Couraças de Reich a Boyesen: Um percurso biodinâmico

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Ana Cristina dos Santos Teixeira

anateixeirapsi@gmail.com

 

“No Homem maduro esconde-se uma criança que quer brincar”

Nietzsche

 

“Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração,

Toda vez que o adulto  balança, ele vem para me dar a mão.

(…)Ele fala de coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor.”

Milton Nascimento e Fernando Brant

INTRODUÇÃO

O medo impede a expressão espontânea na criança. Reich  apresenta o conceito de couraça de caráter, como uma solução infantil ao conflito edipiano para suprimir o medo e permitir uma expressão socialmente aceitável. O medo sempre foi relevante para mim, mesmo quando não tinha a menor ideia dos efeitos nocivos e doentios de uma couraça de caráter; não sabia que Freud tinha criado uma forma de trabalhar através da “talking cure”; que Reich  havia construído uma sistemática de análise e intervenções no corpo com o objetivo de desbloquear e permitir a expressão espontânea, genuína; e a Gerda Boyesen revelado com a sutileza do feminino,  a importância dos fluidos nas vísceras em sua manobras de dissolver couraças invisíveis.

As couraças deixaram de ser verdadeiras armaduras hipertônicas reveladas por Reich. Com a abordagem da Psicologia Biodinâmica podemos ter acesso as armaduras invisíveis; como diz Gerda Boyesen, “às camadas mais profundas” e sutis do processo de encouraçamento.

Poderia ter seguido meu percurso profissional como uma historiadora, e falar sobre o impacto dos “anos de chumbo” na vida das pessoas e ter aí uma boa justificativa para o medo de me expressar. Nasci e fui criada num tempo em que se expressar, ter opinião divergente da “oficial” era crime, a pessoa era torturada, morta ou exilada. A minha família e muitas outras viviam sob o medo de um Estado obscuro.

Mas eu tomei outro caminho,  eu gosto de saber das histórias de vida das pessoas, o que as faz sofrer e principalmente como dão sentido a vida!  Me  tornei uma escuta, um olhar, uma palavra e um toque!   Me  apresento como psicoterapeuta corporal, e é sobre a ampliação de horizonte, no percurso que me leva de Reich a Boyesen que construo esse trabalho de conclusão do Curso de Formação em Psicologia Biodinâmica.

Muitas vezes o que traz as pessoas até meu consultório é o sofrimento: o desamparo, a desilusão, as perdas afetivas, o medo da vida, as raivas narcísicas; e o meu trabalho é de pescadora com vara e anzol em punho aguardando, não passivamente, o momento em que vamos poder ver o que tem para além do sofrimento, o que as potencializa para a vida!

O que fazer enquanto aguardo o momento de travessia do sofrimento?  Como disse antes, eu escuto, eu olho, eu falo e eu toco as pessoas com as mãos; eu as convido a habitar o vazio de seus corpos,  silenciados pela não expressão de seus afetos, ou também pela distorção destes. E foi a qualidade dessa intervenção corporal, tocar o corpo, que se transformou ao longo do meu percurso de Formação em Psicologia Biodinâmica.

Minha primeira formação de Psicoterapia Corporal foi em Análise Reichiana, onde ouvi falar em Gerda Boyesen, mas não me aprofundei. Meu trabalho se ancorava em análise do caráter e a técnica de vegetoterapia e estudos contínuos de psicanálise. Com a vivência em Psicologia Biodinâmica: aulas práticas, meu atendimento pessoal, a troca de massagens com as integrantes do grupo e meus atendimentos clínicos pude acessar o corpo em sua multiplicidade de fenômenos apresentados por Gerda Boyesen em seus escritos.

Procuro desenvolver ao longo desse trabalho o percurso que me levou de Reich a Boyesen, mantendo o foco no conceito de couraça. Apresento as principais descobertas e analogias de Gerda Boyesen sobre o processo de encouraçamento descrito por Reich, situando seus pontos em comum e avanços. Apresento uma introdução ao funcionamento do Sistema Nervoso Central e seus efeitos ao se trabalhar com o corpo. Correlaciono o funcionamento do Ciclo  vasomotor descrito por Gerda Boyesen e os quatro tempos da fórmula Reichiana do Orgasmo,  destacando o Momento Dinâmico no trabalho de intervenção corporal apresentado por Ebbah Boyesen. Por fim, Descrevo os efeitos das intervenções corporais e a importância da autopercepção na clínica corporal.

Capítulo 1 – O QUE É UMA COURAÇA?

1.1- Definição do Conceito de Couraça na Abordagem Reichiana e na Psicologia Biodinâmica.

O ser humano em sua integralidade evita a dor e busca o prazer, desde os primórdios de sua vida, com seu aparato de recursos defensivos ainda pouco elaborado, suas reações à dor já estão presentes na forma de choro, contração muscular, retraimento, insensibilidade, perda de contato com o estímulo interno ou externo.

Para Federico Navarro, analista reichiano, “na base de toda patologia há a emoção do medo…é a causa de todo impasse, de toda resistência, de toda violência.”  (1996, p.19). Reich sistematizou no livro Análise do Caráter uma forma de identificar e evidenciar a resistência que impedia o acesso aos conteúdos emocionais do paciente, funcionando como uma proteção ao ego:

“ O caráter consiste numa mudança crônica do ego que se deveria descrever como um enrijecimento. Esse enrijecimento é a base real para que o modo de reação característico se torne crônico; sua finalidade é proteger o ego dos perigos internos e externos. “( 1989, p. 149)

A couraça de caráter  descrita por Reich é o resultado desse enrijecimento muscular  de partes do corpo. Para Reich a couraça corresponde a estrutura de defesa muscular. O caráter é seu correspondente comportamental, o modo de se expressar evitando o conflito, angústia, a dor.

Gerda Boyesen comenta sobre a couraça reichiana:

“…o homem também possui um sistema nervoso intacto que, em conjunto com o controle cerebral, tem uma grande capacidade para transcender os instintos através da consciência, bem como a capacidade de reprimir os instintos. Então o sistema de unidade-múltipla se torna uma couraça muscular, para encapsular as correntes plasmáticas e impedir a sua expressão instintiva. Daí para frente, começa o conflito entre psique e soma, através da interação antagônica entre as unidades-singulares e as unidades-múltiplas. Então o homem perde seu ritmo interior, a sua respiração primária, pois a alternância entre pulsação e excitação se tornou uma ameaça para o seu ego.” (site www.ibpb.com.br)

A Psicologia Biodinâmica inova ao incluir os aspectos de pressão dinâmica latente ao conceito de couraça. Dessa forma, Gerda Boyesen (1986) destaca que as tensões provenientes dos estados emocionais produziriam pressão nas vísceras temporariamente, através de secreção de hormônios e retenção de fluidos pertinentes ao estado de estresse momentâneo. Na impossibilidade do corpo se autorregular, a pressão visceral cria uma perturbação vegetativa e osmótica a partir desse efeito residual não descarregado, cronificando esse funcionamento e dando origem à couraça visceral e tissular.

Ainda segundo Boyesen (1986),  na vivência de desbloqueio da couraça, deve se estar atento ao “perigo de passagens bruscas de movimento de liberação do inconsciente”, uma vez que o paciente precisa se sentir seguro para que o fluxo liberado não seja interrompido ou vivido como um reflexo de sobressalto, gerando uma nova couraça. Segundo Samson (site IBPB), a couraça secundária, consiste  num dos “ efeitos colaterais consequentes do trabalho psicoterapêutico aplicado de forma invasiva.”

As couraças atingem também os grupos sociais, sendo nesse caso nomeadas de “peste emocional” por Wilhelm Reich:

“Podemos definir a peste emocional como um  comportamento humano que, com base numa estrutura de caráter biopática, age de maneira organizada ou típica em relações interpessoais, isto é, sociais, e em instituições correspondentes (…) a peste emocional se manifesta: misticismo em sua forma mais destrutiva; sede de autoridade passiva ou ativa; moralismo; biopatias do sistema nervoso autônomo; política partidária; peste familiar, a que chamei de ‘familite’; métodos sádicos de educação; tolerância masoquista desses métodos ou revolta criminosa contra eles; bisbilhotice e difamação; burocracia autoritária; ideologias de guerra imperialista; tudo o que entra no conceito americano de racket (negociata); criminalidade antissocial; pornografia; agiotagem; ódio racial.” (1989, p.450)

Evânia Reichert contextualiza a peste emocional, que nos dias de hoje se despe do moralismo conservador, assumindo uma outra roupagem:  no “culto aos pseudovalores, à competitividade e ao consumo, com a progressiva perda de interioridade e de contato com valores humanitários” ( 2013, p.67)

1.2 – As Couraças em Diversas Abordagens.

