadeza, sem oferecer informações e sensações a mais do que o paciente poderia aceitar. O exercício de respiração foi também realizado todos os dias em sua casa, e aos poucos sua resistência foi diminuindo. “E que ‘fazer amizade com a resistência é ser como um receptador, que aceita e explora sua resistência; qualquer que seja sua manifestação em você, ela está ali por razões valiosas, pois foi criada inconscientemente, para protegê-lo contra a dor. Como alguém que ajuda preste atenção à resistência no seu cliente, respeite suas manifestações contra a entrega. Saiba que se você tiver um procedimento gentil, a resistência poderá se dissolver sob suas mãos – se você penetrar estupidamente, ela apenas aumentará. (2 pg.115). Seu trabalho se baseia em quem você é. Como alguém que ajuda, não analise seu cliente, deixe que ele dirija seu procedimento. E você: você olha, você escuta, você sente, você respira, você pensa. Então deixe suas mãos falarem”. (2 pg.115).” (Milessi, 2010, p. 06) Ao mesmo tempo em que ocorriam as sessões de psicoterapia, Francisco se deparou com um motivo a mais pra se focar em seu desenvolvimento interior, é que sua filha completava 2 anos e cada vez mais procurava o pai para afeto e brincadeiras, o que o deixava claramente desconcertado, sua frase era “não quero ser como meus pais foram comigo” falava em um tom desolado, de quem não conseguia ofertar e retribuir os carinhos que recebia sem exigências. Francisco se incomodava – sentimento que o fez sair da inércia que o abafava, ao mesmo tempo que sua respiração também começara a se sofrer alterações. Ele deitava e logo conseguia inspirar com mais profundidade, estava de fato afrouxando sua couraça em alguns momentos, porém a expiração era curta, como se o ar tivesse sido retido, do mesmo modo que ainda não conseguia demonstrar seus sentimentos. Trabalhei, então, com a mão instalada sobre seu peito exercendo uma leve pressão, pedia para que ele inspirasse impulsionando minha mão para cima, e em sequência soltasse o ar. Na expiração ajudava o movimento com minha mão, pressionando para baixo o peito de forma não invasiva. Repetia esse exercício algumas vezes, aprendido em aula da especialização em psicologia biodinâmica ministrada pela coordenadora Gloria Cintra, até que em alguma nova inspiração soltava a mão do peito e o deixava respirar livremente. Com este exercício foi possível a respiração de Francisco se aprofundar ao mesmo tempo que se dava conta do quanto retinha o ar ao invés de expeli-lo livremente. Relacionou esse acontecimento a sua dificuldade de expressar seus sentimentos enclausurados desde idade muito remota e pode a partir daí rever sua infância, agregando ao seu discurso das memórias certa emotividade. Filho caçula, Francisco tem 1 irmão sete anos mais velho. Entre um e outro sua mãe tivera dois abortos espontâneos de meninas, devido a esse fato sua criação fora coberta de zelos, impedimentos, e solidão. “a primeira situação é aquela em que a mãe se apresenta ao bebê como um objeto intrusivo. Ela se torna objeto parao bebê antes que ele tenha condições de alcançar a experiência de uma relação objetal. A mãe aparece em presença excessiva, intrusiva, intensificando a percepção do bebê de uma realidade objetiva. Há diferenças significativas entre a possibilidade de um bebê experimentar, no início de sua vida, a realidade de forma subjetiva ou de forma objetiva. Na maneira subjetiva, o bebê vive o meio ambiente e como continuidade de si, situação que lhe dá a possibilidade de reconhecimento da realidade objetiva em seu tempo de maturação.No modo objetivo, o bebê percebe o outro como objeto, antes que tenha desenvolvido a noção de eu e outro, ou seja, fora de seu processo maturacional. Quando a mãe se apresenta de maneira intrusiva, sua presença excessiva impede o aparecimento do gesto criativo do bebê. Esse tipo de situação leva-o a uma dissociação precoce e a uma adaptação àquilo que é apresentado.”(safra 2004,p.129) Uma realidade imposta a Francisco que dava nitidez a sua condição, aos seus gestos tímidos e contidos, visto que ele era filho de uma mãe que temera. E que nesta relação não foi admissível para ele ainda bebê incorporar seu gesto como criação. Um impedimento que o desalojou de seu corpo, ou pelo menos a partes dele, sendo o mais perceptível seu peito, o núcleo das emoções. Um peito que não fazia parte de seu campo existencial e que nas sessões psicoterápicas realizadas a técnica da pressão no peito provoca-lhe o incômodo e as memórias. Um exercício que ajudava o paciente a constituir o gesto não possível na relação materna. Numa falha que formou um trauma nessa fase do desenvolvimento em que a base é o caráter oral. Num peito encouraçado que conduziu a sensação de vazio, de não continuidade, de ser engolido por um tempo que não era seu, de um gesto que não acontecia, acompanhado de angústias e ansiedades, caraterísticas da depressão. Porém, Francisco na sessão justificava a intrusão da mãe; perdendo duas filhas o medo é que o mesmo acontecesse com ele e para tanto ela o prendia junto a ele na tentativa de o salvaguardar.Para ele a educação que recebera era proteção, algo vindo tanto do mãe quanto do pai. Os via como figuras rígidas que educavam como foram educados. Percebera ao longo das sessões que acostumou-se a tal ponto ao que lhe era imposto que aos poucos foi se tornando um igual. “Quem é rígido foi mal tratado e perdeu o jeito e a esperança de amolecer – enternecer – de entregar-se. Foi batido demais, na forja chamada EDUCAÇAO.” (Gaiarsa, tratado geral sobre a fofoca geral 212) Francisco não se recorda te tentar lutar contra a educação claustrofóbica que lhe fora imposta. Lembra-se somente da tristeza e vazio que acompanhava os dias fechado em casa sem amigos, numa exigência de cuidados consigo e que se estendeu aos estudos. Aceitava tudo na esperança de ser aceito e amado por sua mãe, seus esforços eram no sentido de ser um bom garoto, de realizar todas as tarefas com perfeição e não chatear, visto que seu irmão, indomável, era motivo de sofrimento para seus pais. Francisco era vítima da educação compulsória de uma época que tantos outros pais se validavam do poder sobre seus filhos em prol “do melhor para eles” para não respeitarem seus ritmos, desejos e sentimentos e assim criarem filhos a seus espelhos. “A tragédia da criança é esta: a criança é repreendida, incompreendida, castigada ou não ouvida, sempre que fala DO QUE VÊacada momento sendo OBRIGADA A DEIXAR DE VER Isto se chama processo pedagógico – educativo-socializante de alto nível, destinado a fabricar cidadãos ótimos TODOS CEGOSde uma cegueira muito especial.” (Gairsa, trat geral 185) Cintra, (2001) comenta sobre a educação compulsória e esclarece o como Reich compreendia esse tema: “Reich prossegue dizendo que “a importância da atitude do corpo para a reprodução estrutural da ordem social, será entendida, um dia, e praticamente dominada em larga escala. Certas expressões, habituais na educação pela boca de pais e mestres, retratam com exatidão o que descrevi como técnica muscular de encouraçamento. Uma das peças centrais da educação atual é o aprendizado do autocontrole: ‘- Quem quer ser homem, deve dominar-se.’ ‘- Não se deve deixar-se levar.’ ‘- Não se deve demonstrar medo.’ ‘- Cólera é falta de educação.’ ‘- Uma criança decente senta-se quieta.’ ‘- Não se deve demonstrar o que se sente.’ ‘- Deve-se cerrar os dentes.’ Essas frases são características da educação; inicialmente são repelidas pelas crianças, depois aceitas com relutância, laboradas e por fim, exercitadas. Entortam-lhes, via de regra, a espinha da alma, quebram-lhes a vontade, destróem-lhes a vida interior, fazem delas bonecos bem-educados. Por mais intensamente que as crianças anseiem por uma vivacidade e por uma liberdade vegetativas, recuam diante delas e voluntariamente suprimem os seus impulsos quando não encontram um ambiente congenial, onde possam desenvolver a sua vitalidade sadia, relativamente livre de conflitos. Este é o mais exato entendimento dos mecanismos pelos quais as emoções são patologicamente controladas.” Gerda, 1986, também comenta sobre essa forma de educação e o resultado em sua própria criação: “educação que pretende transformar as crianças em adultos miniatura, em lugar de deixá-las se tornarem elas mesmas (…). Eu me tornei uma garota muito boazinha, muito sabida, muito obediente, que trabalhava bem na escola, muito polida, mas eu não tinha mais força, não tinha mais uma vida verdadeira em mim. Meu rosto não tinha brilho. Agora compreendo que toda bioenergia, toda a força de vida em mim, havia sido reprimida – Hoje também compreendo que, mesmo que meu pai as vezes dissesse o quanto tinha orgulho de mim, quando olhava para minha irmã (que não havia sido reprimida e que era muito viva) uma verdadeira alegria se manifestava em seu rosto. Contudo minha irmã não era polida nem obediente – ela era atrevida, independente.”(Boyesen, 69) Vítima e sobrevivente de uma família repressiva, Francisco aprenderá a negar seus sentimentos em prol de uma falsa tranquilidade familiar. De fato dizia não experimentar nenhum sentimento específico por sua mãe. De algum modo ela permanecia ali, desfocada, distante. Numa tentativa de aproximação Francisco decide escrever uma carta para ela. Proposta feita em terapia já que iniciara discretamente um desejo de aproximação. Neste ponto já estávamos no quarto mês de terapia e Francisco em lamento contava sobre o pouco progresso que havia feito, num tom de cobrança pessoal como um bom menino que não conseguia agradar a terapeuta, encobertando uma exigência: “Você é responsável por mim, cuide de mim”. Na verdade em vários momentos da terapia era necessário retomar em que ponto ele mesmo era responsável pelo lamaçal existencial que vivia. A culpa era do seu irmão sócio na empresa que não se responsabilizava pela função. Da esposa que não o ajudava a fazer outras coisas de sua rotina. Da mãe que não lhe dera a liberdade para se desenvolver. Discurso que ainda não era permitido se empoderar da raiva. Raiva que sentia especialmente naquele momento por sua mãe perceptível somente por uma contração dos lábios. Fransciscohavia entregue a carta a mãe, uma carta delicada que ainda o colocava na inércia de filho obediente. Sua mãe ao recebê-la, guarda e não lhe comenta nada. Ele fica assim suspenso, com a fragilidade de quem tentou o contato e não obteve o amor esperado, mas que rígido não pode chorar pela ausência ou urrar pelo descaso que sentia vir da mãe. Não trazia a carga da raiva em sua fala, tom de voz (algo que demorou algum tempo para se deixar acontecer) e mesmo indagado sobre o que sentia dizia não sentir nada. Um nada que contradizia as discussões coléricas tanto no ambiente de trabalho quanto em casa com a esposa. Porém uma raiva manifesta por acúmulo de tensão no presente. Para ele era melhor tentar guardar a raiva que as frustrações geravam no seu dia a dia, com o efeito colateral de explodir esporadicamente, do que de fato se colocar a cada situação. Francisco tinha várias características do que Lowen chamava de caráter oral reprimido, quando era guiado por um comportamento raivoso, sarcástico, contido e muito tímido, que fala por entre os dentes, numa intensa rigidez na couraça no segmento oral. Contudo sua raiva se restringia a momentos atuais, nunca ao seu histórico, num processo de repressão que era difícil acessar na sessão terapêutica. Neste ponto, após a nova desilusão com a mãe, Francisco se retirou, de si mesmo e da sessão terapêutica. Neste ponto mesmo os exercícios de respiração eram negados e eu entendia meu papel como novamente a de estar presente, numa aceitação do que Francisco mesmo diante de tudo aquilo que não estava pronto a mostrar. Era uma atitude de ser a mãe suficientemente boa numa fase do desenvolvimento muito precoce em que para Francisco não ocorreu. Era a forma que eu encontrava de dizer que era aceito, que ali, no setting terapêutico, podia ser ele mesmo. “Um terapeuta frequentemente funcionará como substituto do pai ou da mãe. Oferecerá amor ou aprovação e pode encorajar o paciente a regressar a um estado infantil. Isto não é feito pensando que não servirá para o paciente fazer as pazes com as suas perdas como criança mas para ajudá-lo a revivenciar essa perda e expressar tristeza associada a ela. A tarefa terapêutica é ajudar o paciente a encontrar seu caminho de auto amor e auto aceitação e desenvolver a fé em si mesmo para substituir a que ele não conseguiu obter de seus pais.” (Lowen,1983, p. 65) Mas não era fácil para Francisco receber de um outro significativo, a aceitação ofertada sem alguma exigência. Produto de uma época em que ser espontâneo era contra as morais estabelecidas por seus pais e de um histórico onde o outro não respondia positivamente a suas tentativas de encontro. Francisco retrata rubricas causadas em sua adolescência e inicio da vida adulta. Era um adolescente tímido, inseguro, dizia-se “tapado”, conseguira obter a muito custo alguns amigos homens, os quais tentava imitar comportamentos mas sempre sem sucesso. Eram escassas suas investidas amorosas, e mesmo quando desenvolvia o sentimento amoroso por alguma menina, se perguntava se a mesma seria aceita por seus pais. (Importante comentar que neste período os pais perseguiam seu irmão mais velho pelas ruas e acusavam seus envolvimentos amorosos de pecaminosos e sem futuro). Deste modo Francisco chega a um presente em que está impossibilitado de confiar, fechado, entediado, enfim sem prazer. Sem saber Francisco refletia a vivência de tantos outros na atualidade. Para Larossa, “É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.” Por isso não estabelecia contato, e enfrentava seus dias com tormento e descaso com os demais em sua volta. Continuando,Larossa, 2002: “A vida humana se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se.” Desencarnado Francisco duvidava do que ocorria na sessão terapêutica, numa descrença de que era possível alguém estar ali mesmo com tantos impedimentos, com tantas não progressões como ele acreditava. Era a manifestação de sua couraça secundária: “Quando