Depressão, Sociedade Contemporanea e a Clinica Biodinamica

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“O termo ‘peste emocional’ não é uma classificação depreciativa. Não implica malevolência consciente, degeneração moral ou biológica, imoralidade, etc. Um organismo cuja mobilidade natural tem sido continuamente contrariada desde o berço desenvolve formas artificiais de movimento. Coxeia ou anda de muletas. Do mesmo modo, um homem atravessa a vida com as muletas da peste emocional quando as expressões naturais e auto-reguladoras da vida são suprimidas desde o nascimento” pg 305 analise do caráter Francisco acaba de sair de uma depressão profunda quando chega ao consultório,e descreve que sofria de uma falta de reação ao mundo. Há um mês atrás podia ficar dias sem sentir forças para sair da cama, comer ou tomar banho, suas pernas tremiam ao ponto de não conseguir mais subir as escadas de sua casa sem ajuda e permanecia sem acessar o andar de cima.Ele era claramente incapaz de achar energia para se mover no fluxo da vida. Esse fora o único período em que não trabalhou. Dono de uma empresa de seguros se orgulhava pela dedicação que tinha a empresa, a função imprescindível que ocupava e a pressão resultante. De volta ao “mundo” assumiu novamente a rotina maçante (como ele mesmo dizia) e opressora, em seu rosto uma máscara importante para a encenação que realizava todos os dias em seu trabalho. Ele necessitava se sentir aceito e pertencente socialmente. Conta que ao iniciar o tratamento com psicotrópicos conseguiu novamente andar por suas pernas executando suas tarefas com afinco, mas estava como que num alojamento precário no mundo e interiormente dizia não sentir nada. Observando-o desde sua chegada a sala do consultório, a sensação era de que ele não estava ali e não sabia se estava de fato em algum lugar. No rosto um olhar distante, na queixa uma sensação de vazio e rigidez. Sua fala me atingia de modo monótono, amortecida, sem variação de intensidade. Francisco se comunicava do mesmo modo que vivia. Ele medicado escolheu ir em frente inflexível em sua rigidez de máquina. Rigidez e desânimo de uma vida interna claramente manifesta em seu corpo e em seu modo operante de conduzir a vida. Essa era a manifestação da sua personalidade secundária que de acordo com Boyesen “A personalidade secundária é a expressão do choque na luta pela vida. A energia está encapsulada e o contato com a bioenergia foi perdido” (boyesen, pg 68).Franscisco se impossibilitava de sentir sua circulação libidinal e o cansaço tomava conta de seu corpo e rosto. Dono de um rosto hipotônico e uma respiração difícil de detectar, era possível cogitar a hipótese de que: pela tensão emocional acumulada e inibição da espontaneidade havia naquele corpo uma tensão muscular crônica (que foi confirmada nas massagens), que o impossibilitava de estar presente na sessão, ele não sabia o que dizer, não se abria, não sentia. Na depressão: “Não sente as perturbações no funcionamento de seu corpo, sua mobilidade reduzida e a respiração inibida, pois se identifica com ego, sua vontade e sua imaginação. A vida de seu corpo, que é a vida no presente, é considerada como irrelevante….” (Lowen, 1983,og 23) Francisco ainda não estava pronto para o encontro, do mesmo modo que ainda não havia chegado ao consultório, e que para ele era ainda um não-lugar. Habituado aos não-lugares, ele não sabia como permanecer e pertencer à sala de terapia, como existir em um lugar, em um corpo. “Não-lugares desencorajam a idéia de “estabelecer-se” (…) aceitam a inevitabilidade de uma adiada passagem, às vezes muito longa, de estranhos, e fazem o que podem para que sua presença seja, “meramente física” e socialmente pouco diferente, e preferencialmente indistinguível da ausência, para cancelar, nivelar, ou zerar as idiossincráticas subjetividades de seus “passantes” (Bauman, 