Que outras formas a couraça pode assumir? Na busca de proteção da dor,  o homem criou e continua inventando diversos recursos, dispositivos e atualmente aplicativos virtuais que deem conta de  abrandar, neutralizar ou mesmo aplacar o mal estar.

A couraça externa é um recurso de proteção ao corpo  que  possibilita uma maior resistência  aos ataques: A armadura usada no período medieval, como forma de proteção em combates, disputas e guerras permitiu ao homem o embate corpo-a-corpo e expandiu as fronteiras dos povos que buscavam novos territórios.

“Diferentemente das armaduras primitivas, que deixavam partes vitais do corpo indefesas, a tecnologia medieval criou as primeiras armaduras perfeitas… Pescoço, ombros e joelhos ficavam expostos quando as primeiras armaduras de combate começaram a ser feitas. Essas regiões do corpo eram, então, cobertas com placas de couro fervido, que, ao secar, mascaravam com falhas a rigidez do metal.” (http://seuhistory.com/noticias/epoca-medieval-em-que-o-homem-criou-armadura-perfeita)

Encontramos na literatura o famoso Dom Quixote de La Mancha, personagem de Miguel de Cervantes, que serviu de modelo para diversas gravuras, quadros, estatuetas, que retratam o imaginário do cavaleiro de armadura medieval:

“ Já fraco da razão, o fidalgo resolveu um dia transformar-se em cavaleiro andante e sair pelo mundo para pôr em prática as peripécias que lera nos livros…Um cavaleiro andante precisava de trajes adequados, armas e montaria.  Revirando velhos armários, o fidalgo resgatou uma armadura antiquíssima, que pertencera a seu bisavô, limpou-a e consertou-a o melhor que conseguiu. Depois fez o mesmo com uma espada mofada e cheia de ferrugem. (Miguel de Cervantes, 2010, p.14)

Embora vivamos em outros tempos, não dispensamos o uso das armaduras; e a sofisticação da tecnologia medieval deu lugar a  outros tipos de armaduras: coletes a prova de bala dos policiais, uniformes corporativos, de músculos hipertrofiados nas academias, tatuagens e escarificações no corpo, blindagens virtuais com as redes sociais e aplicativos de encontro  e tantas outras descritas por poetas e escritores..

Mia Couto se utiliza da metáfora  “espessas cicatrizes” como uma armadura de carne que protege, que deixa insensível seu personagem, blindando-o da dor de viver a perda das mãos:

“Viverás para sempre com essas espessas cicatrizes. Mas a verdade é esta: as cicatrizes protegem muito mais do que a pele. Eu, se pudesse renascer, pedia para vir coberto de cicatrizes, dos pés à cabeça.” ( Padre Rudolfo ao sargento Germano, Mia Couto, 2016)

Também encontramos em Chico Buarque uma solução para a frustração de um grande amor, onde o pulsar do coração é substituído por uma dureza   que busca assegurar a devida proteção à dor da perda de um grande amor:

“Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito/ Exijo respeito, não sou mais um sonhador/ Chego a mudar de calçada/ Quando aparece uma flor/ E dou risada do grande amor/ Mentira” (“Samba do Grande Amor”, Chico Buarque, 1982)

O fenômeno da proliferação de tatuagens que revestem atualmente grande parte do corpo, deve ser considerado no seu aspecto expressivo de uma cobertura que exibe uma identidade, afirma seu pertencimento social a uma “tribo”, criando uma couraça dermatológica que encobre afetos através da marcação no corpo.

“É pensando que tais práticas de tatuagem, piercing e escarificações demandam uma escuta não redutora de suas polissemias, que afirmamos ser no corpo que se inscreve, literalmente, a história do sujeito. O sujeito se esforça para exteriorizar seus afetos, fantasias e desejos. O corpo, nesse sentido, funciona como um meio de comunicação. A partir do excesso de informações, o bombardeio de estímulos deixa o sujeito mudo, mas seu corpo fala por meio das tatuagens, piercings e outras obras.” (Moreira, 2010)

Montagu (1988, p. 354) chama de “pichações dermatológicas” e destaca o aspecto defensivo das tatuagens, bem como uma forma de resistência física e  social.

“…os yakuza japoneses, os bandidos, se submetem (a tatuagem) e que, durante o período feudal, chegou a representar um símbolo de resistência ao despotismo. Florence Rome, que realizou uma pesquisa especial com os yakuza, diz que “ por ser um teste de resistência suportar a dor das tatuagens, isso começou a assumir outros aspectos: masculinidade, coragem, saúde, vitalidade,e assim por diante; os yakuza, ao aderirem a este costume sentem-se eles mesmos possuidores destes atributos’.

Motivações semelhantes parecem agir em jovens que pertencem a gangs e a delinquentes ocidentais, assim como orientais…Os próprios delinquentes não estavam alheios ao fato de suas tatuagens alardearem sua filiação com fontes de poder.”  (Monatgu,1988, p.355)

Embora as citações acima se refiram a um tempo datado, e possa representar uma fotografia preconceituosa; as considerações sobre identificação, pertencimento, afirmação e resistência valem para os dias de hoje.  Atualmente,  a tatuagem não é vista como uma atitude marginal, estando inserida na nossa sociedade, inscrevendo nos corpos os mais diversos registros simbólicos, em diferentes gerações e camadas sociais.   Para Montagu, as motivações que levam uma pessoa a se tatuar não se restringem  aos aspectos defensivos variando de acordo com sua inserção na cultura, “seja qual for a causa_ iniciação religiosa, sexual, ostentação, prestígio _,  o elemento de autogratificação pode ser constatado como um fio de ligação visível entre todas as motivações ostensivas.” (op. cit.,1988, p.355)

Capítulo 2 –  O ENCOURAÇAMENTO INFANTIL

2.1 – As Bases de Processo de Encouraçamento.

O encouraçamento é construído na infância como uma reação ao processo educacional repressivo. A criança aprende a controlar seus impulsos e conter suas emoções, criando processos de identificação com a figura que exerce o papel repressor.  Ela constrói uma couraça de caráter, que é “a expressão concreta da defesa narcisista cronicamente implantada na estrutura psíquica”. (Reich, 1989, p.59)

Reich mudou o paradigma da cura da neurose, quando evidenciou o caráter como uma forma de resistência que comprometia a análise do sintoma, proposta por Freud. Através de seu trabalho clínico e direção dos Seminários Psicanalíticos em Viena, Reich mapeou o processo de formação da couraça de caráter, que ocorre em função do conflito entre os impulsos e a frustração destes; sendo resultado de:

“- a fase na qual o impulso é frustrado;

  – a frequência e intensidade das frustrações;

– os impulsos contra os quais a frustração é principalmente dirigida;

– a correlação entre indulgência e frustração;

– o sexo da pessoa principalmente responsável pela frustração;

– as contradições nas próprias  frustrações.” (Reich,1989, p.153)

Segundo Reich (1989), o momento do desenvolvimento libidinal em que o impulso é frustrado serve de base da fixação erógena que irá produzir os traços de caráter: oral, anal, fálico. Se a frustração do impulso ocorrer na fase inicial deste, a repressão  será bem sucedida; e se ocorrer quando este já se encontra desenvolvido, um conflito indissolúvel  se instala entre a proibição e o impulso.  Quanto a frequência e intensidade das frustrações, se acontecer de forma repentina gera o caráter impulsivo; e o acúmulo de frustrações desde o início é a base do caráter inibido. Todo esse processo se daria na dinâmica relacional com um dos pais, ou cuidadores da criança, produzindo processos de identificação com aquele que assumiu a posição de  frustrar o impulso.

Cláudio Mello Wagner, analista reichiano, em “A Transferência na Clínica Reichiana”,  diz que “quanto mais intenso for um desejo e quanto mais intensa for a repressão, maior será a fixação da energia na representação do desejo”; esse “fundamento energético (econômico) das fixações”, produz “representações pulsantes” no inconsciente, e irá ter reflexos no manejo da resistência de  transferência.( 2003, p.147-148)

2.2 – A Visão de Gerda Boyesen do Processo de Encouraçamento na Infância.

