Psicologia Biodinâmica e saúde pública: uma possibilidade de transformação social Auryana Maria Archanjo
Este artigo é produto de uma comunicação oral do encontro anual chamado 3 Bios (Biossíntese, Bioenergética e Biodinâmica) que ocorre em Campos do Jordão-SP. O objetivo é compartilhar a experiência que tem sido introduzir a Psicologia Biodinâmica no âmbito institucional e da saúde pública em uma Unidade de Saúde da Família em São Paulo-SP.
Para isto, será feita uma breve introdução do que é o trabalho numa Unidade Básica à Saúde (UBS) caracterizada pela Estratégia Saúde da Família e no campo da atenção primária à saúde. Em seguida, serão citados dois breves relatos de casos e feito reflexões sobre a psicologia biodinâmica neste contexto e sobre o compromisso do psicólogo/terapeuta com a sociedade.
- 1. O contexto de trabalho
A UBS se encontra no nível básico/primário, correspondendo à porta de entrada de um sistema de saúde cujos serviços são hierarquizados por níveis de complexidade tecnológica: primário, secundário e terciário. Estrategicamente, é um serviço que fica próximo à moradia das pessoas para facilitar o acesso à assistência e permitir o primeiro contato do paciente ao serviço com o sistema hierarquizado. Teoricamente, é a partir da UBS que casos mais complexos e que exigissem recursos tecnológicos mais específicos seriam encaminhados para outros níveis de assistência à saúde, sendo necessária uma rede integrada de referência e contrareferência. Porém, alguns autores (Teixeira, 2005; Merhy, 2002; Schraiber, 2000; Mendes-Gonçalves, 1992) questionam a Unidade Básica como sendo ‘básica’, porque consideram que ela tem baixa complexidade de tecnologia material, mas alta complexidade de tecnologia imaterial, que corresponde ao nível relacional de lida com a complexidade das relações humanas e da compreensão dos modos de viver das pessoas no mundo. O Programa Saúde da Família, hoje Estratégia Saúde da Família, surgiu em 1996 em âmbito nacional para potencializar as ações na UBS com equipes formadas por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, estes sendo moradores locais. Enfatiza a necessidade de considerar os determinantes sociais da saúde no processo saúde-doença, tais como alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer, acesso aos bens e serviços essenciais, dentre outros (Brasil, 1990).
- 2. A demanda a ser acolhida e sua implicação no trabalho do psicólogo/terapeuta
O que implica no trabalho do psicólogo/terapeuta neste contexto? Pensando que todos no Brasil têm direito ao acesso gratuito à saúde, este profissional que atua numa UBS deixa de ser especialista, passa a ser generalista e a atender uma demanda diversa, incluindo todas as faixas etárias com problemáticas que vão de questões de saúde física (diabetes, hipertensão, etc.), passando por questões da vida (luto, perdas, adolescência, casamento, primeiro filho, envelhecimento etc.) até demandas sociais geradores de sofrimento/adoecimento mental significativo (desemprego, subemprego, violação de direitos básicos, violências diversas, conflitos conjugais e familiares etc.). Trabalhar numa UBS implica pensar numa distinção pertinente feita por Winnicott (1997) entre atendimento de caso e psicoterapia. O primeiro é um “processo de solução de problemas” (p. 177), constituindo-se numa atitude social; ele ocorre, principalmente, quando o ambiente se desintegra e é necessário intervir com algum tipo de processo integrativo. Por isso, neste tipo de atendimento, é a clínica que deve manter a continuidade de relação com o caso e não o psicoterapeuta, uma vez que, geralmente, envolve uma instituição que dá retaguarda profissional. Este autor diz que a psicoterapia deveria ocorrer em outro local, contudo, a experiência em UBS indica que há demanda para ambas as formas de atuação e a possibilidade de realizá-las neste local, quando integrada a outros dispositivos de apoio no cuidado e quando o conceito de saúde mental é ampliado para outros recursos que não somente a psicoterapia (clínica ampliada; projeto terapêutico singular; intersetorialidade, corresponsabilização dos atores envolvidos no cuidado).