2001, p 119 . Cadernos humaizasus, 2015) Francisco estava acostumado aos não-lugares, sociais ou pessoais a característica frequente era da impessoalidade, espaços comuns, sem potencial de encontro, porque para ele não fazia sentido. Ele sem saber reproduzia a lógica social, onde cada vez mais os lugares são passagens, são feitos para a não-demora, para o acesso rápido e fácil, exigência de um tempo veloz. Mesmo sua casa era impessoal, mudou-se há um ano por conta da esposa, construiu a casa mas não participou das escolhas. Agora não sentia aquele espaço como seu. Indagado sobre a possibilidade de ter um cômodo na casa que pudesse se sentir a vontade, ergueu os ombros, como se nada pudesse ser feito. Do mesmo modo que na sessão terapêutica ele também sentia que nada pudesse ser feito para ajudá-lo num tempo que passava longo. Ir em direção a um lugar lhe causava medo, insegurança, era um terreno não conhecido onde ele teria que ter a coragem para estar presente, permitir o encontro, sofrer a experiência e sentir. Esta situação durou cerca de 2 meses, a couraça começou a ceder, se afrouxar diante da receptividade que sentia. Ali ele começou a compreender que poderia ser ele mesmo sem o medo de meu julgamento. Eu permanecia presente em suas queixas e dificuldades, num espaço da sessão para que a experiência realmente acontecesse, recebendo numa postura que Boyesen,1986, p.102, chama de método da parteira: “Chamo este método terapêutico de método da parteira. O terapeuta deve estar separado de sua própria necessidade de estar ativo, de falar, etc., a fim de que possa estar passivo, paciente e que possa deixar desenvolver o processo dinâmico curativo. O terapeuta deve simplesmente oferecer uma aceitação e um amor total para que o “estímulo interior” possa se desenvolver completamente e transformar o ser do paciente.” Francisco pode então começar a se expressar num tom mais profundo e suas queixas não eram mais apenas um acúmulo de palavras mecânicas. Por várias sessões o paciente revia suas escolhas no presente, e buscava modificar o que queria fora do espaço psicoterápico, porém na sessão seguinte reclamava que era apenas estar no mundo que se desconectava de si, de seu ritmo interno, recém descoberto, frágil, e lhe voltava à sensação de falta de energia, inutilidade e impotência. Francisco reproduzia a experiência de outros tantos humanos na sociedade atual e foi importante para ele conscientizá-lo da natureza desumanizadora do tempo. Um tempo social que não é regido pelo tempo interno das pessoas, tempo artificial, tempo máquina acelerado. Para Safra, nós, como psicoterapeutas, devemos compreender as possibilidades de existência humana do paciente em sua história nesta realidade. Uma realidade atual que “coisifica” o ser humano reduzindo-os a mera abstração. Abstração sem ritmo, sem tempo interno. Para Francisco até iniciar a psicoterapia só existia o tempo organizado socialmente sentido como invasão. Seu tempo subjetivo não havia se constituído e ele não o sentia. Percebia nas sessões que havia um desencontro precoce do paciente com seu ritmo interno o que agravava sua sensação de impotência assim que saia da sessão psicoterápica. Propus, então, que realizássemos exercício de respiração e que ele repetisse esse exercício todos os dias em algum período de seu dia. O objetivo era ajudá-lo a conectar com seu ritmo interno, a descobrir seu tempo subjetivo, sabendo que assim também abriria as portas para um tempo compartilhado comigo e com os demais. “a entrada no tempo compartilhado só pode ocorrer de forma satisfatória se o tempo subjetivo foi bem constituído. (…) É um movimento que possibilita que ela tolere as flutuações entre presenças e ausências (o não-eu) e se instrumentalize na habilidade de utilizar a imaginação para lidar com essas experiências. Com estes recursos, ela consegue colocar a nova experiência