O descongelamento da capacidade de amar, através do processo de psicoterapia biodinâmica

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INTRODUÇÂO

O objetivo deste trabalho é demonstrar através do estudo de um caso onde envolve o luto infantil de figuras parentais e depressão, a importância do processo de Psicoterapia Biodinâmica como recurso para o descongelamento da capacidade de amar. Processo pelo qual através da relação transferencial negativa e positiva, fazendo amizade com a resistência pode-se oferecer a paciente a vivencia da “rematernagem suficientemente boa” propiciando a construção do concernimento, tarefa essa que possibilita a integração da destruição e da reparação. Segundo Winnicott não há amor verdadeiro sem a destrutividade. Essa destrutividade é vivenciada no consultório através da transferência negativa, onde o psicoterapeuta precisa ser continente das expressões de seu paciente. Para os psicoterapeutas trabalhar com transferência negativa ainda é ameaçador e requer trabalho pessoal. A ausência deste trabalho transferencial dificulta a possibilidade de um vinculo curador. Segundo Reich “o fracasso em reconhecer a transferência negativa parece ser um caso geral. Sem dúvida isso deriva do nosso narcisismo, que nos torna receptivos aos elogios, mas cegos a todas as tendências negativas do paciente, a não ser que elas sejam expressas cruamente” (5. p.36). Desta maneira o estudo deste caso é um convite para refletirmos sobre como estamos atuando diante das adversas formas que nossos pacientes expressam suas dores e congelam sua capacidade de amar.  

Luto Infantil

O homem vive várias situações desconhecidas de stress e conflitos que, costumam apresentar medo e a morte apesar de sabidamente inevitável é um evento que desperta muita angústia. “O significado da morte é pessoal e internalizado, evocando as vulnerabilidades pessoais a ela associadas” (6.p.1). Em nossa sociedade não são poucas as tentativas de afastá-la e esquecê-la. A falta de manejo dos sentimentos intensos e multifacetados que acompanham a morte afeta as emoções, os corpos e as vidas das pessoas envolvidas, por um longo período de tempo. A perda de uma das figuras parentais é uma situação de extrema dor e stress para uma criança, principalmente se não for assistida de forma adequada a sua idade e necessidades. O conceito de morte para a criança vai sendo construído de acordo com seu desenvolvimento cognitivo e emocional.

