Ensaio “Boyesen e Bergson: uma aproximação possível?”

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Massagem e Memória

Dilu Aldrighi

Se me perguntassem qual sugestão daria aos que trabalham ou pretendem trabalhar com massagem, sem titubear, responderia: – leiam as obras de Bergson, filósofo francês e aproximem-se da Psicologia Biodinâmica, através das práticas de Gerda Boyesen. Fenômenos observados em atendimentos de massagens e relatos frequentemente narrados a partir destas experiências e que, muitas vezes, provocam uma certa estranheza, aos olhos da lógica da inteligência, passam a ser, então, elucidados.

Com Bergson, apreendemos a perceber a estreita relação entre corpo e mente, sendo, contudo, alertados a jamais reduzirmos os fenômenos mentais aos fenômenos cerebrais. A consciência (“espírito”) é concebida como “uma força, capaz de tirar de si mais do que possui”, um sopro criador, denominado “élan vital”. O corpo, como instrumento, estímulo e obstáculo a este élan. O organismo, o lugar de passagem desta “corrente de vida”. Todas as nossas experiências vividas vão construindo nosso ser. Nossa existência é esta nossa duração, este nosso deslizar no tempo. No limite, somos o “registro do tempo”, somos tempo e memória, corpos constantemente transformados pelas experiências vividas.

Nossa história subjetiva e o modo como a vivemos é que vão tecendo nossos corpos, neste nosso durar no tempo. Tempo experimentado pela nossa consciência. Neste sentido, nossos corpos são a história de nossa existência. Assim, tocar o corpo do outro, significa tocar toda sua história de vida, todos seus afetos. Ora, é exatamente esta a razão pela qual, durante um trabalho de massagem, assistimos as emoções aflorarem. Não somos apenas memória psicológica, somos memória orgânica. Em “A evolução criadora”, Bergson afirma que “a evolução do ser vivo , como a do embrião, implica num registro ininterrupto da duração, uma persistência do passado no presente, e por conseguinte uma aparência pelo menos de memória orgânica.” Mais adiante acrescenta: [… quanto à criação orgânica, ela pode também exprimir que o momento atual de um corpo vivo não encontra sua razão de ser no momento imediatamente anterior; se deve juntar a ele todo o passado do organismo, sua hereditariedade, enfim, o conjunto de sua longuíssima história.*

1 O termo “longuíssima história” é utilizado , não apenas para compreendermos a situação do corpo, mas também da nossa consciência. Nossas memórias não se limitariam a esta nossa “historicidade”. Para além da memória psicológica, Bergson nos fala de uma memória “ontológica”, registro do ser.*

2 Para melhor compreendermos, Bergson compara a consciência à imagem de um cone, cuja base cresceria constantemente através das experiências vividas. O vértice representaria nosso momento presente, nosso permanente esforço de inserção na “atenção à vida.” É como se a consciência transitasse entre dois “eus”: o “superficial” ( automatizado, repetitivo, preso às necessidades da vida, e regras sociais, determinado) e o “ profundo” (registro ontológico de nossas memórias, livre, criador, em constante evolução). Para sabermos quem somos, para nos percebermos como “registro do tempo”, não há outra via senão a “observação interior” (a visão interior), mesmo que ela nos traga, apenas, uma “intuição vaga”. *

(3) Neste caso, o conhecimento intuitivo seria preferível ao conhecimento científico , posto que a Ciência trabalha sempre com o relativo, sobre conceitos preexistentes, fixos e rígidos, incapazes de traduzirem o real, ” jorro contínuo de novidade e mudança”. Tal tarefa caberia à intuição, por ser a única a se instalar “no movente e adotar a própria vida das coisas.”*

(4). Nosso “eu” só pode nos ser apresentado diretamente na intuição, sugerido indiretamente por imagens, mas jamais ser encerrado numa representação conceitual”*

(5) Esta “incompetência “ da inteligência em lidar com o vivo é uma das ideias centrais da Filosofia Bergsoniana. Equivocamo-nos ao pretender conhecer a vida, empregando os mesmos meios que utilizamos para compreender as coisas, os objetos. A habilidade da inteligência, estaria restrita à manipulação do inerte , da matéria inorgânica e, não, do que é vivo.” […]Quer se trate da vida do corpo ou do espírito, ela [a inteligência]age com todo o rigor e a rusticidade de um instrumento que não havia sido destinado a semelhante uso.[…].A grosseria e a persistência dos erros de uma prática médica ou pedagógica teriam a origem […em nossa obstinação em tratar o ser vivo como se trata o inerte e em pensar a realidade, por mais fluida que seja, sob forma de sólido definitivamente parado……[…] *