O comportamento espontâneo, inclui a possibilidade de expansão e retraimento do mundo, isso é pulsar! Quando inibimos a pulsação, construímos couraças, cronificamos um padrão de comportamento. O efeito do encouraçamento produz rigidez muscular em diferentes partes do corpo através de um aprisionamento de energia (estase) podendo deformar nosso corpo; ou ainda quando a defesa colapsa, produzir angústia. O encouraçamento é uma forma de se retirar do contato com o outro e com os próprios sentimentos; num extremo temos o retraimento, em outro a dissociação que impede a integração de afetos.

Segundo Gerda Boyesen as concepções educativas que não respeitam a “personalidade primária da criança e a espontaneidade do adulto”;  ancoradas primordialmente no superego, são incompatíveis com a vida (1986, p.112). Aliás, seu primeiro contato com Ola Raknes ( seu analista reichiano), revelou sua preocupação enquanto mãe com a educação rígida oferecida às crianças; aconteceu  em 1947, numa conferência sobre  “O Caráter Alemão”. Ao final desta conferência Boyesen, irrompe em fúria contra uma crítica depreciativa de um dos participantes  feita a Raknes, e declara:

“Vocês qualificam os novos métodos de Ola Raknes como ‘experiências’, mas é exatamente o contrário: vocês  destruíram as crianças no decorrer de todos esses séculos de que falam, vocês as dobraram em vez de ajudá-las a se desenvolverem como indivíduos livres. É por isto que existe tanta patologia social.” (1986, p.24)

Após esse episódio, Boyesen ganha a credibilidade de Ola Raknes e inicia sua formação e tratamento em vegetoterapia com ele. Seu tratamento reverbera em  conflitos  entre a teoria e a prática na  criação de suas filhas; “ o choque entre o modo de educação autoritária e a via de autorregulação estava manifesto em minha família” (1986, p.28).  Gerda Boyesen vive na prática da função materna o paradoxo de buscar respeitar a autorregulação infantil e as normas rígidas de um ambiente familiar neurotizante.

O conceito de Personalidade Primária, cunhado por Gerda Boyesen aponta para uma visão de homem possuidor de uma natureza boa, que é capaz de se manter em contato com a energia vital; de acolher e processar emoções, completando ciclos vasomotores emocionais, restabelecendo o processo de autorregulação espontâneo; em sentir “bem estar independente”; em ser uma “personalidade ética”. (Boyesen, 1983c)

Como contraponto a Personalidade Primária, Boyesen (1986, 1983c) descreve o aprisionamento decorrente do processo educacional em nossa cultura, que através da repressão dos impulsos produz distorções na vivência  da criança e cria uma reação defensiva do psiquismo. A essa reação defensiva, Boyesen chama de Personalidade Secundária, que atuaria como uma cobertura a Primária. A Personalidade Secundária equivale ao processo de encouraçamento descrito por Reich, como solução do conflito psicodinâmico do Complexo de Édipo.

2.3 –  A Prevenção ao Encouraçamento Infantil.

Reich em “Crianças do Futuro” (1983) apresenta estudos feitos entre 1926 e 1952 dedicados a reflexão sobre o impacto da repressão aos “impulsos naturais” da criança. Tendo criado em 1949 o “Orgonomic Infant Research Center” (OIRC) em Forest Hills, Nova York, fruto de um projeto que foi gestado ao longo de 10 anos, mais precisamente  entre 1939 e 1949. O OIRC se dedicava a pesquisa da  “criança saudável”, seu foco era a prevenção; e seu objeto de estudos era a criança recém-nascida. Seu objetivo era acompanhar da concepção ao parto, até a idade de 5 ou 6 anos, período em que criança tem a formação da estrutura básica de caráter.

Encontramos em “Crianças do Futuro”, uma série de reflexões a partir de observações decorrentes do acompanhamento de “crianças saudáveis”, que estão em processo de crescimento e sofrem ocorrências traumáticas, e podem atravessar e solucionar  seus conflitos, a partir do reconhecimento e acolhimento de seus afetos. Ficando evidenciada a importância de uma ambiência propicia a autorregulação, isso inclui os pais, os cuidadores, professores, profissionais de saúde;  como forma de evitar a cronificação de uma situação biopática, o encouraçamento infantil. Reich desmistifica o conceito de “criança saudável”, apontando que não cabem ideais de perfeição, que importa é a possibilidade de manter o fluxo energético, através da identificação dos afetos e representações que estão em cena; dando ênfase na possibilidade de encontrar saídas para os problemas e traumas da vida. Não se trata de perfeição, mas de prevenção!

Gerda Boyesen ao se referir “a profilaxia das neuroses”, destaca sua identificação com as ideias de Eva Reich, filha de Wilhelm Reich, e Frédéric Leboyer sobre o “nascimento sem violência”. E acrescenta a esta prática, o estado de felicidade materno durante a gravidez e no parto: “ se a mãe está feliz, ela conhece o bem estar na independência. Há uma outra circulação libidinal, a que une a mãe à criança” (1986, p.152). Após o parto  ela prossegue: “É conveniente que a mãe se ajuste ao ritmo da criança e que não intervenha de maneira brutal ou mecânica neste ritmo”(p.153).

Boyesen sobre as ocorrências do cotidiano da criança:

“Não são os traumatismos mais importantes que instalam a neurose num ser, mas bem mais os fatos repetidos da vida cotidiana. Quando o meio apresenta uma atitude constante de rigidez que leva a criança a tornar-se o que ela não é, sejam as atitudes de demandas, as esperas ou as ambições dos pais, ou ainda sentimentos de culpabilidade injetados na criança, esta é afetada por  choques que nos parecerão ínfimos, mas que são muito graves.”(1986, p.153)

A importância do cotidiano da criança se deve ao movimento de “retração da libido” e ao abandono da personalidade primária, dando lugar ao processo de encouraçamento; quando  “ a criança se resigna, encapsula sua energia e se instala em sua personalidade secundária.” (Boyesen,1986, p.155) Não se pode perder de vista no processo de educar uma criança, sua integridade e identidade.

A terapeuta Reichiana, Evânia Reichert, em seu livro sobre a “Infância a Idade Sagrada”, propõe uma transformação de modelo de educação hierárquica para uma prática que leve em conta “o cultivo deliberado da autorregulação, respeito biopsicológico e bons vínculos como norteadores educativos na  relação   adulto-criança” (Reichert, 2013, p.30). Inspirada por princípios Reichianos, Winnicotianos e do Psiquiatra Claudio Naranjo; Reichert aponta caminhos possíveis para a construção de uma relação entre mãe, pai e filho, sem abusos de poder; onde possa acontecer uma “harmonização das energias do pai, da mãe  e do filho” e “uma transcendência do patriarcado” (Naranjo in Reichert,  2013, p.21).

Reichert analisa a motivação de ter um filho e o impacto desta no exercício da função materna ou paterna:

“Gestar ou adotar uma criança transcende a motivação inicial de ter um filho, muitas vezes apenas um desejo narcisista de prosseguir a própria existência e formar uma família, sem maior comprometimento ou qualquer transformação pessoal.” ( 2013, p.55)

A depender da base da escolha de gestar ou adotar, desemboca-se num mar de angústias diante dos problemas que os filhos apresentam; e surge a peregrinação por especialistas, sejam babás, professores, médicos, psicólogos, etc. como forma de terceirizar e delegar os cuidados com os filhos.

Reichert apresenta cinco padrões, que levam em consideração os “princípios reichianos de autorregulação e dosagem ótima”, com ampliação de características comuns de comportamento de pais, cuidadores e professores em relação às crianças. De forma resumida, esses padrões são:

“Padrão 1 – Equilíbrio entre satisfação e frustração: caracteriza-se pela presença de uma ação educacional frustrante na dosagem ótima, sem gerar uma consequente inibição pulsional completa (…)cria um bom território para o desenvolvimento de pessoas autorreguladas, espontâneas e equilibradas.

Padrão 2 – Desequilíbrio: frustração excessiva: (…)se caracteriza por produzir frustrações excessivas e constantes sobre a criança (…) gerar pessoas com caráter inibido e inseguro, que se tornam medrosas, restraídas, com baixa autoestima e dificuldades de confiar.

Padrão 3 – Desequilíbrio: permissão excessiva: (…) não orienta  devidamente a criança nem faz a contenção afetiva para o desenvolvimento de autorregulação. (…) o processo de socialização se torna complexo, com comportamentos antissociais, às vezes ofensivos e descontrolados.

Padrão 4 – Desequilíbrio: permissão excessiva e frustração traumática (…) um padrão educativo instável, gerador de inseguranças. Os filhos tendem a apresentar dificuldades na regulagem das emoções, contendo-se e explodindo repentinamente.