Muitos adultos acreditam que a criança não entende nada sobre a morte e deve ser poupada de saber que alguém próxima a ela morreu. Entretanto, é provável que esta mesma criança já tenha perdido algum bicho de estimação ou assista alguma cena de morte em desenhos ou noticiários. Quando a criança perde uma pessoa querida de sua família como pai, mãe, irmão ou irmã, avós, ela fica triste, confusa. Ocorre que esta mesma morte é sofrida por seus familiares, que doloridos, estão sem condições de manter a intensidade de cuidado e atenção que antes dirigiam a ela. O importante é que, passado este momento de crise, ela volte a sentir-se segura e bem cuidada. Segundo Nunes (1998, p.15) nas semanas seguintes à perda, as crianças podem apresentar tristeza profunda ou acreditem que o familiar que morreu permanece vivo. Se, no entanto, evitar mostrar tristeza ou persistir em longo prazo negando a morte de seu familiar querido poderá vir a ter sérios problemas no futuro. A raiva após a morte de alguém essencial para a segurança da criança é uma reação esperada que pode se manifestar por meio de comportamento irritadiço, pesadelos, medos ou agressão dirigida aos familiares sobreviventes. De qualquer maneira, sabemos que a reação da criança ao luto está bastante relacionada à forma como os pais ou pai sobrevivente e outros parentes abordarão esta questão com ela nas semanas e meses que sucederão a perda. (NUNES, 1998, p. 25). Nunes (1998) acrescenta que quando o adulto oculta dela a verdade sobre a morte, pode deixá-la confusa e desamparada, pois possivelmente ela perceberá que algo aconteceu e que todos estão agindo de forma diferente.Crianças pré-escolares acreditam que a morte seja temporária e reversível, tal como acontece em muitos desenhos animados nos quais os personagens morrem e voltam a viver. (PAPALIA; OLDS, 2000, p.365).Segundo Papalia; Olds (2000) entre cinco e nove anos a morte é percebida como irreversível, mas não como algo natural e universal. Nesta idade, as crianças não conseguem imaginar que elas ou alguma pessoa conhecida possa morrer. A morte é vista como algo distante, que só ocorre com os outros, a menos que haja uma perda de alguém muito próximo. Somente entre nove e dez anos a morte passa a ser percebida como uma interrupção das atividades dentro do corpo, que faz parte da vida, que é natural.Segundo Bromberg (2000) o significado dado à morte pela criança varia de acordo com alguns fatores, entre os quais o primeiro a ser considerado é a idade, ou melhor, o momento de seu desenvolvimento psicológico. Os outros fatores são a forma com que os adultos lidam com a perda e o binômio quantidade/qualidade de relação tida pela criança com a pessoa falecida. Assim que a criança tem idade suficiente para estar vinculada, pode ter consciência da possibilidade de perder essa pessoa. A autora enfatiza que o medo da morte é originado no medo de perder a pessoa amada, de romper vínculos.Segundo Aberasturi (1978) citado por Bromberg (2000, p.73) a criança tem consciência da morte desde o início da infância, mas pode não ser identificada pelos adultos porque é sempre expressa com os recursos da criança. Nem sempre ela fala sobre morte, mas pode representá-la lúdica ou graficamente, ou até mesmo na forma de um sintoma. A criança pode até captar, por meio do inconsciente, mortes ocorridas em outras gerações e que venham a constituir um segredo familiar do qual ela também faz parte.Cabe ao adulto tentar reconhecer a inabilidade que a criança tem em falar sobre esse assunto ou entender esse processo, para que se dê a compreensão da criança sobre a morte. Para que a criança compreenda a morte, com os recursos que sua idade permite, ela não deve ser excluída da experiência da perda. Isso faz com que ela perceba a realidade. Naturalmente, essa realidade será a que a criança puder fazer encontrando comportamentos e ações que dêem um significado à perda.Bowlby (1981) citado por Bromberg (2000, p. 73) coloca que a morte existe para a criança sob muitas formas, como um animalzinho, que morto, mostra-se contrário a tudo o que a criança sabe sobre ele. Uma conseqüência natural a isto é a curiosidade da criança sobre o que acontece nesse estado e uma aceitação das emoções daí emergentes: sentir-se triste, desejar a permanência do morto, desejar fazê-lo reviver.Com o propósito de definir essas diferentes formas de interação, Piaget (1964) citado por Bromberg (2000, p.80) divide o desenvolvimento intelectual da criança em quatro grandes estágios seqüenciais: a) sensório-motor (0 – 2 anos) no qual ainda não há um conceito formado sobre morte; b) pré-operacional (2 – 7 anos), em que a morte é reversível; c) operacional concreto (7 – 11 anos), em que a morte é irreversível, com explicações fisiológicas e d) operacional formal (a partir dos 11 – 12 anos) quando a morte é irreversível, universal, pessoal, mas distante; as explicações são de ordem natural, fisiológica e teológica. As idades cronológicas, durante as quais se espera que as crianças desenvolvam comportamentos representativos de um dado estágio, não são fixas. Elas podem variar de acordo com a experiência individual e o potencial hereditário. Wass (1989) citado por Bromberg (2000, p. 86) acrescenta que também identifica a relação dos componentes de irreversibilidade, não-funcionalidade e universalidade com o conceito de morte. Ela constata a existência de três etapas: na primeira (até 5 anos) não há noção de morte definitiva, sendo esta compreendida como separação ou sonho e como um evento gradual e temporário. Na segunda etapa (5 a 9 anos), há uma forte tendência a personificar a morte, que é percebida como “alguém” que vem para levar as pessoas. É compreendida como irreversível, porém evitável, e também, como algo que acontece a todos e, sobretudo a ela mesma. Somente na terceira etapa (9 a 10 anos), a criança reconhece a morte como cessação das atividades do corpo e como inevitável. Segundo Bromberg (2000, p. 60) o luto infantil é freqüentemente considerado um fator de vulnerabilidade a muitos distúrbios psicológicos na vida adulta. Esses distúrbios vão desde a excessiva utilização de serviços de saúde, por tê-la com freqüência debilitada, até aumento no risco de distúrbios psiquiátricos. Bowlby (1981) citado por Bromberg (2000) acrescenta que a curto prazo, ainda na infância, há visíveis conseqüências da perda com má resolução. Alguns dos traços da má elaboração são muito semelhantes aos encontrados em casos de luto de adultos, ou então, de ausência de luto, como ansiedade persistente, medo de outras perdas (principalmente de um dos pais), medo de morrer também, esperança de se reunir ao morto, desejo de morrer, culpa persistente, hiperatividade, cuidados compulsivos, euforia e despersonalização. “A intensidade com que esses traços vão tomar forma está estreitamente vinculada às condições do ambiente, quanto a serem favoráveis ou não a um curso saudável do luto. É importante assinalar que, as condições do funcionamento familiar contribuem para a qualidade da elaboração do luto”. (BOWLBY, 1981 citado por BROMBERG, 2000).Bromberg (2000) acrescenta que para o psiquismo infantil a relação com a pessoa morta dá o tom quanto a uma evolução adequada ou não para a experiência da perda e a resolução do luto (idem,p.2-3).