sob o domínio de sua criatividade. Paulatina e criativamente, ela se movimenta do tempo subjetivo ao convencionado nesse percurso, inicia-se o uso do tempo transicional. O tempo do faz-de-conta.” (Safra, 2005,p.67) Para Safra o tempo transicional é o tempo despendido para com um começo, meio e fim numa atividade do faz-de-conta, do encantamento. Quando a pessoa não tem seu tempo subjetivo estabelecido ela não consegue ter a dimensão de um fim, e toda a situação psíquica é vivida como eterna. Este estado preenche o ser e lhe confina na angústia, visto que sente sua situação como sem saída, aprisionado em um estado psíquico de estática. Nas palavras de Safra “É uma experiência terrível, pois o indivíduo sente-se em espera, em depressão, em ansiedade para todo o sempre. Sem poder viver ou morrer.” (Safra, 2005,p.68). Assim compreendia a extensão de como Francisco se sentia fora do mundo, fora do tempo e sem perspectiva do encontro com o Outro e para mim era só com o contato com seu tempo subjetivo que ele conseguiria se conectar, sentindo a continuidade da vida e acontecer o si mesmo no mundo, ou seja, resgatar sua personalidade primária. Iniciamos com uma técnica simples, que Gaiarsa descreve em seu livro “Respiração e circulação”, o paciente deitado em decúbito dorsal com as mãos formando um U para cima ao lado da cabeça, suas pernas juntas flexionadas em direção ao tronco escolhem um lado para permanecerem e a cabeça se projeta para o lado oposto das pernas. Após um período se inverte a posição das pernas e cabeça. Pra mim foi surpreendente quando Francisco me olha e pede para que eu realizasse juntamente com ele o exercício. Asensação era de que para ele era importante uma presença que respeitasse e seguisse seu ritmo, um outro ali, se fazendo presença para que o gesto ocorresse e ele pudesse enfim se reconectar ao seu tempo interno. Havia outro motivo para os exercícios de respiração. O fato era que o paciente apresentava uma respiração superficial, curta, sem movimentar em nada o peito. Ele respirava como vivia, comprimido, sem se posicionar no mundo, desvitalizado. Posição depressiva típica, condição que deixava claro seu cansaço e falta de ação. “mais importante, contudo, é a diminuição da absorção de oxigênio devido a marcada diminuição da atividade respiratória (…) A relação entre a disposição depressiva e a respiração depressiva é tão direta e imediata que qualquer técnica que ative a respiração afrouxa a garra do estado depressivo. Isto acontece pelo aumento do nível de energia do corpo e pelo reestabelecimento da parte do fluxo de excitação corporal.”(Lowen, 1983, p.68) Com esta técnica foi possível alongar os músculos da respiração, que acreditava eu estarem retesados: tanto quanto notava quando o paciente estava deitado um acúmulo de fluido na região abdominal e uma má distribuição energética. “Esta má administração energética na pessoa, sempre causada de fora para dentro, do social para o pessoal, e produzida por desequilíbrios de nossa vida psíquica e emocional, devido, sobretudo, a bloqueios permanentes da sexualidade; passa também a ser a causa dos sintomas neuróticos, como as fobias, a angústia, a ansiedade, a depressão, as incompetências e impotências criativas, sexuais e afetivas (Freire, 2006, p.35) Era necessário aumentar a carga energética e cooperar na dissolução das couraças, afim de Francisco sentir-se mais disposto a agir no mundo em sua volta. Isto feito com muita delicadeza, sem oferecer informações e sensações a mais do que o paciente poderia aceitar. O exercício de respiração foi também realizado todos os dias em sua casa, e aos poucos sua resistência foi diminuindo. “E que ‘fazer amizade com a resistência é ser como um receptador, que aceita e explora sua resistência; qualquer que seja sua manifestação em você, ela está ali por razões valiosas, pois foi criada inconscientemente, para