Padrão 5 – Desequilíbrio: negação da frustração e dos sentimentos (…) A superproteção é um modo de controlar o mundo ao redor da criança, para que ela não sofra, impedindo o seu processo de desenvolvimento e maturação” ( 2013, p.70-76)

.Esses padrões na clínica, podem nortear a identificação das defesas presentes na dinâmica familiar, servindo de base para um diagnóstico que possibilite pensar intervenções necessárias ao tratamento; nunca um enquadre, onde se aplica um rótulo e se justifica um comportamento.

Capítulo  3 – COURAÇA, SISTEMA NERVOSO AUTONÔMO E OS TRÊS CÉREBROS.

Ricardo Rego, médico e analista biodinâmico,  propõe uma ampliação da compreensão da neurodinâmica que diz respeito ao funcionamento do Sistema Nervoso  Autônomo (SNA) e a correlação feita por Reich sobre a Pulsação do Organismo e seus efeitos de expansão e contração, envolvendo o sistema parassimpático e simpático. Segundo  Rego,

“a equiparação da atividade simpática com angústia e desprazer, por um lado, e, por outro, da atividade parassimpática com o prazer e expansão em direção ao mundo, é vista como reducionista e equivocada, na medida em que ambos os ramos do sistema nervoso autônomo atuam em conjunto na autorregulação do organismo, sendo sua maior ou menor ativação dependente das necessidades adaptativas de cada momento.” ( 2014 p. 266-267)

A importância de saber o funcionamento básico do SNA e sua relação com outras áreas como hipotálamo, sistema límbico e córtex e subcórtex, possibilita o terapeuta acompanhar e entender os processos neurodinâmicos envolvidos na intervenção corporal, particularmente a abertura da psicoperistalse na massagem biodinâmica.

Na vivência de perigo ou alerta, o corpo apresenta reações de luta ou fuga, em decorrência de uma ativação simpática. A atenção da pessoa se volta para o ambiente, havendo menor contato com o mundo interno, na busca de assegurar a sobrevivência a ameaça eminente, seja  esta real ou subjetiva. Neste caso, Rego (2014, p.268) relata uma prevalência do funcionamento dos sistemas locomotor e cardiovascular em detrimento do peristaltismo dos intestinos, que se encontra “fechado”, na terminologia da clínica biodinâmica.

Sobre a intervenção corporal, sob a forma de Actings Reichianos, Navarro (1996, p.70) cita G. Gangemi para mostrar que uma intervenção corporal pode partir de uma aparente repetição mecânica, automática, considerada uma expressão do cérebro reptiliano, passando por mobilização da expressão emocional, ligada ao cérebro límbico; podendo alcançar um nível de autopercepção, própria da expressão do neocórtex.

O analista reichiano italiano, Genovino Ferri vai desenvolver maiores considerações sobre a importância dos três cérebros e as intervenções corporais. Segundo Ferri (2011, p.129) a nossa sensação de identidade continuada através do tempo, nos dá a falsa percepção de uma unidade funcional e psicológica localizada no encéfalo. No entanto, não podemos confundir a unidade funcional que constitui a psique, mente e corpo, com o encéfalo. Este é fruto de estratificações que se sobrepuseram durante a evolução filogenética do ser humano,  e se apresentam no processo ontogênico com características bem diferenciadas, sendo responsáveis por habilidades e inteligência que nos permitem atitudes que  vão desde as essenciais à sobrevivência,  a  expressão emocional- afetiva e a relações de alta complexidade cognitiva.

“A formação pró-encefálica mais antiga, correspondente ao cérebro dos répteis, é representada pelos grandes núcleos de base, composto por massas celulares reagrupadas.” ( Ferri, 2011, p.130)

“Mac Lean atribui ao complexo repitliano  a responsabilidade do controle das atividades tais como o desenvolvimento de rotinas e sub-rotinas cotidianas; nas reações das massas às representações simbólicas como insígnias, bandeiras ou retratos de líderes, religiões e políticos; na adesão aos modos e costumes, na cultura, na prática científica; nos infinitos atos repetitivos e obsessivo compulsivos, que cada indivíduo cumpre diariamente, e cuja interrupção ou variação não é apenas desagradável, mas é sempre percebida como um anúncio de eventos nocivos; na grande importância  e autoridade atribuída aos antepassados em matéria legal e em várias outras matérias; na participação como atores ou como público em rituais e cerimônias, cultos e liturgias; na proteção do espaço pessoal, doméstico,coletivo, assim como do espaço conceitual.” (Mc Lean in Ferri, 2011, p.131)

“comportamento de substituição…atos realizados sob estresse como roer as unhas, mexer no nariz, coçar a cabeça, limpar a garganta, cuspir etc.”( Ferri, 2011, p.132)

Enquanto o cérebro reptiliano se caracteriza pela repetição, pelo controle  e preservação da vida; o cérebro límbico, herdado dos mamíferos, traz a dimensão emotiva-afetiva, a dinâmica das relações e vínculos entre os indivíduos; sendo responsável pelo sentir e experimentar.

“Com estas aquisições as sensações primordiais adquirem características qualitativas e novas consequências: dessa forma, nascem o desejo, a ansiedade, o temor, o medo, a raiva, o prazer, o alívio, a calma, a satisfação e com isso a possibilidade de atribuir um significado, um sinal de reconhecimento e integrá-los na memória…” (Ferri, 2011 p.132)

“Outra característica é a integração entre as informações provenientes do ambiente externo, olfativa, visíveis, audíveis, cutâneas e as informações internas, viscerais ou somáticas…” (Ferri, 2011, p.133)

O sistema límbico nos assegura uma maior condição de autopercepção,  de percepção do outro e do ambiente e de registros de memória. Ferri pontua a diferença entre emoção de afetividade. A emoção, deriva do latim “emovere”, significa “movimento para fora de”:

“A emoção se inicia com a vida: filogeneticamente, muito antes do aparecimento de estruturas complexas e extraordinárias, como os três cérebros, e ontogeneticamente no homem, muito antes da linguagem e também da afetividade.” “…distingue os sistemas vivos dos não vivos e define a propriedade fundamental do fenômeno da vida: o movimento expressivo.” (Ferri, 2011, p.136)

A afetividade inclui a presença de um vínculo com um  outro, um objeto, segundo Ferri, é  “uma emoção mamífera”. O neocórtex é considerado o mais recente dos sistemas que compõem o encéfalo; envolvendo e englobando o cérebro reptiliano e sistema límbico, estando “encarregado  do  espaço-tempo, e também do antes e depois, da causa e do efeito, pelos processos cognitivos superiores, do tipo lógico e metacomunicativos que garantem as operações da consciência.” (Ferri, 2011, p.134)

“Portanto o neocórtex, reivindicando para si as informações que chegam do mundo externo e do mundo interno, faz uma integração, ‘amaciada’ pelas operações do límbico que humaniza a sua frieza racional. Esta é a integração sobre a qual o homem desenvolve a sua atividade” (Ferri, 2011, p.134)

O neocórtex processa informações de dor e prazer vindas do sistema límbico, torna estas sensações em sensações conscientes e retroalimentam o sistema límbico e o reptiliano.

Todas essas informações sobre o sistema nervoso central e sistema nervoso autônomo auxiliam na leitura das manifestações corporais decorrentes das intervenções realizadas pelo terapeuta. De forma que a escuta, o toque, a fala do terapeuta deve considerar quando o paciente desenvolve defesas mais regressivas, ligadas a automatismos do cérebro reptiliano  ou produz racionalizações, neocórtex; ou ainda apresenta um bloqueio de afetos, evidenciado dificuldades ligadas ao sistema límbico.

Capítulo 4 – O FUNCIONAMENTO DA COURAÇA

4.1 –  A Descoberta da Potência Orgástica.

Seguindo o percurso que vai de Reich a Boyesen tendo como foco o processo de encouraçamento e suas consequências; partimos dos quatro tempos da fórmula Reichiana de Potência Orgástica e chegamos ao conceito central em Psicologia Biodinâmica de Ciclo Vasomotor. A autorregulação espontânea do indivíduo dependeria da possibilidade de completar seus ciclos vasomotores emocionais.