Diante dessas citações acrescento que diante da dor da perda, a criança com um ego ainda fragilizado, um cognitivo em construção e sem o ambiente favorável, pode utilizar-se da defesa de congelar sua capacidade de amar para proteger-se de outra possível dor.

Winnicott: “a mãe suficientemente boa” e a fase do concernimento

Segundo Winnicott, o ser humano nasce com o potencial criativo e com a tendência ao amadurecimento, aonde de acordo com cada fase de desenvolvimento vai construindo seu psiquismo, formando seu “EU”. O homem vai adquirir sua humanização através do contato mãe- bebe, é a mãe (função materna) ”suficientemente boa” que humaniza a criança e auxilia no desenvolvimento de sua capacidade de amar. Na teoria do amadurecimento, cada fase auxilia a criança a viver experiências consigo, com o outro e com o mundo, fases essas que correspondem: 1- dependência absoluta; 2- dependência relativa; 3- rumo à independência; 4- independência relativa; 5- estágio edípico; 6- estágio de latência; 7- adolescência; 8- início da idade adulta; 9- adultez; 10- a velhice e a morte. É importante ressaltar que para Winnicott o fato da criança ter passado por uma fase bem sucedida, não garante sua saúde emocional, se na próxima fase não for bem assistida em suas necessidades. Quanto mais cedo ocorre uma situação traumática, mais vulnerável será o psiquismo da criança e suas estruturas poderão ser abaladas de forma profunda e até irreversíveis como no caso da psicose. Lembrando que a repetição das falhas é que consolida o trauma. No caso que irei apresentar poderemos analisar a importância da primeira infância ter a função da “mãe suficientemente boa” para estruturar o psiquismo de forma saudável, sendo capaz de diante de situações estressantes, buscar a autorregulação necessária ao equilíbrio humano. Nesse caso a paciente perdeu a mãe durante a primeira infância e não houve uma função substituta adequada. A ênfase está em cima do luto infantil onde o concernimento empenha um papel fundamental. Segundo Winnicott a fase rumo à independência relativa, aproximadamente entre 2 a 3anos, a criança passa pelo estágio do concernimento, buscando realizar a tarefa de integração da vida instintual. “Quando esta integração for realizada de maneira mais consistente, a criança se tornará uma pessoa inteira (Whole person), capaz de relacionar-se com pessoas inteiras” (3.p.258-259). A partir daí começa a surgir um sentimento de culpa e de responsabilidade com relação à destrutividade, a criança começa a ter consciência que existe o outro e que pode machucar ou causar dor.

A tendência da criança que começa a deparar-se com o fato de que sua agressividade faz parte de sua natureza é projetar essa agressividade para fora, para o mundo, ficando este povoado de ameaças; um sentimento de medo, vago, mágico e espalhado por toda a parte se estabelecerá. É a disponibilidade receptiva e protetora da mãe que neutraliza o caráter retaliatório e mágico desses medos (idem. p.260).