a personalidade primária da pessoa é impedida de se manifestar, de se auto-realizar, surge a personalidade secundária. É o lado escuro do caráter, neurótico e encouraçado. Corporalmente seu padrão é de contração, experimentando culpa ao expressar seus sentimentos. Sua circulação libidinal está bloqueada, o impulso interno real não pode emergir. É dependente dos outros para sua satisfação e bem-estar. Com tendência a ser oral, questiona o seu direito de existir e é moldável pelo ambiente. A auto-afirmação de sua vontade está prejudicada. A pessoa desenvolve a personalidade secundária para ajustar seu ambiente e para proteger-se de ameaças externas e sobreviver. Ela é fruto de uma educação repressora e distorcida.” (CINTRA, 2001, p.15) Aos poucos Francisco se permitiu tocar e ser tocado.Neste período estamos com cerca de 5 meses de processo terapêutico e iniciamos com a massagem nas extremidades (para dar a sensação de segurança e o paciente se apropriar e sentir-se confortável com o toque) e o toque básico. Procurava em intenção resgatar o gesto espontâneo e liberar o corpo de sua armadura em um respeito à condição do paciente. Para mim a massagem empregada na psicoterapia era uma ferramenta importante de maternagem (ofertar ao paciente o que não foi possível na relação com sua mãe afim de trazer a experiência e ressignificar o corpo) e seguia o que Boyesen, 1986, p. 102, descrevia: “A massagem é o caminho real para fazer o terapeuta descobrir o amor que há em si. É impossível fazer uma massagem sem amor. O importante numa terapia é a atmosfera que se irá estabelecer: a empatia, a tolerância e a compreensão do terapeuta são essenciais. O intelectualismo “seco” não só não é suficiente, como quebra o movimento da vida, o processo biodinâmico” Inicio com uma massagem lenta, não muito profunda, na intenção de provocar alento, cuidado, tento que em nenhum momento ocorra um sobressalto que o faça retornar a posição de medo e desconfiança, encontrava algumas dificuldades, pois muitas partes de seu corpo estavam doloridas, enrijecidas (cabeça, tórax e perna) e inchadas (abdômen), os braços desenergizados, como que jogados na maca sem vida. Com o estetoscópio procurava algum sinal de psico-peristaltismo que me indicasse um alivio de tensão em Francisco, que pudesse fazê-lo entrar em contato com uma descarga vegetativa suave ou forte, porém nenhum som intestinal ocorria. “quando as pessoas vivem numa atmosfera de conflito e tensão (stress), não se sentindo nunca profundamente seguras, o movimento psico-peristáltico é inibido. Provavelmente, os músculos do intestino irão perder sua capacidade de resposta às pressões que devem estimulara função psico-peristáltica. Esta perda de resposta é a chamada “couraça visceral”. Quando esta perda de resposta ocorre, o corpo nunca fica completamente limpo dos efeitos da tensão (stress)” (o que é psicologia biodinâmica, p.11) Após tantos anos reprimindo seus sentimentos, principalmente a raiva, manteve-se firme numa lógica da independência disfarçando uma necessidade de dependência que não foi possível acontecer. Francisco repetia para si “se pareço firme não desmoronarei – não sucumbirei”, porém ele desmoronou e se autorizou depender de sua esposa (no período anterior a psicoterapia). Numa possível tentativa de resgate da dependência materna. Como já descrito, uma mãe intrusiva não está ali para acolher o gesto espontâneo de seu filho na fase da amamentação. Francisco não teve uma mãe presente, que lhe garantisse o encontro, ele não pode depender dessa mãe e foi então lançado nas angústias impensáveis que sente até hoje, manifestas em depressão. Descobriu com o tempo que para receber o afeto de sua mãe deveria ser o bom garoto e reprimir seus desejos e sentimentos, assumindo com o tempo o adulto independente, trabalhador incansável que seus pais esperavam. Num pacto neurótico em que dizia a si “não serei como meu irmão, farei meus pais orgulhosos”. Experiência que o desconectou do corpo e suas necessidades, quando não pode mais manter a máscara Francisco entrou em depressão profunda. Porém a dependência da esposa não foi uma vivência curativa. Francisco viveu esse período com extrema culpa por não estar produtivo, por não se sentir útil perante sua família e a sociedade em geral e quando retorna aos compromissos do dia a dia, está desabitado de seu corpo, corpo-objeto dolorido. Corpo que chegou ao trabalho corporal sem respostas. Ele realmente precisava sentir-se firme, dar conta de si e seu trabalho, a tal ponto que se aguentava por suas pernas que sofriam de dores. Francisco queixava-se que suas pernas eram pesadas, que pareciam arrastar-se e no trabalho corporal foi possível detectar que ele apresentava camadas na superfície hipertônicas e por baixo mais profundo hipotônicas. Assim como Boyesenrelata em sua história pessoal, Francisco também necessitou muito cedo se resignar a intrusão da mãe, o que ocasionou a hipotonia, com o tempo para corresponder com as expectativas do mundo criou a camada hipertônica numa atitude de compensação. Durante a massagem nas pernas Francisco claramente se incomoda e relata que na idade de 7 anos, os médicos descobriram que havia um tumor em sua coxa. Conta que a sensação de apreensão e medo estavam no ar, mas que nenhum de seus pais lhe explicaram o que acontecia ou a cirurgia que seria submetido. Neste período experimentou, conscientemente, pela primeira vez o medo de morrer (sensação que até o momento o acompanhava). No dia da cirurgia e na semana seguinte que se passou Francisco ficara sozinho no hospital, sendo permitidas apenas visitas em poucos horários. Para ele foi a vivência da solidão e desamparo. Estava pois abandonado com seus medos infantis. Refletindo nas próximas sessões Francisco chega à constatação que fora naquele momento que aprendera o que era independência e que apesar de solitária deveria ser encarada para evitar abandonos futuros. Período fecundo da psicoterapia onde foi possível obter algum afrouxamente da couraça, os gorgolejos peristálticos inciaram-se ainda tímidos principalmente através da massagem colônica. “Essa é uma das principais massagens utilizadas para abertura do peristaltismo. È denominada “colônica” porque trabalha sobre o cólon, que é a principal parte do intestino grosso, ativando o funcionamento do mesmo e a eliminação das fezes. (…) Essa massagem também tem grande importância na respiração, pois trabalha com dois dos principais grupos musculares envolvidos, ou seja, o diafragma e os músculos abdominais, diminuindo a tensão em ambos.” (o toque na psicoterapia, p. 138) Ainda sobre a massagem Colônica: “massagem colônica (Mona-Lisa Boyesen, 1996), para liberar a tensão diafragmática, couraça visceral, e permitir um fluxo mais livre das expressões emocionais: medo, raiva, tristeza e alegria;” (caso Laura – Cintra) O objetivo era o de, como Boyesendescrevia, através do psicoperistaltismo a dissolução da couraça e o “derretimento” da energia emocional. Francisco em seu discurso dizia-se exausto por não viver e sentia seu abdômen como um