Reich chega ao conceito de Potência Orgástica a partir das observações clínicas com pacientes que apresentavam quadros de neurose atual com queixas e sintomas referentes a dificuldades na vivência  da sexualidade. Ele apresenta a Sociedade Psicanalítica de Viena em 1923, após três anos de investigação, um trabalho “Sobre a Genitalidade, do Ponto de Vista da Prognose e Terapia da Psicanálise”, tendo o mesmo sido publicado no ano seguinte.  Sua comunicação causou inicialmente uma comoção silenciosa, tendo em seguida se gerado uma discussão onde alguns presentes consideraram  falsa sua premissa da perturbação genital como principal sintoma das neuroses ( Reich,1990, p.91).

Reich se baseia no conceito de Sexualidade ampliado por Freud, rompendo com  a noção pré freudiana de sexualidade genital. Ele introduz novos parâmetros  para o conceito de genitalidade e potência orgástica baseados na vivência clínica;

“Alargando o conceito de função genital com o conceito de potência orgástica, e definindo-o em termos de energia, somei uma nova dimensão à teoria psicanalítica da sexualidade e libido, conservando o seu arcabouço original.”  (Reich, 1990, p.102)

 

 

 

 

Figura1: diagrama ilustra a potência orgástica (Reich,1990, p.95)

Reich (p.94-99, 1990) constrói um diagrama detalhado, apresentado em seu livro “ A Função do Orgasmo”,  onde descreve a curva ascendente de  excitação (I, II e II) e o ápice (A), seguido de repentina queda (IV e V) de  um ato sexual orgasticamente satisfatório, com uma solução completa para as excitações envolvidas através da “convulsão bioenergética involuntária do organismo” e relaxamento (R). Na clínica seus pacientes descreviam vivências de soluções parciais da excitação sexual. Sua fórmula do Orgasmo reduzida consiste em quatro tempos: tensão-carga-descarga-relaxamento. A impossibilidade de percorrer os quatro momentos, seja pela vivência de inibição ou  interrupção; geraria um acúmulo de energia sexual descrita por Reich como estase sexual.

Cláudio Mello Wagner em “A Transferência na Clínica Reichiana”,  situa de qual descarga se faz necessária ao equilíbrio psíquico.

“…a pulsão concebida como representante psíquico das excitações somáticas, ou seja, ela é a porta voz de tensões orgânicas. Enquanto tal, sinaliza para o psiquismo a existência de tensões somáticas que precisam ser desfeitas, descarregadas.” ( 2003, p.138)

Wagner enfatiza a função sinalizadora da pulsão, da necessidade de  descarga de “tensão orgânica”, que alimenta a estase energética.

4.2 –  O Conceito de Estase Energética

A Estase Sexual é o resultado da diferença entre o acúmulo e a descarga  da energia sexual, sendo essa estase de excitação a fonte de energia das neuroses. Reich considera insuficiente  a proposta freudiana para a cura da neurose, de tornar consciente os impulsos reprimidos, sem mexer no núcleo da  estase sexual.

Wagner ratifica “ a importância de se encontrar uma solução para o conflito somático, além da compreensão psíquica. Se não houver encaminhamento para o conflito somático, a fonte continuará enviando pulsões, as quais seguirão pressionando, provocando com isso novos sintomas.” (2003, p.142)

Para Reich, o restabelecimento da potência orgástica, da capacidade de plena satisfação sexual através do percurso tensão-carga-descarga-relaxamento, impossibilitaria a retroalimentação dos conteúdos psíquicos conflitantes. No entanto, a energia sexual impedida de satisfação por conta do conflito dinâmico edípico, seria absorvida no traço de caráter; de forma que “depende do grau de descarga  de energia sexual que o conflito de Édipo se torne ou não patológico” (Reich,1990, p.103)

Figura 2: diagrama ilustra a potência orgástica e a inibição de potência (Reich,1990, p.101)

A estase sexual está na base do processo de   encouraçamento muscular e de caráter. No diagrama anterior, Reich apresenta o desenvolvimento de um funcionamento potente e com inibição da potência, onde a descarga parcial retroalimenta a estase.

4.3 – O Conceito de Ciclo Vasomotor.

Gerda Boyesen baseia seu conceito de Ciclo Vasomotor  no conceito de Estase energética de Reich e  na teoria da Circulação do Sangue desenvolvida pelo Dr. John Olesen, médico homeopata de Copenhague. Ela buscou o Dr. Olesen por indicação de uma amiga médica, reumatologista, sua preocupação inicial estava  ligada a mudança de tônus de suas pernas e pés que inchavam e apresentavam varizes. Esse quadro clínico era  devido ao afrouxamento da hipertonicidade das pernas efeito do tratamento de  massagem que recebia de Aadel Bülow-Hansen; e das muitas horas que passava trabalhando diariamente, de pé, numa posição quase estática.

Boyesen identificou que seu “impulso natural para o movimento, que se manifestava na necessidade de ir dançar” estava inibido (p. 53, 1986). Outro aspecto que corroborou com sua busca de respostas foi o acúmulo de fluidos no corpo e sensação de dormências em volta da boca e dos seios. Esse acúmulo de líquidos em seu corpo, mais uma vez, foi o ponto de partida para um avanço em sua fundamentação da Psicologia Biodinâmica, produzindo um conceito central de Ciclo Vasomotor Emocional, couraças Tissular e Visceral. “A eliminação da couraça tissular e dos resíduos hormonais não se efetua corretamente no organismo neurótico (a adrenalina e os ácidos láticos em particular).” (Boyesen, p.56, 1986)

 CICLO VASOMOTOR EMOCIONAL INCOMPLETO

Figura 3: diagrama de ciclo vasomotor incompleto

No Ciclo Vasomotor completo ocorre a permeabilidade dos tecidos, a bioenergia circula no corpo; no caso de encouraçamento tissular ou visceral há uma estagnação energética e o Ciclo Vasomotor fica incompleto, não é possível metabolizar o efeito de resíduos hormonais fruto  de um estresse emocional.

4.4 – As Couraças Visceral e Tissular

Boyesen descobre outro aspecto da Estase energética, o acúmulo de fluido em regiões do corpo, que associa a teoria de Circulação do Sangue.

“Durante as massagens, constatei que se produziam dois fenômenos simultaneamente: um estado emocional estava maduro ( isto é, pronto a descarregar), e o fluido aparecia em certa zona do corpo, em relação com o conteúdo da emoção.” (Boyesen,1986, p.55)

Para o Dr. Olesen o importante era a circulação dos fluidos do corpo, através da “massagem de bombeamento”:

“ele utilizava as mãos para ativar a bomba venosa e para ajudar o sangue a retornar ao coração, e a linfa a circular, e não ficar estagnada em certas partes do corpo…ele influenciava o sistema nervoso vegetativo e restabelecia o equilíbrio entre o sistema nervoso simpático e parassimpático” (Boyesen,1986, p.54).

A massagem Orgonômica (Rego e col., 2014b, p.147-150) embora receba esse nome inspirada na teoria de Reich, contempla o princípio descrito acima da massagem de “Bombeamento” do Dr. Olesen. Esta não deve ser ministrada em pessoas com dificuldades de suportar a liberação de carga, devido ao aumento de angústia e de conversões histéricas. Ainda, segundo Rego e col.:

“Através dessa massagem, estimulamos a circulação sanguínea e as correntes energéticas do organismo. Sua aplicação se dá através de amassaduras fortes sobre todo o corpo, com um movimento de bombeamento, como se estivéssemos puxando a energia do centro para a periferia, incentivando assim o fluxo energético”( 2014b,p.148)

Sua percepção e intervenção através da massagem  nessas bolsas de fluido, revela o funcionamento do que ela passou a chamar de couraça tissular.

Esse tipo de encouraçamento é fruto de resíduos metabólicos que não foram eliminados pelo organismo, consolidando um bloqueio na camada de tecidos conjuntivos. Gerda Boyesen correlaciona a dinâmica do acúmulo de energia na couraça tissular com um ciclo vasomotor incompleto.