É a presença continua da mãe, a sua sobrevivência diante de um ataque de agressividade da criança que oferece a aceitação de que a destrutividade é pessoal e convive com o amor, que existe a possibilidade de ocorrer reparações, de viver o “ciclo benigno”, machucar e reparar.

Sem a destrutividade, diz Winnicott, não há amor verdadeiro. Por um longo período de tempo, (…) a criança pequena precisa de alguém que seja não apenas amado, mas que se disponha a aceitar a potência (não importa se se trata de um menino ou menina) em termos de restituição e reparação. Dito de outro modo, a criança pequena precisa ter chances de contribuir, em função da culpa derivada das experiências instituais, porque deste modo que se acresce (…). Na teoria Winnicottiana, é assim que se constitui o fundamento de uma moralidade pessoal, que não é imposta de fora nem ensinada, que não é simplesmente intelectual e aprendida, mas que emerge naturalmente a partir da experiência da “bondade originária”, ou seja, da confiabilidade ambiental. É essa experiência que, dando sustentação ao crescimento pessoal, leva à consciência da existência do outro e á capacidade para a identificação cruzada, que é um pôr-se no lugar do outro. Conviver com a construção e destruição inerentes a natureza humana é, também, o fundamento para a capacidade de brincar e, mais tarde, de trabalhar e encontrar satisfação e realização no trabalho. É igualmente em relação a essa conquista que, quando há fracassos, surgem os distúrbios que podem ser reunidos pelo nome de depressão, de certo tipo de paranóia e, às vezes, de tendência anti-social (ibidem, p. 264-265).

Nessa fase, o pai entra em cena como o terceiro na relação, formando assim o triangulo familiar. Segundo Dias citando Winnicott:

A criança começa a perceber, ou a imaginar, a relação excitante que existe entre os pais, desejando no primeiro momento ocupar o lugar de um deles e num certo momento a criança ocupa o lugar da excluída, onde Winnicott denomina ‘cena primária’.Se a criança está sadia, ela é capaz de lidar com a raiva que provém desta nova consciência, e a aproveitá-la para a masturbação, assumindo a responsabilidades pelas fantasias conscientes e inconscientes que a acompanham. A capacidade de lidar com os sentimentos gerados pela cena primária leva ao estabelecimento de uma outra conquista de extrema importância : a capacidade de ficar só (ibidem, p.267).

Após o concernimento estabelecido a criança possui uma integração entre amor e ódio, bem e mal, destruição e reparação se reconhece como inteira e o outro como uma pessoa inteira, com capacidade para amar e odiar. Segundo Winnicott, “a morte não tem sentido até o alcance da capacidade para odiar, o que implica em perceber o outro como pessoa humana completa”. (ibidem, p. 308) Diante dessa visão Winnicottiana, um luto parental na infância, pode dificultar futuros vínculos e encontros com a separação e a perda.  