balão, e de fato sem ‘permitir’ a descarga vegetativa seu corpo estava repleto de energia preso nos anéis de couraça, principalmente na região abdominal. De tanto retesar/controlar, ele não respirava profundamente, e como Gaiarsa diz, o modo que se respira é o modo que se vive, Francisco existia mais como um espectro dele mesmo em um mundo de fantasia do que numa realidade que intervinha. “Na respiração reduzida, absorve-se menos oxigênio; de fato apenas o suficiente para a preservação da vida. Com menos energia no organismo, as excitações vegetativas são menos intensas, e mais fáceis de controlar. Visto biologicamente, a inibição da respiração nos neuróticos tem a função de reduzir a produção de energia no organismo e de reduzir assim a produção de angústia (o toque na psicoterapia, citação de reich 1975, p. 262) Nestas tentativas de contato com a realidade, Francisco se depara com um corpo menos inerte, que lhe possibilita, através de uma carga energética mais livre em seu corpo, questionar sua forma de lidar com as relações atuais. Questiona o papel que assumiu diante do irmão. Até então sua fala era de: “ele faz o que quer, e sempre que eu falo gera briga, não devo me colocar, porque nada vai adiantar”. “Sempre fiquei a sombra dele e ele se acomodou”. Para Francisco, o irmão extrovertido representava a firma, o papel de seu irmão era de alguém que por mérito conseguia conquistar os clientes (algo que ele nunca conseguira nem em seu meio profissional nem pessoal). Considerava o irmão insubstituível e por isso lhe fornecia um salário melhor que o seu. Suas explicações eram de: “Ele era cabeça, as pessoas me viam como sombra, problemas maiores ele resolvia”. Se sentia em dívida com o irmão, e com tantos outros que o rodeavam, se coloca no papel inferior: “nunca me achei bom o suficiente para ser…..um bom estudante, um bom amigo, ter pessoas por perto” Francisco começa a se incomodar com sua inércia, como Boyesen descreve, a energia começa a se desencapsular, e o organismo com uma carga energética maior era possível para ele entrar em contato com sentimentos e sensações antes bloqueados em suas pernas (eram realizadas praticamente em todas as sessões um período de massagem nos músculos das pernas a fim de soltar a couraça muscular) em seu diafragma (massagem dos músculos da respiração). Por fim era realizado um deslizamento por todo o corpo a fim de integrá-lo e relaxá-lo. Devido as suas queixas constantes de não sentir pertencente, da insegurança, da falta de emoções, do vazio existencial, de um distanciamento da realidade e da dificuldade de agir sobre mundo e modificar sua vida foram realizados nesta época também exercícios de grouding que eram realizados normalmente antes de iniciar alguma massagem. Exercícios desenvolvidos por Lowen, mas realizados de modo biodinâmico. Para Boyesen, 1986,p.131: “Nossa terapia se desenrola a maior parte do tempo com o paciente deitado de costas; no entanto, existe um caso que utilizamos os exercícios de enraizamento de Lowen durante a terapia; é o caso onde a pessoa está bloqueada num processo primal, em que ela se encontra num estado de dependência e ansiedade permanente. Neste momento, fazemos com que ela fique na posição de pé, para lhes dar força, um enraizamento ou segundo as características que apresente, a fim de permitir uma ab-reação. Estes exercícios de enraizamento contribuem para fazer cessar o decaimento permanente do peito e o abandono habitual aos movimentos emocionais.” P.131 Mantinha-me na intenção de dar vitalidade ao corpo, dar a sensação de segurança e potencialidade para fazer da existência algo mais. Entrar em contato com o eu-motor era possibilitá-lo a se mover, sentir que podia guiar sua vida e não só se deixar se guiado por uma rotina que não lhe permitia o prazer. Assumindo a potencialidade de seu eu-motor, de sua vontade voluntária Francisco sente a urgência de sentir e retribuir o afeto da filha. Ele investe o tempo agora prazeroso com a mesma e sente pela primeira vez a ligação amorosa em suas palavras “sabe, eu consigo ficar com ela, porque eu realmente estou ali e ela percebe isso, por isso muitas vezes ela prefere estar comigo do que com a mãe.” Aos poucos no processo psicoterápico que já alcançava 9 meses, ele pode encontrar em contato com a raiva. De acordo com Francisco: “queria sair e o ver na sarjeta, raiva de ser trouxa”. Uma compensação à sensação de inferioridade que o afligia e fazia de algum modo expressar. Também questionava o quanto se acomodava na situação com a esposa e que também deixara de se manifestar. Surge em Francisco o desejo de se posicionar, agora seguro de algumas situações ele se coloca. Na empresa resolve assumir menos funções e atribuí-las ao irmão. Sua sensação é de retomar o espaço para respirar. O tempo para sentir, mesmo não sabendo o que sentir. As massagens continuaram, porém, aos poucos Francisco se depara com a realidade que seu irmão não assumiu os compromissos esperar. Fora um período de intensas brigas na empresa, onde por fim ele desiste. Nessa desistência Francisco novamente se fecha em seu processo habitual de apatia e lamaçal. Após uma sessão (já estávamos no 11° mês de terapia) em que o encontro não acontece e sons peristálticos não surgem escrevo um relato de sentido: “Ouvir o corpo e não fazer o movimento impedido e o mesmo papel de faço tudo errado, sou sem jeito, nunca atrai as pessoas, sinto vergonha. O medo do julgamento constante e seu próprio julgamento de não dar conta. Do mundo, das relações, de si. Me mantenho frente a ele acolhendo. O que surgirá?” Quando Francisco se sente frustrado em suas tentativas de mudança, questionado e julgado no trabalho e em casa, ele ativa novamente sua defesa e desconecta do corpo. Único modo que encontra para não sentir e assim não sofrer. A recusa do irmão de mudar, e pouca ajuda da esposa ofertada (ou pelo menos assim sentida pelo paciente) de cooperar em suas mudanças o lançam de volta à ferida na fase oral. Para ele, até então, a não aceitação do outro em seus pedidos o remete à não aceitação materna. Numa experiência de angústias impensáveisonde Francisco não vê saída a não ser retomar seu padrão de impermeabilidade afetiva, mesmo que contando com a aprovação dos outros. Essa é a experiência da criança que vivia em estado de catástrofe eminente, como relata Boyesen, visto que, em dependência de uma mãe que sentia que a qualquer momento poderia retirar seu amor. Num processo em que é criada a personalidade secundária, a criança dependendo somente do prazer em contato com a mãe, já não tem mais o contato com o interior do corpo. Por isso da necessidade em Francisco tão intensa da aceitação que transferiu de sua mãe para os outros relacionamentos. O paciente cedeu novamente às exigências do mundo para que ele retome ao papel passivo que até então empenhava, num abandono novamente de seu desejo, isto porque, ele ainda necessitava da aprovação dos outros, naquelas relações dependentes criadas para fazê-lo seguro, à custa de um não sentir, de perder sua circulação libidinal recém