Segundo  Mona Lisa e Gerda Boyesen,

“A hipótese formulada por Reich da existência de uma atividade celular pulsatória pode ser aplicada ao funcionamento da psicoperistalse, que é basicamente semelhante ao fenômeno orgonótico, subordinado à gratificação orgástica da carga plasmática. As ondas peristálticas lentas que ocorrem nos intestinos quando se está relaxado e à vontade apresentam um ritmo pulsatório, uma interação harmoniosa de tensão e carga, com assimilação de água seguida de sua dispersão. Esta atividade é sinônima aos processos decorrentes da energia libidinal, que é um critério de circulação e metabolismo naturais desta energia no organismo”.(site www.ibpb.com.br)

Na ausência dessa atividade de autorregulação espontânea de absorção e eliminação de água através dos intestinos, a retenção de líquidos provocaria algumas  alterações no corpo:  disfunções e congestão de órgãos; atrofia de tecidos, arteriosclerose,  acúmulo de gorduras, infiltrações nos tecidos conjuntivos sob a forma de edemas e celulite, que são formas do encouraçamento visceral e tissular.  A couraça tissular aparentemente invisível, fica evidenciada quando na intervenção corporal, seja através da massagem ou na  vegetoterapia, o  processo de desbloqueio se depara com uma barreira que impede a circulação energética e atrai fluidos. No lugar da expressão emocional, da livre circulação energética, quantidades de fluidos são acumuladas  denunciando a estase.

Capítulo 5 – OS EFEITOS DA INTERVENÇÃO CORPORAL

5.1 –  Manejo de Resistências.

Na Psicologia Biodinâmica, a resistência é descrita por Southwell (1986) como fruto de “uma luta entre força primária de expansão_ que leva a pessoa para a terapia_ e todos os medos contratores e autorrestritivos de mudar.” Ebbah Boyesen fala num “círculo vicioso de defender as próprias defesas” e acrescenta que, “a resistência protetora faz parte da manutenção da integridade de si mesmo (self).” (1983b)

As intervenções corporais, seja na forma de vegetoterapia, massagem biodinâmica ou associação livre de movimentos e ideias, visam a dissolução do encouraçamento corporal. No entanto, cada tipo  de couraça cumpre a função de equacionar níveis de tensão emocional decorrentes dos conflitos psicodinâmicos não suportados pelo ego, seja através do enrijecimento superficial na couraça muscular ou mais profundamente em uma disfunção crônica com acúmulo de fluídos nas vísceras e tecidos. A couraça corporal em si constitui uma forma de resistência que bloqueia o acesso a dinâmica do conflito.

Freud apontou a transferência como uma das principais formas de resistência à análise, ao mesmo   tempo  que consiste na via régia de acesso ao conteúdo recalcado, de seu manejo depende o sucesso de uma análise. Cláudio Mello Wagner sintetiza: a transferência “em seu aspecto representacional, é a  atualização de um complexo de relação. Em seu aspecto econômico, é a busca da descarga de energia ligada ao complexo.” (2003, p.144)

Ainda segundo Wagner,

“A partir do pensamento reichiano e de suas concepções energéticas, passamos  a apreciar as diferentes intensidades da transferência de diferentes pacientes. Podemos aprender, por exemplo, a distinguir o paciente psicótico do paciente neurótico (e o grau de comprometimento neurótico), a partir da intensidade da situação transferencial proposta.” ( 2003, p.150)

Sendo assim, os efeitos das intervenções corporais dependem do grau de resistência presente. Segundo Rego (2003), as resistências são  variáveis  de pessoa para pessoa e  num mesmo paciente também pode ocorrer  uma variação de acordo com o momento do tratamento, inclusive numa mesma sessão. Estamos diante de intervenções em processos biodinâmicos, que precisam ter seus efeitos  acompanhados em sua singularidade.

Na Psicologia Biodinâmica, a postura do analista biodinâmico está diretamente ligada à presença da resistência. Assim como em Reich, “no período de resistência, recai sobre o analista a difícil tarefa de dirigir o andamento da análise. O paciente só tem o comando nas fases livres  de resistência” (1989,p. 48); quando a resistência é baixa o analista deve adotar uma postura mais passiva tendo por base a confiança de uma autorregulação espontânea.

A “postura da parteira”, descrita por Gerda Boyesen, ou a “postura do alfaiate”, segundo Rego (2003) permite que o analista biodinâmico acompanhe, acolha o livre fluxo de energia e de associação ou a baixa resistência presente, não forçando uma mudança ou ruptura, apenas “fazendo amizade com a resistência”. Evitando o surgimento de uma couraça secundária.

Na Fundamentação dos Princípios Éticos da Psicologia Biodinâmica há uma proposição de como a resistência deve ser manejada no tratamento biodinâmico:

“Faça amizade com a resistência. Como um receptador, aceite e explore sua resistência; qualquer que seja sua manifestação em você, ela está ali por razões valiosas, pois foi criada inconscientemente, para protegê-lo contra a dor. Como alguém que ajuda, preste atenção à resistência no seu cliente, respeite suas manifestações contra a entrega. Saiba que se você tiver um procedimento gentil, a resistência poderá se dissolver sob suas mãos_ se você penetrar estupidamente, ela apenas aumentará.” (IFBP, 1983a)

Ricardo Rego em “Deixa Vir…” (2014), desenvolve um mapa do processo de resistências, propondo um manejo que leve em conta o grau de resistência  presente durante a sessão . Rego apresenta indicações técnicas para intervenção de acordo com o tipo de resistência presente.

“A ideia é que o analista como que dance junto com o paciente, deixando correr o barco quando a resistência é pouca, acompanhando o que vem espontaneamente e sem direcionar o rumo ou o tema. Porém, quando a resistência aumenta, ele pode fazer uma intervenção leve, como apontar um mecanismo de defesa, ou soltar (com massagens e exercícios) um bloqueio corporal, ou ainda interpretar verbalmente a resistência que surgiu. Muitas vezes isso é suficiente para voltar ao estado anterior de baixa resistência.”   (p.124, 2014)

5.2 – Abertura da Psicoperistalse.

Gerda Boyesen descobre o psicoperistaltismo intestinal, a partir da vivência clínica com seus pacientes e em seu tratamento pessoal de massagem com Aaddel Bülow-Hansen. Através da massagem sobre as membranas carregadas de fluido energético Gerda identificou gorgolejos peristálticos no abdômen, e priorizou trabalhar sobre as regiões do corpo que desencadeavam o peristaltismo intestinal, o psicoperistaltismo. Essa forma de intervir sobre as couraças visceral e tissular, foi identificada por Boyesen (1983a)  pelo  “conceito de esvaziamento do organismo”, onde através do toque se estimula a abertura da psicoperistalse intestinal. Boyesen descobre que o psicoperistaltismo tem a função de dissolver e eliminar a tensão nervosa, sendo considerado um mecanismo natural de  regulação do corpo.

A abertura da psicoperistalse passa a ser um dos objetivos no tratamento de massagem biodinâmica, podendo ser acompanhada através da escuta com estetoscópio pousado no ventre do paciente em torno do umbigo. A variedade  de ruídos durante a abertura da psicoperistalse vai desde rangidos, trovões, rugidos de leões, barulho do vento, barulhos mecânicos até suaves sons aquáticos, sons de riacho quando a abertura acontece.

Boyesen (1983a) cita a pesquisa do Dr. Setekleiv,  onde existiriam duas espécies de estímulos responsáveis pelas contrações intestinais: os sucos digestivos e a pressão de distensão (estimulação pela pressão da água nas paredes intestinais), sendo esta considerada por Boyesen a causa do movimento  de contração espontânea dos intestinos na abertura da psicoperistalse.

5.3 – Mudanças de Tonicidade Muscular

Lillemor Johnsen, terapeuta do Instituto Büllow-Hansen , que trabalhou em hospital psiquiátrico, foi quem apresentou a Gerda Boyesen (1986) a visão sobre a hipotonicidade. Suas conversas sobre seu trabalho junto a pacientes psicóticos, forneceu a Gerda Boyesen as condições necessárias, que a levaram a relativizar seu conceito de couraça associado a hipertonicidade.  A alteração de tônus muscular  passa a ser vista de uma forma mais complexa. Suas intervenções de massagem em pacientes hiporgonóticos, principalmente em borderlines e psicóticos, demonstraram que a falta de tônus encobria um tipo de encouraçamento, onde a retração energética ocorria em camadas mais profundas: o periósteo. Um quadro de desvitalização e flacidez muscular, com atitudes de resignação e desistência acompanha pacientes com esse tipo especial de encouraçamento. Podendo ainda ser visto num mesmo paciente regiões do corpo  hipertônicas e hipotônicas.

Boyesen se deparou com a dinâmica da estase de energia que produz a hipertonia muscular, nomeada por Reich de couraça muscular do caráter e a hipotonia muscular que aparentemente indicaria uma falta de tônus, um vazio energético no corpo.