Descrição do caso: Samantha

Diante de todos os sintomas citados acrescento a possibilidade do congelamento da capacidade de amar, onde diante da dor inesperada e dilacerante sem um amparo, aconchego e explicação a criança pode utilizar dessa defesa de caráter que auxilia na sobrevivência, evitando a morte psíquica e física. A paciente que chamarei de Samantha, viveu uma maternagem até mais menos 4anos de idade, segundo dados colhidos com os parentes, ”suficientemente boa” onde nas primeiras fases de vida com a mãe, foi amada, desejada e cuidada amorosamente. Com a doença da mãe, um câncer, a babá passa a assumir mais o papel de cuidadora, a mãe passou a dormir no mesmo quarto que Samantha, pois gemia de dor e o marido precisava dormir. Samantha aos 4anos e meio de idade tentava entende os gemidos da mãe, lembrança esta que veio após 2anos de psicoterapia, aos 5anos de idade, fase em que a criança ainda está estabelecendo o concernimento, perde a mãe devido ao câncer. Após a morte materna, sem explicações afetivas e coerentes, foi criada por um pai rígido, sem expressão de afetividade e por uma babá que procurava compensar a aridez emocional paterna. Nesse período tentou algumas vezes questionar o pai para que seus desejos fossem aceitos, mas isso foi em vão. Aos 10anos o pai falece de um derrame inesperado após o ano novo e Samantha novamente enfrenta a mesma experiência dolorosa, sem explicação e dessa vez sem a babá, vai ser criada por um casal de tios maternos, onde também não houve amparo emocional, somente o cuidado burocrático. Vive com os tios até 21anos quando pode sair de casa e assumir as heranças dos pais. Volta para a cidade natal e começa uma vida de solidão concreta. Não trabalha e vive da pensão dos pais. Samantha chega ao consultório com sua capacidade de amar congelada, com dificuldades de decidir se para ou não a faculdade de arquitetura, com dificuldade em criar vínculos, em depressão, arredia, mas desejando uma resposta a sua existência. Samantha veio procurar psicoterapia aos 21anos indicada por uma terapeuta holística a qual chamarei de Luiza, que atendia na mesma clinica que eu, onde ela fazia tratamento com massagem e florais de Bach. Apresenta-se na primeira sessão de forma arredia, com evidente transferência negativa e com a seguinte fala, para descrever usarei T para minhas falas e P para as de Samantha: P: Você foi indicada pela minha terapeuta para fazer psicoterapia, mas acho você com cara de brava, que não sorri que você se veste como velha, sendo que aparenta ter menos idade, mas você foi bem indicada pela Luiza, ela disse que você é boa e vim tentar. Observando minha sala acrescenta: P: Sua sala não é viva, não tem cor. Permaneci em silêncio. Após esse relato, falou da queixa: P: Acho que estou com depressão, não consigo me relacionar com meu namorado, não consigo continuar a faculdade de Arquitetura e também não consigo desistir e definir se gosto ou não gosto, por um tempo tudo é bom depois fica chato, perde a graça, fica sem sentido, não tenho animo para nada. Relatava suas críticas e queixas sem expressão, olhar perdido, parecia um ”bloco de gelo”, seu caminhar era arrastado e rápido como alguém que passou e não viveu, suas vestimentas eram coloridas e seu cabelo Pink. Diante desse quadro, acolhi suas críticas e questionei: T: Como é tentar confiar e fazer psicoterapia com alguém como você descreveu? Ela balança o ombro com uma manifestação de “tanto faz”, e fixa os olhos em mim. Mantenho o contato de olhar e pontuo: T: Sinto que você está cansada, parece que as pessoas a quem procura não entende suas necessidades ou não são conforme deseja (Seu olhar ficou mais profundo). Eu também não sou como você deseja e não tenho de imediato as respostas que você quer, mas estou aqui para descobrir junto com você a forma de atender suas necessidades e construir juntas suas respostas. Ficou pensativa, percebi que me olhava pela primeira vez com profundidade. E responde: P: Ah! Vou tentar. Isso é você não eu, E é a possibilidade de eu encontrar uma solução para minha vida, se não der certo eu paro. De alguma forma por acolher suas criticas e não retaliar senti que ela cedeu e decidiu ficar no processo. Samantha chega num momento de minha vida pessoal em minha avó materna e estava ainda de luto isso me ajudou muito a tolerar suas críticas, pois me colocava em seu lugar através da contra transferência. As próximas sessões foram sempre com críticas a minha pessoa, como um teste se eu iria suportar ou não, as críticas eram no inicio da sessão e depois vinham os conteúdos através de sonhos, pois dizia nunca se lembrar de detalhes de sua vida. Os sonhos foram as chaves para a abertura de portas para o processo se desenvolver, pois não aceitava nenhum trabalho corporal da minha parte , nem