adquirida e se adequar – enganosa sensação de salvaguarda, de proteção do sofrimento. “Podemos retraçar este fenômeno de dependência até a criança que perdeu sua circulação libidinal, seu sentimento de bem-estar na independência e seu contentamento interior, e que, por sentir seu corpo de maneira agradável, deve tudo esperar do contato com sua mãe. A maioria das mães cujo filho perdeu sua circulação libidinal brinca com esta faculdade de dar ou de não dar, para guardar o poder sobre ele. Usando esta espécie de chantagem, a mãe consegue chegar a fazer com que a criança faça tudo o que ela quer.” (Boyesen,p.123) Sem acesso aos seus desejos, Francisco se sente vazio, vazio reproduzido em suas relações, num espaço existencial em que nada acontecia e tentava preenchê-lo com as memórias do que passou e do que gostaria de ter passado. Ele se queixava das relações amorosas que não se envolvera, dos amigos que não tivera, das únicas experiências que lhe agradavam. O tom de sua fala era em momentos monótona e em momento de súplica, como quem gostaria de voltar ao passado e modificar seus feitos. “O mundo dos deprimidos tem uma existência sincopada. È como se o tempo parasse em um presente eterno que o passado ameaça com os seus fantasmas.” (p.178, psicopatologia e caráter). Para Gaiarsa a emoção regressa é a consequência de um movimento impedido. Movimento impedido na infância, gesto espontâneo que há muito o paciente foi forçado a abandonar devido sua personalidade secundária. O medo do julgamento e o sempre agir do mesmo jeito, do jeito certo. Ser um bom rapaz, não repetir o caminho do irmão. Moral e obediência, registro de uma vida adulta responsável. “Não há nenhum mal em fazer como os outros esperam que gente faça. O MAL ESTÁ EM FAZER SÓ ISSO. Só que é “certo”. Temos mil vontades que os outros dizem não ter, não compreender, nem aceitar – principalmente em matéria de amor, sexo e amor próprio. Mas temos muitos caprichos absolutamente inofensivos que não realizamos por que eles seriam tidos como ridículos ou coisa parecida. Então nos contemos. Nos mutilamos. Só mostramos e só realizamos o que é permitido e bem visto. A outra metade fica escondida, fechada. Aos poucos vai murchando” (Gaiarsa, tratado geral sobre a fofoca, p.55) Personalidade primaria que estava ali, mas soterrada pela tristeza vital, esvaziamento afetivo e a inibição psicomotora. Francisco não se conectava com seu tempo e ritmo interior, ele era novamente guiado por sua rigidez e autoacusação, repetida sessão após sessão em frases como: “não consigo mudar”, “não consigo fazer nada”. “Obviamente o corpo também participa dessa síncope temporal. A pobreza, a monotonia, a rigidez, a imobilidade são algumas das manifestações que atingem seu auge quando o pensamento se convence de uma culpa que não existe, de uma doença irreal, de uma pobreza iminente, de uma indignidade cometida no passado sobre o qual desenrola o desejo de autoacusação e da punição.” (p. 178, psicopatologia e caráter). Período na terapia marcado pela resistência e eu me atinha a estar presente como terapeuta. Para Boyesen todo terapeuta deve “estar ali inteiramente para seu paciente” (p.142) algo que o paciente de fato necessitava, visto que ele não obteve da mãe a aceitação de seus estados emocionais e como psicoterapeuta estava ali para suprir esta lacuna, ajudando o adulto a reescrever sua história e a perceber que sendo ele mesmo poderia ser aceito. Já no 12º mês de processo psicoterápico as sessões terapêuticas eram realizadas de forma mais diretiva e as massagens ocupavam grande parte da sessão, isso se dava porque compreendia que naquele momento o paciente oferecia um alto grau de resistência ao processo psicoterápico. E de acordo com Rego, 2014, p.132: “Podemos enquadrar também neste caso os pacientes nos quais as defesas somáticas se encontram em grau tão acentuado que é necessário um longo tempo de tratamento com técnicas corporais antes que seja possível contar com alguma participação efetiva da pressão dinâmica que move o processo terapêutico (…) pode ser necessário que o terapeuta dirija o processo por muitos meses, dissolvendo progressivamente as couraças até que seja possível passar a uma abordagem menos diretiva.” As massagens eram feitas no sentido de permitir que Francisco fosse se desenrijecendo através da massagem respeitando a resistência e da massagem nas articulações, muitas vezes ainda era necessário a massagem colônica para iniciar. “O respeito à resistência desarma as defesas, pois sabendo que serão respeitados, o paciente e seu organismo cedem mais facilmente, abrindo mão da necessidade de controle. Usar essa manobra é um bom jeito de trabalhar a questão da entrega e confiança”. (o toque na psicoterapia, p. 172) A massagem respeitando a resistência no começo era feita aos poucos, dando ao paciente a sensação que ele não tinha que cumprir uma função, algo muito difícil para o mesmo. Ao mesmo tempo sua família recebia com crítica novamente suas tentativas de mudanças. “Depois que todos tem seus poucos papéis, é muito difícil mudá-los porque DIARIMENTE eles são REFORÇADOS dezenas de vezes e até CENTENAS de vezes (…) (assim podemos ter a certeza de que nada de realmente novo vai acontecer). DESGRAÇA VELHA É SEMPRE A MESMA E NÃO PERTURBA NINGUÉM” (Gaiarsa,tratado geral sobre a fofoca, p. 117). “Por isso a RESISTÊNCIA da FAMÍLIA a TODAe QUALQUER mudança é enorme e desse modo ela funciona estabilizandoa sociedade.” (Gaiarsa, trat geral, p. 118) Situação que se repetiu por diversas vezes. Francisco encontra o desejo de tentar fazer diferente, iniciava, era repreendido e desistia. Fora a fase das tentativas. Ele trazia a queixa principalmente de sua esposa a quem quase que diariamente pedia para realizar atividades diferentes, mesmo como ir a um bar a noite sem a filha, pedidos que não eram bem recebidos. Aos poucos foi passível para Francisco revelar que sua vida sexual satisfatória só ocorrera longe da esposa. Ela havia sido sua primeira relação sexual, e do começo e mesmo após anos dizia não conseguir atingir um estado satisfatório de prazer nem pra ele nem para ela. A saída do paciente por períodos era a traição, para realizar seu desejo. Ele compreendia que aquela atitude era a forma que conseguia de encontrar uma relação sexual satisfatória, porém relatava em tom vergonhoso, pensamento implicado pelo julgamento moral que imaginava que receberia. Ao invés do julgamento, as sessões giraram em torno do termo potência. Para mim, era claro que o paciente ansiava por uma brecha em que poderia expressar sua potência, numa expressão em que ao mesmo tempo lhe trazia o prazer e o encontro, e que lhe garantisse uma vivência não só mecânica no encontro amoroso sexual. Era uma fala mais mansa, num rosto mais expressivo, que trazia o tom do sentimento que ele comumente não mostrava. Seus encontros eram pautados pelo encanto, pela descoberta, por alguma entrega. Francisco vivia, mesmo sem dar voz ao seu desejo, experiências que o enriqueciam, que o resgatavam da não existência com sua esposa, que o garantiam