Em “A vida é dura para quem é mole: considerações sobre aspectos psicológicos da hipotonia muscular”, Ricardo Rego (2008), propõe uma ferramenta diagnóstica nomeada de miotonograma. No miotonograma é possível registrar os diferentes aspectos do tônus muscular presentes no paciente em determinado momento do tratamento, como uma fotografia, mapeando regiões hipertônicas e hipotônicas no corpo. Dessa forma assegurando um registro singular do aspecto da tonicidade, e possível comparação futura dos efeitos da intervenção corporal.

5.4 – Momento Dinâmico.

Ebbah Boyesen,  esteve no Brasil em 2011 ministrando um Workshop para a comunidade biodinâmica brasileira, através do IBPB, onde apresentou uma releitura da teoria de Reich e de Gerda Boyesen, que chamou de “Psicoenergética”.  Sua releitura da fórmula do Orgasmo: tensão-carga-descarga-relaxamento é apresentada no diagrama abaixo:

 

Figura 4: diagrama do Momento Dinâmico apresentado por Ebbah Boyesen (Workshop, 2011)

Ebbah descreve o que chama de momento dinâmico, partindo de um estado inicial neutro ou com uma carga afetiva, a intervenção corporal propicia uma mobilização de afetos e energia; “a respiração fica mais intensa, o inconsciente e o subconsciente, está pronto para se expressar… é o momento de intervir terapeuticamente”.  O momento dinâmico está representado como um ápice do processo de intervenção, abrindo para as três possibilidades de encaminhamento apresentadas por Ebbah Boyesen:

“ O paciente chega em estado neutro ou com uma carga e o terapeuta precisa saber se a pessoa precisa de um intervenção para relaxar, regredir ou energizar.”

“No caminho para o relaxamento existe o momento dinâmico onde o paciente pode se encaminhar para a regressão ou para a vitalização. Se regredir é preciso acompanha-lo e investigar como é estar lá (regredido). Na energização a pessoa se sente vital,  não relaxada. A pessoa pode simplesmente ir para o relaxamento sem sentir energização ou regredir”.  (Workshop, Psicoenergética, 2011)

Na descrição de um caso de cisão esquizofrênica., Reich descreve efeitos de intervenções corporais que corroboram com a leitura de Ebbah Boyesen do momento dinâmico e seus caminhos. Segundo Reich, a paciente apresentava “contato com forças poderosas” vindas do além, com que mantinha uma relação de devoção e submissão. A medida que a respiração se aprofundava crescia uma resistência sob a forma de irritabilidade e pânico; “O medo das forças inundava-a de angústia: sentia-as cada vez mais próximas e colocando-se em volta dela, nas paredes, debaixo do sofá, etc” (Reich, 1989, p.365). Reich identificou a atitude projetiva de medo do fluxo de correntes plasmáticas que estavam sendo mobilizadas com o aprofundamento da respiração e desbloqueio da couraça cervical através de “trabalho diligente e cuidadoso”. Num momento final do tratamento, ocorreu a análise da dinâmica defensiva contra “as forças”. Reich descreve o efeito de um estado regressivo,

Lembrava-se agora de que, quando criança,sentia que compreendia o mundo muito melhor do que os outros, especialmente os adultos…Lentamente, desenvolvera a sensação de estar à parte dos seres humanos e começou a acreditar que tinha a sabedoria de milhares de anos…supôs que isso só seria possível se a deusa Ísis tivesse reencarnado em seu corpo…Começou a sentir o corpo muito concentrado nos órgãos genitais…Aos poucos aprendeu que a sensação corporal poderia ser enfraquecida ou afastada, se ela se mantivesse rígida…Percebera que tais excitações eram esmagadoras e estavam além de seu controle.”( Reich, 1989, p.442-443)

O resgate dessa memória permitiu a compreensão de que “as forças esmagadoras da primeira infância” e “as forças” que compareciam como fenômenos psicóticos eram a mesma coisa.

Capítulo 6 – A INTERVENÇÃO CORPORAL E  A  AUTOPERCEPÇÃO

6.1 – Dissolução de Couraças e Autopercepção.

A autopercepção passa a ser o foco desse capítulo, sendo por mim considerada um elemento importante no  trabalho  corporal,  que por se tratar de intervenções através da massagem, associação livre de movimentos e actings; nos faz refletir sobre o que o paciente acessa enquanto memória e que registros a psique realiza a partir das mesmas.

Federico Navarro (1996), terapeuta Reichiano italiano, neuropsiquiatra, assim como Gerda Boyesen teve Ola Raknes como seu mestre e foi a pedido deste que sistematizou e publicou técnicas de Vegetoterapia. Em seu livro  “Metodologia da Vegetoterapia Caractero-Analítica” , ele dá indicações sobre como proceder após uma intervenção corporal, no caso  de um acting, por exemplo:

“Pergunta-se que sensações o paciente experimentou e a que as associou e, logo depois, pergunta-se o que lhe passou pela mente durante o acting e o que isso recorda; depois, se for oportuno para a análise caracterial, será levado a observar como realizou o acting e a relação entre esta expressão e a caracterialidade”  ( Navarro, 1996, p.19)

A observação de como o paciente vivenciou a intervenção corporal, aponta para a importância da autopercepção; no entanto Navarro enfatiza que “um bom vegetoterapeuta precisa aprender três coisas: Esperar, esperar, esperar!”.  Segundo Navarro, “o indivíduo redescobre seu funcionamento biológico baseado em seus biorritmos e chega à autorregulação”. As funções autorreguladoras (alimentação, digestão e sexualidade)  demandam um ambiente de segurança, sem ameaças, que favoreça a introspecção, possibilitando o contato com as necessidades, desejos, sensações e sentimentos; ocorrendo uma ativação da psicoperistalse intestinal.  Gerda Boyesen observou os sons provenientes da psicoperistalse própria  quando relaxava a noite deitada em sua cama e de seus pacientes enquanto recebiam massagem. A psicoperistalse se tornou um parâmetro de desbloqueio emocional. Para Boyesen a dissolução da couraça visceral se dá pela digestão emocional do estresse e de alívio da pressão energética por meio da psicoperistalse. (Boyesen, 1986)

Na clínica Biodinâmica, além dos ruídos da psicoperistalse, o terapeuta deve checar outros sinais que somados permitem ampliar a leitura corporal e a compreensão dos efeitos das intervenções corporais no paciente: a expressão facial, o tônus muscular, a temperatura das extremidades, agitação ou quietude do paciente, a verbalização do paciente, bem como a sensibilidade e capacidade de ressonância do terapeuta. (Rego, 2014, p.269)

Por outro lado, a autopercepção do paciente permite que ele faça contato com as mudanças que acontecem em seu corpo e perceba a diferença de  sensação, temperatura, tônus muscular, emoção, associação de afetos e imagens durante a vivência de massagem ou acting. A ausência ou inibição da autopercepção,  nos remete ao fenômeno das couraças de caráter, que nos impedem de acessar as motivações de padrões de comportamentos que se tornaram automatizados em nosso corpo.

6.2 –  A Autopercepção e Consciência

Sobre a capacidade de autopercepção, Reich (1989, p. 390-391) ao relatar um caso sobre “A Cisão Esquizofrênica” diz que no “organismo saudável” existe uma unidade funcional entre psiquê e soma; no “neurótico encouraçado” as correntes plasmáticas estão impedidas ou diminuídas devido aos bloqueios, ficando “abaixo do limiar da autopercepção (torpor) e no esquizofrênico, “ as correntes plasmáticas continuam fortes e intactas, mas sua percepção subjetiva está enfraquecida e cindida”, como na figura 5.

Figura 5: diagrama do bloqueio de percepção da excitação (Reich, 1989, p. 391)

Na figura 6 Reich representa o “bloqueio de afetos do neurótico compulsivo, devido ao bloqueio da bioenergia por um encouraçamento total. A excitação não é percebida de modo algum: insensibilidade; a autopercepção é total, mas ‘sem vida’, ‘morta’ ou ‘vazia’”.

Figura 6: diagrama do Bloqueio de afetos do neurótico compulsivo (Reich, 1989, p. 392)

Reich desenvolve a questão da autopercepção e da consciência, segundo o ponto de vista da orgonomia. Ele evidencia como ponto de interseção que “a consciência é uma função da autopercepção em geral, e vice versa. Se a autopercepção é completa, a consciência também é clara e completa. Quando a função da autopercepção se deteriora, o mesmo acontece em geral com a da consciência e suas funções, como fala, a associação, a orientação, etc.” (1989, p. 393). Sendo assim, um neurótico com bloqueio afetivo pode ter sua autopercepção preservada, e sua consciência será um reflexo da rigidez de sua couraça de caráter; enquanto no esquizoide, que tem uma autopercepção fraca e distante de seu corpo, a consciência cria ideias delirantes, de “estar além” ou de “forças exteriores estranhas”. Entretanto, Reich reconhece que autopercepção e consciência não são idênticas, embora haja uma interdependência funcional entre ambas.