massagem. Por um tempo o trabalho com a transferência negativa ficava pela metade e era difícil às vezes suportar tanta crítica. Tudo começou a mudar no ano seguinte , quando iniciei o curso de Formação em Psicologia Biodinâmica, encontrei a “maternagem adequada” e a forma mais fértil de se trabalhar a transferência negativa. Embora ela criticasse, ainda permanecia no processo. Certa sessão chegou brava dizendo: P: Não acredito na terapia, não funciona , a vida está passando e eu não mudo, sinto-me sozinha e não consigo confiar em ninguém, só nos meus cachorros. O que você tem para me dizer? Disse a ela: T: É verdade, você sente-se muito sozinha, com dificuldade em confiar, principalmente aqui, em mim, você sempre está testando se eu suporto suas críticas ou se vou usar meu jeito bravo que você enxerga em mim. Meus cuidados são poucos para você, seus cachorros estão mais próximos de você do que eu. Sinto que gostaria de alguém mais presente em tempo com você e que as vezes decida por você. Pela primeira vez ela me olhou e pude sentir que eu havia enxergado suas necessidades, ela respirou e com os olhos cheios de água perguntou: P:Porque você nunca me mandou embora? A pergunta causou-me muita emoção, pela primeira vez estávamos juntas de verdade no vinculo terapêutico, respondi: T: Porque queria de alguma forma estar com você! Ela respondeu serenamente: P: Mas aqui é pouco para mim, acho que não vou conseguir só te vejo uma vez por semana e você não está no meu dia a dia. Sabia de sua necessidade, mas também era ciente de suas dificuldades financeiras e que não conseguiria aumentar o numero de sessões. Embora o enfoque fosse o vínculo. Reafirmei: T: É verdade! Mas estou com você e vamos juntas achar uma forma de cuidar de você e das dores que possui. Essa foi a sessão que marcou nossa relação terapêutica, a partir dessa sessão vieram muitos sonhos elucidativos quanto a figura materna e paterna e de renascimentos constantes. Nesse período ocorreu a sessão mais significativa referente ao descongelamento do trauma a qual vou descrever: Por um motivo de saúde tive que desmarcar a sessão de Samantha e não houve possibilidade de reposição. Na sessão seguinte ela chega com um sonho sobre a doença de sua mãe, embora não soubesse do motivo que desmarquei sua sessão, fomos trabalhar o sonho onde ela sentia-se sozinha. Trouxe para nossa relação transferencial: T: Como foi eu ter desmarcado sua sessão? Ela sacode os ombros com ar de desdém, demonstrando uma raiva escondida. T: Sinto que você ficou com raiva. P: Um pouco, dessa vez senti medo. T: Fala desse medo. P: Medo de perder você, como perdi minha mãe. Nesse momento seus olhos encheram de lágrimas e num momento muito claro pude ver seu congelamento derretendo e aparecendo sua criança ferida. A manifestação de seu amor pela minha figura de terapeuta despontando podendo reviver as emoções referentes a figura materna,resgatando sua capacidade de amar. Foi uma emoção só. Aproximei-me, segurei sua mão e num momento de silêncio nossas lágrimas falaram por nós. Era um momento de reparação! Após alguns momentos ela disse: P: Você é a única pessoa que me entende, que vê minha dor e respeita, se eu perder você… (e caiu num choro profundo) Nesse momento puxei Samantha para meu colo num holding corporal e ela pode chorar a dor de suas perdas, principalmente a de sua mãe. Ficamos juntas nesse contato até ela se reequilibrar e finalizamos a sessão. Após essa sessão críticas vinham e iam embora, de forma mais consciente. Samantha aceitou a depressão e procurou um psiquiatra, o qual a diagnosticou como portadora de Dístimia e passou a utilizar uma medicação adequada. Depois de 2 anos de psicoterapia engravidou e deu a luz a uma menina, foi um processo difícil, pois o pai da criança a abandonou. Sua filha ajudou a amolecer e derreter mais seus sentimentos. Vendeu praticamente toda sua herança, como uma forma de tentar acabar com o luto. Fez uma avaliação Psicopedagógica e Neurológica devido a dificuldade de concentração e no raciocínio lógico. O diagnóstico de ambos foi bloqueio emocional. Trabalhamos nesses 7anos o luto da mãe e do pai e hoje mais concernida, com uma atitude amorosa, encontra-se num momento de resgate da função paterna a de lançar-se no mundo. Apaixonou-se por um rapaz e namorou durante 2anos e quando romperam conseguiu dar contar da separação. Achou sua grande paixão na profissão, faz Psicologia, mesmo com suas dificuldades de aprendizagens advindas de todo o processo de vida que passou, continua procurando ajuda na psicopedagogia para atingir o seu sonho, seu mais recente crescimento foi ter assumido cuidar de um tio materno com derrame, onde é remunerada. Nesse cuidado com o tio está descobrindo uma tolerância e paciência que segundo ela não acreditava possuir.  