- 3. Queixas principais e critérios para o uso da massagem biodinâmica
Foi fazendo esta análise de demandas, que a massagem biodinâmica começou a ser introduzida, principalmente, como técnica dentro do processo psicoterápico de alguns pacientes. Para alguns, as principais queixas se caracterizavam por dores no corpo inespecíficas, insônia, dores de cabeça constantes sem causa orgânica, dores de estômago, problemas intestinais; para outros, havia uma tristeza inexplicável, dificuldade extrema de se expressar pelo verbal, desconexão com o próprio corpo evidenciado num autocuidado precário, questões relacionadas à sexualidade. Muitos estavam medicados, mas os profissionais que encaminhavam, em sua maioria médicos de família e comunidade, reconheciam o remédio como um recurso meio e não fim e que se outras questões não fossem trabalhadas, estes seriam pacientes constantemente solicitantes de medicamentos, de exames e consultas, muitas vezes, desnecessários. Para a maioria destes pacientes, a experiência de massagem nunca havia sido vivenciada, mas foi aceita com receptividade, com exceção das pessoas com muita dificuldade de serem tocadas, como são os casos em que há histórico de violência física e sexual. Nestes casos, ao invés de assumir a massagem como técnica, tem sido utilizado um misto entre postura biodinâmica e ‘holding winnicottiano’ para trabalhar, inicialmente, a confiança básica.
- 4. Relato de Casos[i]
Relato 1 Trata-se de uma mulher na faixa da meia idade, solteira, sem filhos, escolaridade superior e emprego formal, que chegou para atendimento psicológico encaminhada por um colega médico. O motivo do encaminhamento se deu pela hipótese de que ela tivesse alguma questão relacionada à sua sexualidade que vinha dificultando seu autocuidado e o controle da diabetes. No primeiro contato foi observada uma mulher de porte rígido, e o corpo na forma de um retângulo. A sensação era que havia uma placa no peito até os ombros e uma inexpressividade facial com uma leve tristeza de fundo; unido a isto, certa timidez no olhar, o qual se dispersava ao olhar do terapeuta. Com histórico de depressão, havia queixas de dores no peito, adormecimento das mãos, dificuldade de dormir, ansiedade relacionada ao trabalho e tristeza eventual, sendo acompanhada anteriormente com psiquiatra em uso medicamentoso e com psicólogo. Sua autoimagem era de uma pessoa perfeccionista e que se cobrava muito. Sentia que familiares a viam como “a certinha”. Relatava ter tido pais muito “exigentes” (sic) com organização, responsabilidade, compromisso e com o que é certo e errado. Foram realizados 37 atendimentos com intervenção verbal, uso de postura e massagem biodinâmica, e ações de autoconhecimento corporal extrapolaram os limites da sala de atendimento, flexibilizando o setting terapêutico e envolvendo outras formas de percepção e consciência corporal sem toque do terapeuta (uso de cremes, óleos, percepção corporal no banho). As massagens, nunca antes recebidas pela paciente, seguiram uma sequência que se pode descrever como revelação, quando a paciente sentiu a massagem como algo prazeroso, principalmente, através de uma nova percepção de ser cuidada; em seguida, houve resistência com faltas e confusão de horário nunca antes ocorrido, finalizando com uma massagem em que a entrega foi parcial, numa luta interna de forças entre revelar-se e resistir-se. Aos poucos, a paciente começou a perceber a dificuldade de contato com o que havia de genuíno e verdadeiro em si. Associou a dificuldade de falar de si a um período da vida[ii]em que precisou lidar com tabus de dizeres e fazeres e que precisou “aniquilar” (sic) vontades, sentimentos e emoções. Sintomas obsessivos- compulsivos foram sendo revelados como defesa para proteger a personalidade primária. Como resultado deste processo, seu estado de satisfação e relaxamento se tornou corporalmente visível. Relatava se sentir mais tranquila, livre e feliz. A resistência passou a ser cada vez mais permeável e ela se permitiu falar sobre sua atração por outras mulheres. Teve sua primeira experiência de masturbação e relação sexual; começou a olhar mais para seus projetos de vida; melhorou o autocuidado, voltou a caminhar todos os dias com emagrecimento evidente; controlou a diabetes e melhorou os sintomas obsessivos- compulsivos. Tivemos mais quatro encontros antes da devolutiva, em que conversamos sobre preconceitos, mudanças nas relações familiares e sobre sua nova namorada. Aqui, a paciente já conseguia falar que era homossexual e começou a questionar seus preceitos religiosos e o quanto tinha preconceito de si própria. Terminamos os encontros com uma paciente mais fortalecida em seus vínculos de amizade, mais próxima de sua espontaneidade e sentindo ter ocorrido uma mudança significativa em si própria. Relato 2 O segundo caso se refere ao de uma mulher casada e mãe de dois filhos. O marido havia saído de casa recentemente sem explicação. Foram realizados 15 atendimentos de psicologia também com intervenções verbal, de massagem biodinâmica e o trabalho de autoconsciência corporal sem toque. Sua queixa inicial era não sentir vontade de ter relação sexual com o esposo. Já havia tido outro relacionamento anterior em que não sentia prazer na penetração, mas se excitava nas preliminares com o uso de lubrificante. Relatou uma infância marcada por violência doméstica, em que o pai era violento e cobrava dos filhos uma postura que não o comprometesse. Sentia que o pai dava valor aos filhos homens e fomos descobrindo que a paciente assumia sua casa como “um homem”, provedora do lar, somente sendo valorizada dentro deste imaginário. O espaço para ser mulher começava a ser construído na terapia. Inicialmente, era difícil falar sobre sua sexualidade. Nunca havia se tocado, nem se masturbado; não conhecia seu corpo e partes ‘íntimas’; não sabia direito sobre os orifícios da região urogenital e nem sobre o clitóris. Começamos o segundo atendimento com o material de planejamento familiar existente na UBS. Estudamos em conjunto a região urogenital feminina e masculina. Foi sugerido que olhasse mais para seu corpo em casa durante o banho, em frente ao espelho; se possível, que se tocasse. No terceiro atendimento já veio com o ar de um novo mundo que começava a descobrir; conseguiu se tocar de um jeito que nunca havia conseguido com o marido. Ao mesmo tempo, este mundo desconhecido revelou a lembrança de um abuso sexual com cinco anos por um vizinho. Não se recordava mais deste fato. Chorou. A partir deste atendimento, começou a tomar consciência da importância de descobrir o que desejava para si através de seu autoconhecimento como mulher. Faltou na sessão seguinte. Durante as massagens havia dificuldade de relaxar e pouca psicoperistalse; percebia sua dificuldade de entrega e de querer ter controle durante a movimentação passiva, por exemplo. Relatou que o processo de massagem a ajudava a dormir melhor, a quebrar tabus quanto à sexualidade e a mudar a forma de lidar com o seu corpo. Em um dos últimos atendimentos, disse ter conseguido tirar a aliança do dedo e, apesar do estranhamento, sentiu-se melhor consigo e com a vida. Conseguiu ter um orgasmo sem se sentir culpada e não sabia que uma mulher podia ter este tipo de sensação.