a possibilidade do respirar mais sossegadamente, algo que transpassava em seus relatos, mesmo que por poucos segundos, por um suspiro de alívio. Eu, enquanto psicoterapeuta, recebia o que o paciente me trazia e devolvia para ele o que aprendera nos estudos de Reich e Roberto Freire principalmente. Eu, ideologicamente, compreendia a experiência do paciente como uma tentativa de brecha da neurose, numa tentativa do sentir, do se entregar, de afetar e ser afetado pelo outro – mesmo que às escondidas, sem a possibilidade da fala declarada – no ponto em que o encontro amoroso repercutia a experiência, um corpo que se expressava sem os ditames de uma educação moral que não lhe permitiria aquela ação. Havia algo ali que reluzia na expressão facial do paciente, que não era uma simples reprodução social do ‘homem que é homem trai’, era um corpo que necessitava sentir, se ver livre das amarras impostas por sua relação monogâmica pouco satisfatória. Corpo em direção a uma saúde, em direção ao que Reich pregava quando afirmava que a satisfação sexual produzia uma carga energética capaz de dissolver a energia bloqueada pelas exigências de uma sociedade. “Na análise do caráter, Reich percebia que a tendência destrutiva nas pessoas tinha origem mesmo na falta de satisfação sexual e que, uma vez readquirida a plenitude do prazer, tais características desapareciam.” (Freire, tesão pela vida, p. 132) Sociedade que vive basicamente com medo do prazer, em sacrifício deste em prol de indivíduos sem ligação com sua corrente vegetativa, privados do encontro. Francisco era mais um que pela família e educação se enrijeceu e tornou-se dócil e submisso em sua couraça de caráter. Francisco questionava e ludibriava os acordos que assumira quando casou-se, ainda não tinha a potência necessária para colocar o seu desejo como algo saudável. Falta-lhe o contato com o corpo que lhe garantisse a confiança de que seu desejo poderia ser uma atitude no mundo, aceita pela esposa ou não, e arcar com as consequências. Para Roberto Freire, as relações monogâmicas impostas (admitidas como única forma aceita de se relacionar) são formas encarceradas de garantir as pessoas a falsa sensação de segurança de que não será abandonado/trocado por outro, numa crença de que o amor só acontece quando destinado a uma única pessoa. Porém, o amor/tesão pode ser sentido de diversas formas e por diversas pessoas, e em seu íntimo muitos sentem esta constatação. Na sociedade atual a forma de garantir que uma relação amorosa não se desfaça é a possessão e a traição. “Eu não posso, mas desejo, eu desejo, mas não quero que o outro deseje, eu finjo que não desejo e não dou chances para o outro desejar, se eu não controlo meu desejo por outra pessoa e estabeleço uma outra relação e não deixo o outro da saber.” Era a tentativa da vivência da sexualidade natural contra as formas de se relacionar socialmente estabelecidas as quais Francisco não sabia se impor ou criticar. Pelo medo da crítica ele era inundado pela culpa, e pelo medo do abandono ele permanecia calado, apesar da vontade de contar tudo para a esposa. Neste período foram realizadas a massagem de distribuição enérgica, massagem que a princípio o paciente recebia com estranhamento e rigidez, mas que aos poucos, junto a seu discurso e conscientização de seus desejos foi possível, para ele, aceitar, receber, deixar acontecer. Aqui a psicoterapia alcançava 1 ano e 3 meses, e fora a época que pode de fato se sentir aceito na sessão terapêutica e pode entender sua necessidade de se sentir potente sem a necessidade das traições. Pela primeira vez questiona o papel de seu pai na terapia. Para ele, até então, seu pai era mantido na memória (morrera há cerca de 5 anos) como homem moralmente correto, dedicado à família. De fato as qualidades que Francisco com custo empregava a si mesmo advinham das de seu pai: “honesto, justo, eficiente” (sic). Porém, nesse momento do processo psicoterápico uma lembrança de sua infância apareceu na sessão e não cabia com imagem que perpetuava de seu pai. Estava com seus 8 ou 9 anos e via suas coisas encaixotadas, não entendia, o medo se apropriava do corpo mas não indagava o que acontecia. Um lapso de memória e na recordação seguinte estava em outra casa, em sua descrição era um casebre, havia ratos e choque na mudança de casa e de condição social. Relatava que seus pais saíram de São Paulo para uma cidade de interior. Agora adulto, questionava o que havia acontecido naquela época. Após algumas sessões, em que se recorda de uma tia que contava em voz alta esse acontecimento do passado, ela falava em tom áspero sobre a traição do pai, sobre ter que fugir. Com esta recordação Francisco indaga a mãe e o irmão. De fato o irmão comenta que, apesar de não saber com detalhes, seu pai havia permanecido em outro relacionamento amoroso e por algum motivo que desconhecia, foi necessário que toda a família fugisse de São Paulo. Momento de sofrimento para o paciente diante da constatação de que o modelo que seguia de homem, que era seu pai, apresentava falhas. Pude, juntamente com o paciente, sentir a raiva, a tristeza, a melancolia por toda uma vida acreditar que devia ser perfeito, para seus pais. “O holding fornecido na situação clínica estabeleceu a confiança básica e permitiu o aparecimento do gesto espontâneo, o qual resgatou a paciente do profundo sentimento de insegurançaque a levava a evitar toda e qualquer situação.” (Safra,2005,p.105) Vivência de sentimentos que quebravam a imagem interna do pai perfeito e apesar da tristeza de adultecer pode enfim aceitar um pai imperfeito e si mesmo imperfeito. Modelo de homem que caía e que lhe permitia sair do papel. Para ele foi possível respirar um pouco mais e aceitar suas próprias dificuldades. Fora um momento que enfim Francisco, deu ação a seu gesto contido, dando significado e continuidade a sua existência. Surgia, então, mesmo que tímida, a vontade de efetivação da vida, vontade de potência, vontade de afetar e ser afetado,vontade de conexão. “Quanto mais claramente nos diferenciamos da matriz comum, mais capazes nos fazemos de reagir, modificando-a, mais e mais nos fazemos agentes da própria vida e da vida de muitos outros – e na mesma medida vamos deixando de ser estrutura social. Deixamos de ser estrutura social na medida em que nos fizermos agentes de transformação social” (Gaiarsa, trat geral, 201) Francisco ia ao encontro de sua personalidade primária, de seu prazer em construir relações significativas mesmo que em tropeços. Para ele ainda era difícil reconhecer estas características em si mesmo, era como se não atualizasse suas características no presente. Porém, comentando nas sessões de psicoterapia seus avanços o paciente começa a perceber, como ele e seu corpo estavam mais soltos e disposto a ir em frente, se conectando com o presente e sentir a experiência. “Segundo GerdaBoyesen (1983), em Cadernos de Biodinâmica, e (1986) em Psique e Soma, a pessoa que vive sua personalidade primária está em contato com sua circulação libidinal. As correntes energéticas do corpo