Conclusão

O caso de Samantha vem confirmar que o sofrimento da perda na infância é uma dor crua e penetrante que pode ser devastadora, se não houver uma assistência emocional “suficientemente boa”, trazendo conseqüências muitas vezes quase irreversíveis. Os adultos têm o benefício da experiência e de conhecimentos passados, podem perspectivar a perda, mas não é esse o caso das crianças que não possuem este tipo de estratégia para ultrapassar esta situação. Por estar ainda em desenvolvimento cognitivo e emocional, ao longo do processo de luto a criança precisa saber que não está só e que os seus sentimentos são normais e fazem parte da vida; por isso um adulto que se preocupa com ela, deverá ser identificado e sentido como uma âncora, como um interprete desse momento obscuro e cheio de fantasias. Podendo dessa forma, evitar a criação de um trauma, do congelamento de suas emoções. Samantha não recebeu esses cuidados, primeiro no luto materno onde sua idade de 5anos trazia a idéia de morte como um fato reversível, ficando com a sensação de que a mãe iria voltar. Nada foi esclarecido de acordo com suas necessidades. l A primeira fase do luto é a do protesto onde o choque, o torpor e recusa são comuns, diante de uma figura paterna rígida e sem estrutura emocional, Samantha não pode expressar suas manifestações. A segunda fase do luto é a da desorganização aonde a raiva vem à superfície. As crianças podem procurar outra pessoa para ser objeto da sua intensa raiva. Pode ser muito difícil agüentar esses sentimentos tão fortes, essas manifestações de raiva, em especial se a criança utilizar os membros imediatos da família. È importante para a criança possuir alguém que suporte sua agressividade. No caso de Samantha não houve esse respaldo e como conseqüência começou a desenvolver comportamentos depressivos. Durante o inicio do processo psicoterapêutico foi notório que Samantha não havia saído totalmente da primeira fase do luto e começado a entrar na segunda fase, ainda estava em choque, sem expressões de raiva referente aos lutos, em desorganização psíquica. Diante desse estado, chegar à psicoterapia e poder utilizar a transferência negativa foi produtivo e curativo. Um trabalho psicoterapêutico ao qual chamarei de estilo “Polyana”, onde no processo tudo é ótimo, só ocorrem expressões “boas” elogios por parte do paciente. É fácil para o psicoterapeuta manejar este tipo de comportamento, mas não é curativo, o tratamento pode ser um fracasso, pois não permite o acesso ao material inconsciente que através da transferência analítica emerge. Reich chamou atenção dos analistas quanto à importância de desmascarar a transferência positiva sedutora que máscara a resistência transferencial negativa. ”Não há cura real sem a análise das experiências primárias”(4.p.35). É necessário passar pela sombra, sair da personalidade secundária. O psicoterapeuta tem que ser continente da raiva do paciente sem retaliar ou destruir, para acessar a personalidade primária, a essência de sua criança ferida e poder descongelar e reparar o trauma, resgatando a capacidade de amar. As críticas e ataques de Samantha referente à minha figura de psicoterapeuta vieram sem camuflagens onde ela pode viver sua destrutividade, sua raiva e indignação sem ser destruída e sim acolhida. Por identificar esses atos como transferência negativa, discriminava que “não era comigo”; sendo continente a seus ataques e críticas, conscientizando e atualizando no seu tempo as suas experiências primárias recalcadas. Foi de grande importância fazer amizade com a sua resistência, postura tão mencionada por Gerda Boyesen:  

“Como um receptador, aceite e explore sua resistência; qualquer que seja sua manifestação em você, ela está ali por razões valiosas, pois foi criada inconscientemente, para protegê-lo contra a dor. Como alguém que ajuda preste atenção à resistência no seu cliente, respeite suas manifestações contra a entrega. Saiba que se você tiver um procedimento gentil, a resistência poderá se dissolver sob suas mãos – se você penetrar estupidamente, ela apenas aumentará” (4. p.115).