protegê-lo contra a dor. Como alguém que ajuda preste atenção à resistência no seu cliente, respeite suas manifestações contra a entrega. Saiba que se você tiver um procedimento gentil, a resistência poderá se dissolver sob suas mãos – se você penetrar estupidamente, ela apenas aumentará. (2 pg.115). Seu trabalho se baseia em quem você é. Como alguém que ajuda, não analise seu cliente, deixe que ele dirija seu procedimento. E você: você olha, você escuta, você sente, você respira, você pensa. Então deixe suas mãos falarem”. (2 pg.115).” (Milessi, 2010, p. 06) Ao mesmo tempo em que ocorriam as sessões de psicoterapia, Francisco se deparou com um motivo a mais pra se focar em seu desenvolvimento interior, é que sua filha completava 2 anos e cada vez mais procurava o pai para afeto e brincadeiras, o que o deixava claramente desconcertado, sua frase era “não quero ser como meus pais foram comigo” falava em um tom desolado, de quem não conseguia ofertar e retribuir os carinhos que recebia sem exigências. Francisco se incomodava – sentimento que o fez sair da inércia que o abafava, ao mesmo tempo que sua respiração também começara a se sofrer alterações. Ele deitava e logo conseguia inspirar com mais profundidade, estava de fato afrouxando sua couraça em alguns momentos, porém a expiração era curta, como se o ar tivesse sido retido, do mesmo modo que ainda não conseguia demonstrar seus sentimentos. Trabalhei, então, com a mão instalada sobre seu peito exercendo uma leve pressão, pedia para que ele inspirasse impulsionando minha mão para cima, e em sequência soltasse o ar. Na expiração ajudava o movimento com minha mão, pressionando para baixo o peito de forma não invasiva. Repetia esse exercício algumas vezes, aprendido em aula da especialização em psicologia biodinâmica ministrada pela coordenadora Gloria Cintra, até que em alguma nova inspiração soltava a mão do peito e o deixava respirar livremente. Com este exercício foi possível a respiração de Francisco se aprofundar ao mesmo tempo que se dava conta do quanto retinha o ar ao invés de expeli-lo livremente. Relacionou esse acontecimento a sua dificuldade de expressar seus sentimentos enclausurados desde idade muito remota e pode a partir daí rever sua infância, agregando ao seu discurso das memórias certa emotividade. Filho caçula, Francisco tem 1 irmão sete anos mais velho. Entre um e outro sua mãe tivera dois abortos espontâneos de meninas, devido a esse fato sua criação fora coberta de zelos, impedimentos, e solidão. “a primeira situação é aquela em que a mãe se apresenta ao bebê como um objeto intrusivo. Ela se torna objeto parao bebê antes que ele tenha condições de alcançar a experiência de uma relação objetal. A mãe aparece em presença excessiva, intrusiva, intensificando a percepção do bebê de uma realidade objetiva. Há diferenças significativas entre a possibilidade de um bebê experimentar, no início de sua vida, a realidade de forma subjetiva ou de forma objetiva. Na maneira subjetiva, o bebê vive o meio ambiente e como continuidade de si, situação que lhe dá a possibilidade de reconhecimento da realidade objetiva em seu tempo de maturação.No modo objetivo, o bebê percebe o outro como objeto, antes que tenha desenvolvido a noção de eu e outro, ou seja, fora de seu processo maturacional. Quando a mãe se apresenta de maneira intrusiva, sua presença excessiva impede o aparecimento do gesto criativo do bebê. Esse tipo de situação leva-o a uma dissociação precoce e a uma adaptação àquilo que é apresentado.”