estão fluindo livremente, permitindo a manifestação dos impulsos internos originais e promovendo a atualização dos potenciais humanos individuais. A personalidade primária é espontânea, criativa, confiante, auto-afirmativa, não tem dificuldades para dizer sim ou não, e tende para a auto-regulação, a auto-realização, a satisfação e a plenitude. É independente e possui a capacidade de estar só quando necessário e desejado. É capaz de expressar suas emoções sem culpa, de dar e receber, de amar, e de viver sua sexualidade de forma integrada. Vive em contato com seu eu instintual e espiritual. Tem prazer em viver, sentindo-se pertencente ao seu meio ambiente.” (CINTRA,2001, p.15) Após esse mês de encontros psicoterápicos mais intensos Francisco pode sentir mais alojado em si e no mundo com outros significativos. Era um corpo e um estar no mundo ainda inseguro, mas tivera conquistas, estava já quase sem medicação antidepressiva e conseguia lidar com sua vida diária com menos desprazer e se posicionar. Neste ponto nos despedimos por um tempo, sem saber quanto duraria, relembrando que fora um processo psicoterápico com um efeito concreto na vida de Francisco, nas relações dele e seus coletivos, cujos encontros, ausências, diferenças, prazeres, desavenças o tornoumais potente, mais sensível e aberto a si e as necessidades dos outros significativos e mais disposto às experiências. Numa vida entendida naquilo que o humanizou, retirando-o da clausura e dispondo-o a essa multiplicidade que é o existir. “Mas a vida que não se apresenta de uma só forma, nem cabe em uma só pessoa, a vida entendida em sua multiplicidade trágica, entre dores e delícias, altos e baixos, e que pede acolhida nas mais diversas circunstâncias.” (humanizasus, p.10) Este escrito acontece em tempo real. O tcc praticamente acabado e Francisco retorna após 6 meses do fim dos atendimentos psicoterápicos. Para mim sinto a conexão, de fato há6 meses estava com ele, porém do lugar teórico, da escrita, do resgate das sensações e sentimentos das sessões. Ele, por sua vez, manteve o processo de entrega que iniciara na psicoterapia, e continuou o desenvolvimento e o encontro com um si mesmo mais autêntico. As queixas tradicionais do paciente haviam desaparecido quase que completamente, relatava que voltara devido a sentimentos de irritação e raiva que prejudicavam seus contatos (havia juntamente com seu psiquiatra parado com a medicação antidepressiva). Olho-o demoradamente, pressentia a mudança, Francisco estava diferente, seu corpo parecia mais leve, sua postura menos encurvada. Respiramos. Falo sobre isso, conto que sinto que algo aconteceu e ele lança uma gargalhada prazerosa, sim, muita coisa aconteceu verdadeiramente. Começa seu relato descrevendo que sua esposa descobrira algumas traições e pudera ser verdadeiro com ela com relação a suas insatisfações, puderam então viver relações sexuais mais satisfatórias para ambos. No trabalho corporal foi possível notar suas pernas menos enrijecidas, algo que o paciente confirma, não havia mais o peso nas pernas. Francisco andou pelas próprias pernas sem sofrimento. Também contou que conseguia estar mais no presente, seguindo seu tempo interno, sem se exasperar diante das obrigações de seu trabalho. Tudo isto contado pelo paciente num tom de voz carregada por tranquilidade, algo para mim realmente novo e revigorante. Sentia-me feliz por suas conquistas e pela confirmação que o processo que se iniciara na psicoterapia fora mantido por ele fora do espaço preservado do setting terapêutico. Ele realmente levou para o âmbito social suas conquistas e pode modificar suas relações, tornando-as menos neuróticas! Porém, com a morte do sogro, o desalento da esposa e o seu, sentiu novamente uma dificuldade em lidar com seu dia a dia e portanto estava ali comigo, buscando pelo encontro, se encontrar… Neste momento lembro-me e cito: “O inédito e o singular visitam a cada dia nossos consultórios, ensinando-nos novas maneiras de caminhar em direção a revelação da condição humana” (SAFRA, 2004, p.21) Durante o estudo de caso descrito acima, fui ao longo de todo o processo inundada por diversas sensações, frustração, amor, tensão, prazer, tédio, deslumbre, só para citar alguns. Passei pela experiência do que Safra na citação acima comenta como o inédito e o singular me visitando. De fato a relação terapêutica é uma troca, e um crescimento mútuo. Com este paciente, pude enfim, crer queo processo psicoterapêutico se dá mesmo com resistências intensas, que essas resistências são defesas se manifestando e um pedido de ajuda mesmo que tímido. Aprendi durante este atendimento, que a presença é uma ferramenta poderosa, e o trabalho sobre o corpo é imperioso quando pensamos numa sociedade atual em que este corpo é negado enquanto experiência viva, e quando a depressão aparece como um síncope do contato com a corrente vegetativa deste corpo-soma-pessoa. Foi importante para mim enquanto psicoterapeuta voltar a minha atenção para como o indivíduo vive nos tempos modernos, numa naturalização do cotidiano produtor de indiferença ao sofrimento do outro. Que retiram as pessoas de sua humanidade, desalojando-as de seu corpo, conferindo ao humano um status de pouco revelante, de vazio e ausência de experiências reais. Quando na psicologia biodinâmica falamos de resgatar a personalidade primária do paciente compreendo que é resgatar o acontecer do si mesmo no mundo. Mas como nós enquanto psicoterapeutas podemos caminhar nessa direção quando o acontecer humano é impedido pela falta de espelho e trocas nas relações afetivas fora do espaço psicoterapêutico? Como trabalhar essas questões quando a criação do mundo não ocorreu na infância, visto que o bebê foi impossibilitado do gesto por uma mãe que não pode estar presente devido às exigências do mundo? E assim perdeu o contato com sua corrente vegetativa. O fato é que o agir e o gesto fazem parte da espontaneidade dos seres vivos. O gesto e o agir referem-se à vontade, ao querer, ao ir em direção ao prazer. Na depressão vejo pessoas impossibilitadas de agir. A pessoa deprimida teve uma mãe que não agiu, que não se colocou no lugar onde o bebê criaria o mundo. Nesse lugar o bebê encontrou o nada, o outro não presente para respeitar seu ritmo, assim o self da criança não pode acontecer. O bebê não pode findar o seu querer e seu gesto em direção ao mundo mãe e já adulto, perdeu seu tempo interno, sua capacidade de sentir o corpo. Para mim, precisamos resgatar o gesto e o agir, através do trabalho com o corpo e sua re-conexão com o sentir e seu tempo. Um corpo deixado de lado em várias abordagens psicoterápicasdevido a suas construções teóricas no período da ciência em que estavam mais preocupados em mapear uma psique etérea, sem corpo. Uma visão homogeneizadora estendida para o fazer da clínica psicológica contemporânea. “Conhecemos muito pouco do corpo. Tentamos, a todo momento, fixá-lo, formatá-lo, classificá-lo, representá-lo, como se uma forma, uma substância, uma palavra, um discurso, um saber pudesse bastar, acalmando nossas