Essa postura Biodinâmica ofereceu a mim como psicoterapeuta, tranqüilidade, respeito e fé na possibilidade de mudança. Ter oferecido a Samantha o tempo que precisava para confiar, expressar sua destrutividade ,sem ter uma postura invasiva pôde permitir que fosse descongelando suas emoções. Cada sessão foi um encontro, foi um gesto de acolhimento firme ás suas críticas e um derretimento de couraça, sessão após sessão. Com o derretimento começa aparecer sua personalidade primária, seus medos, culpas e a vontade de amar de novo. Sem experimentar a destrutividade, não se desenvolve o amor verdadeiro. No caso de Samantha que perdeu sua mãe aos 5anos de idade e anteriormente teve seu contato materno restringido devido à doença, ficou difícil expressar sua destrutividade e aprender o significado da reparação. Nesta idade vive-se a fase onde as fantasias são intensas, podendo a criança levantar a hipótese da fantasia de ter sido responsável pela morte do genitor. Assim em maior ou menor intensidade, a culpa aparece e pode ser: – depressiva: essa auxilia no luto; – persecutória: essa dificulta a elaboração do luto. A culpa de Samantha era persecutória dificultava entrar até em contato com o luto. A psicoterapia foi essencial, como espaço de continência para Samantha, onde nesse espaço seguro como psicoterapeuta forneci o holding e exerci o papel de continente para os sentimentos de raiva da sua criança ferida, ajudando-a a lidar com a ambivalência emocional e seu sentimento de culpa ainda não consciente. Como psicoterapeuta executei o papel da função materna, a qual segundo Winnicott é quem fornece a oportunidade de vivenciar o circulo benigno.

“O fato é que a criança necessita exercer sua impulsividade e se depara com o medo de que os estragos sejam irreversíveis. Quando a mãe fornece a oportunidade para que o ‘circulo benigno’- o machucar-e-remendar (hurting-mande-good)- se repita inúmeras vezes, o bebê passa, gradualmente, a acreditar na possibilidade de reparação, no esforço construtivo, e sendo-lhes dadas boas condições de suportar a culpa, torna-se mais livre para o amor instintual” (3. p.262).

A paciente pôde viver a fantasia de destrutividade e não foi abandonada, teve uma pessoa que suportou suas críticas de forma amorosa. Pode ocorrer o reconhecimento de seu próprio amor e sua identificação como uma pessoa amorosa. Começou a vivenciar a terceira fase do luto o da reorganização. Nesta fase final do luto, existe um conflito entre a necessidade de “deixar andar” num sentido emocional, e o desejo de “se manter firme”; ficar com o passado conhecido ou dar abertura para o futuro desconhecido. Este é um momento muito importante onde se confirma que o luto não é o esquecimento da pessoa amada, mas uma nova maneira de se ligar a ela. Hoje Samantha está mais resolvida quanto ao enlutamento materno, consegue sentir a mãe dentro de si o que resultou numa postura mais amorosa consigo e com os outros, começou a ter mais foco em sua vida, desbloqueou o seu raciocínio lógico e descongelou sua capacidade de amar, como relato na descrição do caso. Isso torna mais fácil, atualmente acessar e elaborar o luto paterno no processo psicoterapêutico. Diante dessa experiência dentro de um processo psicoterapêutico como psicoterapeuta faço das palavras de Gerda Boyesen as minhas: “A criançinha é obrigada a desprezar seu ser mais profundo pela repressão dos adultos e se torna infeliz. Quando, na terapia, toda essa repressão ressurge e se descarrega, ela pode ser novamente feliz e sentir outra vez a onda oceânica” (1.pg.112). No relato desse caso fica um registro de como humanos que somos, temos dificuldades de lidar com a nossa destrutividade, seja ela como impulso ou como destruição-morte-fim. Tanto Reich como Winnicott enfocam a importância do acolhimento da agressividade no processo psicoterapêutico e Boyesen o respeito pela resistência para descongelar o trauma. Como psicoterapeuta é preciso estar atento a transferência negativa para não perder uma possibilidade de reparação. E na vida? Qual nossa atitude diante da destrutividade e da perda? Como pais? Professores? Como pessoas? Será que conseguimos ser continentes para nossa agressividade e de nossas crianças? Criando e facilitando o ciclo benigno? Talvez! Com tal experiência saberemos lidar melhor com a dor da perda e da separação, sem perder o nosso próprio “EU”, continuando a ser inteiros.

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