(safra 2004,p.129)   Uma realidade imposta a Francisco que dava nitidez a sua condição, aos seus gestos tímidos e contidos, visto que ele era filho de uma mãe que temera. E que nesta relação não foi admissível para ele ainda bebê incorporar seu gesto como criação. Um impedimento que o desalojou de seu corpo, ou pelo menos a partes dele, sendo o mais perceptível seu peito, o núcleo das emoções. Um peito que não fazia parte de seu campo existencial e que nas sessões psicoterápicas realizadas a técnica da pressão no peito provoca-lhe o incômodo e as memórias. Um exercício que ajudava o paciente a constituir o gesto não possível na relação materna. Numa falha que formou um trauma nessa fase do desenvolvimento em que a base é o caráter oral. Num peito encouraçado que conduziu a sensação de vazio, de não continuidade, de ser engolido por um tempo que não era seu, de um gesto que não acontecia, acompanhado de angústias e ansiedades, caraterísticas da depressão. Porém, Francisco na sessão justificava a intrusão da mãe; perdendo duas filhas o medo é que o mesmo acontecesse com ele e para tanto ela o prendia junto a ele na tentativa de o salvaguardar.Para ele a educação que recebera era proteção, algo vindo tanto do mãe quanto do pai. Os via como figuras rígidas que educavam como foram educados. Percebera ao longo das sessões que acostumou-se a tal ponto ao que lhe era imposto que aos poucos foi se tornando um igual. “Quem é rígido foi mal tratado e perdeu o jeito e a esperança de amolecer – enternecer – de entregar-se. Foi batido demais, na forja chamada EDUCAÇAO.” (Gaiarsa, tratado geral sobre a fofoca geral 212) Francisco não se recorda te tentar lutar contra a educação claustrofóbica que lhe fora imposta. Lembra-se somente da tristeza e vazio que acompanhava os dias fechado em casa sem amigos, numa exigência de cuidados consigo e que se estendeu aos estudos. Aceitava tudo na esperança de ser aceito e amado por sua mãe, seus esforços eram no sentido de ser um bom garoto, de realizar todas as tarefas com perfeição e não chatear, visto que seu irmão, indomável, era motivo de sofrimento para seus pais. Francisco era vítima da educação compulsória de uma época que tantos outros pais se validavam do poder sobre seus filhos em prol “do melhor para eles” para não respeitarem seus ritmos, desejos e sentimentos e assim criarem filhos a seus espelhos.   “A tragédia da criança é esta: a criança é repreendida, incompreendida, castigada ou não ouvida, sempre que fala DO QUE VÊacada momento sendo OBRIGADA A DEIXAR DE VER   Isto se chama processo pedagógico – educativo-socializante de alto nível, destinado a fabricar cidadãos ótimos TODOS CEGOSde uma cegueira muito especial.” (Gairsa, trat geral 185)   Cintra, (2001) comenta sobre a educação compulsória e esclarece o como Reich compreendia esse tema: “Reich prossegue dizendo que “a importância da atitude do corpo para a reprodução estrutural da ordem social, será entendida, um dia, e praticamente dominada em larga escala. Certas expressões, habituais na educação pela boca de pais e mestres, retratam com exatidão o que descrevi como técnica muscular de encouraçamento. Uma das peças centrais da educação atual é o aprendizado do autocontrole: ‘- Quem quer ser homem, deve dominar-se.’ ‘- Não se deve deixar-se levar.’ ‘- Não se deve demonstrar medo.’ ‘- Cólera é falta de educação.’ ‘- Uma criança decente senta-se quieta.’ ‘- Não se deve demonstrar o que se sente.’ ‘- Deve-se cerrar os dentes.’ Essas frases são características da educação; inicialmente são repelidas pelas crianças, depois aceitas com relutância, laboradas e por fim, exercitadas. Entortam-lhes, via de regra, a espinha da alma, quebram-lhes a vontade, destróem-lhes a vida interior, fazem delas bonecos bem-educados. Por mais intensamente que as crianças anseiem por uma vivacidade e por uma liberdade vegetativas, recuam diante delas e voluntariamente suprimem os seus impulsos quando não encontram um ambiente congenial, onde possam desenvolver a sua vitalidade sadia, relativamente livre de conflitos. Este é o mais exato entendimento dos mecanismos pelos quais as emoções são patologicamente controladas.”     