angústias de não saber de antemão o que é, o que pede e o que pode um corpo. Tendemos, inclusive, a desprezá-lo, corroborando com toda uma tradição filosófica-política que o rechaçou, posto que apegado a valores “superiores” em detrimento da terra e do corpo. Daí as práticas clínicas tenderem a ser tão apegadas ao verbo, à tomada de consciência, ao alcance de uma suposta identidade interiorizada. O desprezo pelo corpo fez dele um prisioneiro de formatações. Nesse sentido, em vez de alma, não seria o corpo que seria preciso libertar?” (Humanizasus, p. 122) Crítica e reflexão atual de uma psicologia e psicoterapia que mantém o corpo em seu pouco espaço socialmente estabelecido. Num proceder que desgoverna condutas numa formatação cultural dos gestos padronizados, tanto dos pacientes quanto dos psicoterapeutas. Ou seja, que mantém padrões antiquados do portar do terapeuta, alheio a seu corpo e ao corpo do outro, imersos num cotidiano de intervenções faladas, produzindo o descaminho. Devemos, pois, voltar a este corpo vivo, entendido pela psicologia biodinâmica como corpo transitório, datado, com sua história e desdobramentos. Num reverberar do humano que pode ser intenso e que mostra que o corpo não é um isto, e sim a própria pessoa e sua expressão, que pode acontecer no aqui e agora da existência. Para tanto, necessitamos como psicoterapeutas cooperar para o indivíduo resgatar sua personalidade primária e entrar em contato com sua circulação libidinal perdida. Nas palavras de Boyesen, 1986, p.120: “Cada ser vivo nasce com a circulação libidinal autônoma, até a ameba, até o verme, e para mim a finalidade mais importante da terapia é levar a pessoa a reencontrar sua circulação libidinal e sua própria felicidade interior. A circulação libidinal está muito ligada ao psicoperistaltismo. Nas situações de alerta é bastante normal que haja uma elevação nas taxas de adrenalina no sangue e que a energia esteja inteiramente focalizada no sentido da ação. Então aparece um verdadeiro princípio de desprazer que tem a função de mobilizar completamente todas as forças disponíveis para o agir e lutar. A seguir, a energia deve se dispersar, e a circulação libidinal ser restabelecida. Mas muitas vezes esta dispersão e esta harmonização da energia não ocorrem e está aí o bloqueio mais importante, está aí a causa mais profunda da neurose” Boyesen descreve a importância do contato com a circulação libidinal e a experiência do gesto impedido, do ciclo carga-tensão-descarga impedido de acontecer. Nossa tarefa é então pensar como atuar na clínica de modo que este paciente carregado de defesas neuróticas, produto de uma sociedade que a todo momento afirma para a pessoa que não há lugar para o encontro. Em que, “Num paciente assim afetado, todo sorriso ou atitude de felicidade é um paliativo, uma máscara ou uma idealização.” (BOYESEN, 1986, p.121). Reafirmo assim, a necessidade do trabalho sobre o corpo, para que a energia encasulada comece a circular e o indivíduo possa através do reencontro com sua circulação libidinal sair de um estado de “bem estar na dependência para entrar num bem estar na independência” (BOYESEN, 1986,p.121) tão característico da posição depressiva. Torna-se então necessário afirmar o corpo do paciente como algo a não ser negado, contido, controlado, anestesiado, como forma ilusória de controle sobre a vida e afastamento do sofrimento. Numa busca do pertencimento/enraizamento pessoal e social e da segurança interior. Num processo que sofrerá uma tentativa de refreamento social, Gaiarsa explica que na medida em que o ser humano adquire sua espontaneidade ele é forçado a outros “iguais” a voltar a sua conduta típica neurótica, isso porque o sistema não permite a diferença, buscando a qualquer custo manter seu status quo. Ainda nas palavras de Boyesen, 1986, p.121: “…a pessoa que assim descobriu sua felicidade interior vai reagir emocionalmente como um todo às situações e às demandas da vida cotidiana mas tem, a cada instante, a possibilidade de reentrar em contato com sua circulação de energia, sua circulação libidinal, o que lhe dá um sentimento de bem-estar e segurança. Diante destas pessoas, muito frequentemente manifesta-se uma atitude negativa por parte das outras pessoas que ainda estão no primeiro lado do espelho. Elas acham que este bem estar e esta felicidade interiores são uma falsificação, uma atitude falsa, uma pose.” Neste cenário, precisamos enquanto psicoterapeutas corporais, firmar com nossos pacientes um cotidiano de experimentações e invenções de modo de vida que fogem do padrão e do que é aceito socialmente. Devemos, pois investir efortalecer o paciente, em seu tempo subjetivo, em sua circulação libidinal, em seu enraizamento, e prazer em existir. Um existir em prol de um outro mundo possível, que vai se construindo aos poucos, nas bordas e fissuras que nosso sistema atual se encontra de subjetividades servis e tristes. É o momento de fortalecer os pacientes para que eles também possam nadar contra a maré, apostando na potência de afetar e ser afetado, que é o desenvolvimento humano saudável. Precisamos enquanto psicoterapeutas acreditar que os destinos não são selados e que a rigidez pode se dissolver sob nossas mãos. “A partir de nossas experimentações, inclusive conceituais, apostamos que o corpo pode ser um operador importante na direção da construção de linhas de fuga para o que está naturalizado no terreno do cuidado em saúde. Deste modo, uma pergunta aparece forçando um pensamento intempestivo capaz de produzir estranhamento: como dar corpo a outras práticas clínicas?” (Humanizasus, p. 111) Dito de outra forma: necessitamos intervir no modo de pensar e fazer clínica. Através de práticas clínicas que esquivem do modelo corpo/relações atuais. Creio que a psicologia biodinâmica é um fio condutor dessa ampliação da clínica, e que traça seu caminho quando o corpo é um acontecer atento em todo o momento da psicoterapia. Ela perpassa o tempo do corpo, o ego corporal, o estar corpo e psique como um só. Compreende a clínica do corpo como norteador de toda construção terapêutica e emprega essa ‘verdade’ no estar com o paciente para que este leve consigo e se ambiente no mundo a partir de um outro lugar, de outro tempo, pertencendo ou não de modo possível – na veste do que lhe cabe. Uma clínica pautada no corpo, e pronta pra dar vivacidade ao ser humano – deveras amortecido não só para a sociedade contemporânea como para outras linhas e abordagens clínicas -, a todo momento delata os rostos fixos e identidades estereotipadas gravadas fisicamente. Ensinando corpos a desaprender o jeito certo de estar, se portar, ser. Uma clínica biodinâmica criando possibilidades de singularização, uma clínica feita por e entre encontro de corpos. Forma potente de fazer clínica numa escuta que se deixa afetar, pelocorpo do outro. “Uma escuta que busque pelo encontro, e não pela palavra, menos ainda por uma palavra justa”. (deleuze, 1992)
Depressão, Sociedade Contemporanea e a Clinica Biodinamica
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