A consciência aparece como função mais elevada, desenvolvida no    organismo muito depois da autopercepção. Seu grau de clareza e unidade depende, a julgar por observações em processos esquizofrênicos, não tanto da força ou intensidade da autopercepção, mas da integração mais ou  menos completa dos inúmeros elementos de autopercepção numa só experiência do SELF.” (Reich,1989,p.394)

Gerda Boyesen destaca que na Terapia Biodinâmica “ podemos dissolver o conflito que existe no seio do sistema vegetativo, antes mesmo que ele chegue até a consciência” (1986 p.117). Nesse caso a intervenção corporal atuaria como na Orgonomia, na fase mais avançada da  teoria Reichiana, eliminando o conflito ao nível vegetativo; nas palavras de Boyesen:

“ conectamos o sistema vegetativo ao sistema motor, permitimos a expressão emocional e o movimento expressivo do corpo (…) A particularidade de nosso método psicoperistáltico é que nós  podemos precisamente desfazer, dissolver esta estase trabalhando sobre qualquer parte, nível ou camada do organismo: o ventre, o peito, a cabeça.” (1986, p.117)

O ponto de vista de Reich sobre a consciência ser secundária a autopercepção,  pode nos fazer pensar como o trabalho de desbloqueio das couraças, seja visceral, tissular ou muscular possibilita a descoberta de um corpo; que antes silenciado ou anestesiado passa a ser fonte de informações. Como no fragmento de atendimento que realizei de uma mulher, de 52 anos, que dizia  recorrentemente sentir medo. Seus ombros se elevam e o pescoço afunda; quando fala: “o medo aparece quando acordo, no meio do dia; um medo de não sei o que  … sensação de nó na garganta todo o tempo … Quando sinto medo quero ficar quietinha na cama, coberta, esperando o medo passar, mas tem o trabalho, os compromissos.”

Após intervenção de toque básico na cabeça, seguido de uma polarização apresentada por Alberto D’Enjoy em Workshop em 2013 descrita em  Rego e col.( 2014b, p.194-196); acompanho o aprofundamento de sua  respiração e abertura da psicoperistalse que vai de ruídos de caverna até um suave fluxo.  A paciente se sentiu mais tranquila, a sensação de nó na garganta suavizou. Durante o toque básico em sua cabeça sentiu seu corpo se expandir, se deu conta de que estava muito encolhida, se sente encolhida no medo.  O toque em sua cervical durante a polarização, fez com que sentisse que o tampo de sua cabeça se abrisse. Ela diz ter tido um “insight”: “no início da massagem, senti um calor passar por aqui (mostra com as mãos a região ocular) e  pensei que meu medo tivesse a ver com meus filhos já serem homens, e o tempo de vida que já passou e o que ainda tenho pela frente? Eu tenho medo da morte!” Ela partiu de uma autopercepção corporal para uma consciência de seu medo até poder nomeá-lo.

Capítulo 7 – Conclusão

Algumas projeções sobre o futuro parecem sombrias e confirmam a denúncia de Gerda Boyesen sobre a produção artificial da couraça, atualmente disseminada em nossa sociedade:

“Dei me conta de que somente a psicofarmacopéia conseguia parar estes fenômenos energéticos muito potentes, ao criar uma couraça tissular artificial que vinha se reunir à couraça tissular já existente.” (Boyesen,1986, p.63)

Bem como a afirmação de Reich em “Crianças do Futuro“:

“A supressão da natureza da criança não é feita meramente com o fim de adaptá-la a um Estado, igreja ou cultura; esta é uma função secundária. A função primária do encouraçamento sistemático de gerações recém-nascidas, serve para que o homem não entre em contato com o terror que o aflige, quando encara qualquer tipo de expressão vital.” (1983, p.21)

Encontramos na literatura e no cinema,  projetos de sociedade onde prevalece a “regulação compulsória”, termo usado por Reich que se opõe a capacidade de uma autorregulação; aquela age de modo a desrespeitar os ritmos internos e a expressão emocional humana. Na radicalidade da ficção literária  e científica está cheia de exemplos que buscam o controle, e até mesmo a extinção dos afetos humanos. Como na sinopse do filme “Doador de Memórias” (“The Giver”),  baseado no livro de mesmo nome (1993) de Lois Lowry.  Lançado no Brasil em 2014, ficção científica e drama, dirigido por Phillip Noyce.

“Na história, Jonas (Brenton Thwaites) vive em uma sociedade distópica onde os indivíduos não têm emoções, respondendo roboticamente aos comandos de um poderoso governo. As pessoas atuam na profissão escolhida pelos anciões, não fazem sexo (os bebês são criados artificialmente) e moram num mundo literalmente em preto e branco. Acima de tudo, os habitantes não têm memórias, de modo que apenas uma pessoa na comunidade é encarregada de guardar todas as lembranças do passado.” (http://www.adorocinema.com/ filmes/ filme-195540/criticas-adorocinema/)

Ou no mais recente “Quando te conheci”, nas palavras de Nefferson Taveira:
 “Nesta sociedade futurística, as emoções são bloqueadas desde o nascimento; sentimentos são considerados ameaças ao sistema, apontadas como o catalisador da Grande Guerra. O sistema, no entanto, não é infalível, considerando o crescente número de pessoas recuperando suas emoções – que, por sua vez, são tratados como doentes. Apesar de não haver uma cura, eles tomam remédios bloqueadores que retardam os estágios de sua condição .(…) Este filme foi cansativamente comparado a outras produções, como ‘THX-1130‘, ‘Equilibrium‘, ‘A Ilha‘, e, até mesmo, erroneamente apontado por diversos sites especializados como um remake do filme ‘1984‘.” http://cinepop.com.br/critica-quando-te-conheci-122538

Tais cenários apontam para um tipo de encouraçamento em massa através de ingestão de substâncias  supressoras de emoções, produzindo uma uniformidade de comportamento e controle social. No entanto, diante da complexidade do ser humano, ou da força dos afetos, nesses projetos de ficção científica  acontece uma falha. Algo escapa e permiti o ser  humano escapar;  o protagonista se descobre apaixonado e questiona o sistema, buscando formas de viver a integridade de seus afetos.

Para além da ficção, já vivemos numa sociedade mergulhada em fármacos, drogas  e conectividade virtual, onde os vínculos estão em processo de transição, muito embora, às vezes pareça ser um processo de pulverização.  Pode parecer que estamos dominados pela peste emocional, que o encouraçamento, a filosofia de vida do “Zé Ninguém”, venceu as “Crianças do Futuro” . Mas Wilhelm Reich e Gerda Boyesen sempre apostaram na força da vida,  e precisamos reconhecer que atravessamos uma crise convulsiva nos vínculos afetivos, na economia financeira, na sociedade de um modo geral. Uma onda de conservadorismo vem crescendo e ameaçando se tornar um tsunami. Aparentemente, as pessoas usufruem de maior liberdade pessoal, uma liberação da sexualidade vigora, como um mandato superegóico; mas na subjetividade, na vivência corporal de seus afetos; confundem euforia com alegria, tristeza com depressão,  demanda com desejo, e ainda buscam a clínica como um antídoto.

A couraça ganhou novas roupagens e  produziu novos contornos ao corpo, exige mais sutileza do terapeuta corporal, já não encontramos com facilidade o encouraçado hipertônico que Reich nos apresentou; não podemos nos confundir com a couraça produzida  pela hipertrofia muscular da malhação.  A proposta da Psicologia Biodinâmica traz recursos para atualizarmos a clínica de base corporal, que precisa estar aberta a percepção das novas configurações sintomáticas. Gerda Boyesen com sua irreverência feminina, pode experimentar e propor diversas abordagens da clínica , sem perder o fio condutor do fluxo de energia que faz a vida pulsar…a pulsão…o que acontece entre psiquê e soma.

Penso que para ser terapeuta,  parece  ter de desenvolver a habilidade  de  nadar contra a maré. Estranho…  ir  no contrafluxo de uma correnteza; mas  a força vital quando mobilizada parece ser capaz de ultrapassar muitos obstáculos e a clínica é um exercício  constante de desencouraçamento, na busca de uma autorregulação  que potencializa e  vitaliza o ser!

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