Gerda, 1986, também comenta sobre essa forma de educação e o resultado em sua própria criação:   “educação que pretende transformar as crianças em adultos miniatura, em lugar de deixá-las se tornarem elas mesmas (…). Eu me tornei uma garota muito boazinha, muito sabida, muito obediente, que trabalhava bem na escola, muito polida, mas eu não tinha mais força, não tinha mais uma vida verdadeira em mim. Meu rosto não tinha brilho. Agora compreendo que toda bioenergia, toda a força de vida em mim, havia sido reprimida – Hoje também compreendo que, mesmo que meu pai as vezes dissesse o quanto tinha orgulho de mim, quando olhava para minha irmã (que não havia sido reprimida e que era muito viva) uma verdadeira alegria se manifestava em seu rosto. Contudo minha irmã não era polida nem obediente – ela era atrevida, independente.”(Boyesen, 69)   Vítima e sobrevivente de uma família repressiva, Francisco aprenderá a negar seus sentimentos em prol de uma falsa tranquilidade familiar. De fato dizia não experimentar nenhum sentimento específico por sua mãe. De algum modo ela permanecia ali, desfocada, distante. Numa tentativa de aproximação Francisco decide escrever uma carta para ela. Proposta feita em terapia já que iniciara discretamente um desejo de aproximação. Neste ponto já estávamos no quarto mês de terapia e Francisco em lamento contava sobre o pouco progresso que havia feito, num tom de cobrança pessoal como um bom menino que não conseguia agradar a terapeuta, encobertando uma exigência: “Você é responsável por mim, cuide de mim”. Na verdade em vários momentos da terapia era necessário retomar em que ponto ele mesmo era responsável pelo lamaçal existencial que vivia. A culpa era do seu irmão sócio na empresa que não se responsabilizava pela função. Da esposa que não o ajudava a fazer outras coisas de sua rotina. Da mãe que não lhe dera a liberdade para se desenvolver. Discurso que ainda não era permitido se empoderar da raiva. Raiva que sentia especialmente naquele momento por sua mãe perceptível somente por uma contração dos lábios. Fransciscohavia entregue a carta a mãe, uma carta delicada que ainda o colocava na inércia de filho obediente. Sua mãe ao recebê-la, guarda e não lhe comenta nada. Ele fica assim suspenso, com a fragilidade de quem tentou o contato e não obteve o amor esperado, mas que rígido não pode chorar pela ausência ou urrar pelo descaso que sentia vir da mãe. Não trazia a carga da raiva em sua fala, tom de voz (algo que demorou algum tempo para se deixar acontecer) e mesmo indagado sobre o que sentia dizia não sentir nada. Um nada que contradizia as discussões coléricas tanto no ambiente de trabalho quanto em casa com a esposa. Porém uma raiva manifesta por acúmulo de tensão no presente. Para ele era melhor tentar guardar a raiva que as frustrações geravam no seu dia a dia, com o efeito colateral de explodir esporadicamente, do que de fato se colocar a cada situação. Francisco tinha várias características do que Lowen chamava de caráter oral reprimido, quando era guiado por um comportamento raivoso, sarcástico, contido e muito tímido, que fala por entre os dentes, numa intensa rigidez na couraça no segmento oral. Contudo sua raiva se restringia a momentos atuais, nunca ao seu histórico, num processo de repressão que era difícil acessar na sessão terapêutica. Neste ponto, após a nova desilusão com a mãe, Francisco se retirou, de si mesmo e da sessão terapêutica. Neste ponto mesmo os exercícios de respiração eram negados e eu entendia meu papel como novamente a de estar presente, numa aceitação do que Francisco mesmo diante de tudo aquilo que não estava pronto a mostrar. Era uma atitude de ser a mãe suficientemente boa numa fase do desenvolvimento muito precoce em que para Francisco não ocorreu. Era a forma que eu encontrava de dizer que era aceito, que ali, no setting terapêutico, podia ser ele mesmo.    

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