- 5. Reflexões finais
Trabalhando com saúde pública, estudando Reich e analisando estes casos pela biodinâmica, é difícil não pensar em uma estrutura social geradora de sofrimento e desprazer (Albertini & Freitas, 2009) e em nossa implicação enquanto profissionais de saúde. Em 1922, ao ingressar na Policlínica Psicanalítica de Viena, Reich já falava da relação entre determinantes sociais e problemas psicológicos, algo que para a saúde como um todo no Brasil, começou a tomar força somente na década de 1970 com o movimento da Reforma Sanitária. Reich olhava para a constituição do caráter do indivíduo, mas também para como a sociedade contribuía para a constituição deste caráter. Neste sentido, o terapeuta precisa assumir uma atitude política e ética que integra graus de sofrimento, angústia, prazer/desprazer a contextos de vida. Questões como estas e que envolve violência/abuso sexual, por exemplo, são constantes no cotidiano da prática no âmbito da saúde pública. O papel do terapeuta não pode ser somente o de cuidar para que a pessoa restabelece seu bem-estar ou saúde emocional, mas também é sua responsabilidade ajudar a pessoa no acesso aos seus direitos de justiça e proteção para que se possa falar em promoção de mudanças em sua condição de vida. Como terapeutas corporais que somos, temos a responsabilidade de questionarmos para qual rumo seguem nossas ações. Temos o compromisso de, a cada toque que fazemos no paciente, pensarmos qual a intenção desse toque e o que queremos produzir, a fim de não mantermos um estado de culpabilização do sofrimento no indivíduo. Muitas vezes, é importante resgatar uma dignidade humana perdida, que nem sempre está somente na dinâmica familiar ou nas relações parentais, mas também em determinantes sociais, que inclui a violação de direitos básicos. Acredito, que a Biodinâmica possa se constituir num instrumento potencializador na constituição de corpos que conseguem lutar por seus direitos, de corpos sócio-históricos, que fazem da possibilidade de serem e de se expressarem em sua espontaneidade a possibilidade de mudar suas próprias vidas e de romper com ciclos de violências intergeracionais e sociais, por exemplo. Talvez, eu tenha um discurso bastante idealista em relação ao meu papel profissional, no entanto, é desta forma que venho conduzindo minha prática, ajudando pessoas, primeiro a perceberem que têm um corpo e, segundo, a perceberem e sentirem que este corpo não é somente físico, mas também um corpo de afetos, sentimentos, emoções; também é um corpo social, político, cultural, sexual, que deve ser respeitado e cuidado com menos pudor e mais espontaneidade. Além disso, poder fazer este tipo de trabalho no âmbito público é o meu compromisso social de dar a possibilidade que pessoas tenham acesso a um tipo de cuidado que não poderiam ter ou teriam dificuldade de acessar por outra via. Freire (1983, p. 16) ao discorrer sobre o compromisso do profissional com a sociedade, diz que a primeira condição para assumir um ato comprometido é ser capaz de refletir e agir e, “estando no mundo, saber-se nele”. Não há possibilidade de compromisso autêntico se a realidade for tida como dada e imutável. Portanto, o profissional deve sair de seu gueto, onde técnicos e especialistas se julgam possuidores de verdades que devem ser transmitidas aos ignorantes. É necessário superar os especialismos e sempre aperfeiçoar seu modo de estar sendo no mundo, adquirindo uma visão crítica da realidade.
- 6. Bibliografia
ALBERTINI, Paulo; BEDANI, Ailton. Reich e a Psicanálise: o desencontro. In ALBERTINI, Paulo; FREITAS, L.V (org.). Jung e Reich: Articulando Conceitos e Práticas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009. (Albertini & Freitas, 2009) BRASIL. Leis etc. Lei Federal n.8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília (DF). 1990 [citado 22 set 2009]. Disponível em: http://www.legislacao.planalto.gov.br. FREIRE, Paulo. O compromisso do Profissional com a Sociedade. In: Freire P. Educação e Mudança. 9a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983. p. 15-25. MENDES-GONÇALVES, R.B. Práticas de Saúde: processos de trabalho e necessidades. Cadernos CEFOR. Textos, 1. São Paulo: CEFOR; 1992. MERHY, E.E. Saúde, a cartografia do trabalho vivo. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2002. SCHRAIBER, L. B.; NEMES, M.I.B.; MENDES-GONÇALVES, R.B. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. 2a ed. São Paulo: HUCITEC; 2000. TEIXEIRA, R.T. Humanização e Atenção Primária à Saúde. Ciência e Saúde Coletiva. 2005;10(3): 585-97. WINNICOTT, D. W. A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
3 Bios: Sexualidade, Prazer e Angústia
Campos do Jordão-SP
Dezembro/2013