6 Radicaliza sua crítica, pontuando que a inteligência se caracteriza por uma “ incompreensão natural da vida”.*

7 Seu questionamento começa pela própria linguagem, que é sempre “tradução” do real, das coisas e, não, as próprias coisas. Os conceitos, com os quais trabalhamos, deveriam ser provisórios, por serem, apenas, tentativas de representação da realidade. Com relação à Psicologia, em particular, Bergson defenderá a ideia da impossibilidade de se conhecer a interioridade, o “eu”, via análise. “ […]Quanto mais tento apreender-me a mim mesmo pela consciência, tanto mais me apercebo como a totalização ou o Inbergriff (resumo) de meu passado, este passado contraído em vista da ação. “A unidade do eu” de que falam os filósofos me aparece como a unidade de uma ponta ou de um cume, nos quais me concentro a mim mesmo por um esforço de atenção, esforço que se prolonga durante a vida inteira e ao que parece, é a própria essência da vida. Mas para passar desta ponta de consciência ou deste cume para a base, para um estado em que todas as lembranças de todos os momentos do passado estariam espalhadas e distintas, sinto que teria de passar do estado normal de concentração a um estado de dispersão como o de certos sonhos; não haveria, pois, nada de positivo a fazer, mas simplesmente algo a desfazer, nada a ganhar, nada a acrescentar, mas antes algo a perder…” *

(8) Apesar de dedicar grande parte dos seus estudos à compreensão da relação consciência-corpo e de ter abraçado a tarefa de apreender o espírito humano como “pura energia criadora”, participando de experiências importantes do “Groupe d’étudesdesphénomènespsychiques”,relatadas pelos boletins do Instituto Geral Psicológico, sobre radiações, hipnose, estados alterados de consciência, Bergson não clinicou. No entanto, seu legado parece ter sido fonte de inspiração para Wilhelm Reich, considerado, em sua época, “um bergsoniano maluco”. A partir do “élan vital” bergsoniano, Reich erigiu sua “Análise do caráter” e a própria Orgonomia, que trabalham, fundamentalmente, sobre a noção do conceito de energia como desencadeador da vida. Reich, perseguido pelos nazistas , chega à Noruega, onde passa a compartilhar seus conhecimentos com um grupo de pessoas interessadas no seu trabalho.

Forma-se um pequeno clã reichiano, do qual emergirá OlaRaknes , futuro terapeuta de GerdaBoyesen, muito jovem, então, para poder fazer parte do grupo. Tendo como primeiro alicerce Reich e a terapia com Raknes, Boyesen construirá as bases da Psicologia Biodinâmica, que faz da massagem, do relaxamento dinâmico e da escuta do impulso interior seus principais recursos terapêuticos. Através do seu trabalho clínico, Gerda pode constatar o que Bergson afirmara sobre a memória orgânica. Nossa corpo é a inscrição viva de nosso percurso existencial. Boyesen se maravilha com as descobertas feitas, através da prática da massagem. Ela mesma afirma: – “que seja possível influenciar pela massagem o inconsciente e as emoções recalcadas me foi uma grande revelação.

Que o organismo seja capaz de recalcar as emoções e conflitos por tensões musculares e por uma contração crônica foi uma outra revelação essencial. […] O corpo encapsula as emoções, deixando os músculos tão rígidos que a contração subsiste de maneira crônica….A energia emocional é escondida nas profundezas…..Mas, da mesma forma que na tuberculose, onde esta capsulação pode dissolver-se por si e os bacilos tornarem-se ativos então, também a capsulação de conflitos e emoções pode cessar e as lembranças, os afetos e os movimentos reprimidos podem emergir das profundezas do corpo. […] Assim que a contração muscular relaxa e que cessa a capsulação da energia emocional, então o processo é análogo ao descrito por Freud:assim que diminui o recalque e que tombam as defesas, a neurose ou a psicose aparecem. Eu desenvolvi estas teorias, que são os fundamentos da Psicologia Biodinâmica, trabalhando como massagista no Instituto Bullow-Hansen”. *

9 É importante ressaltar que o termo “energia” aparece em Bergson, na própria definição do que vem a ser a consciência e, co-extensivamente, a própria vida, uma vez que esta, a vida, apenas será compreendida, a partir da experiência interna do meu existir, enquanto memória, enquanto tempo. “[…] a consciência nos aparece como uma força que se inseriria na matéria para apoderar-se dela e utilizá-la em seu proveito. Ela opera através de dois métodos complementares: de um lado, por uma ação explosiva que libera instantaneamente, na direção escolhida, uma energia que a matéria já acumulou durante longo tempo; de outro, por um trabalho de contração que concentra neste instante único o número incalculável de pequenos eventos que a matéria realiza, e que resume numa palavra a imensidade de sua história.”*

10 . Em outros termos, o élan vital, esta “consciência criadora”, atravessa a matéria, para fazer, dela, um instrumento de liberdade. No entanto, nos corpos aprisionados, neurotizados, este trabalho do élan , desta corrente de vida, se apresenta interrompido, impossibilitado de fazer circular sua potência criadora. A massagem, ao flexibilizar os corpos ,ao redirecionar os fluxos que atravessam os organismos, devolve-lhes a vida, promovendo, num primeiro momento, a varredura daquilo que os aprisiona, daí as transformações violentas vividas pelos pacientes de Gerda e ,por ela própria, ao se submeterem aos toques liberadores e libertadores das massagens. No entanto, em algumas destas vivências, podem aparecer lembranças muito remotas , outras, incompreensíveis, tal como tive a chance de observar , pessoalmente, em Londres, vendo Gerda trabalhar.

Aqui, somos auxiliados pala compreensão de Bergson sobre a “memória ontológica”. Somos o registro de um tempo, que pode ser maior do que nossa historicidade imediata. Grof, através da respiração holotrópica e Jean Paul Resseguier, através de seu “Método Resseguier” citam relatos semelhantes aos narrados por aqueles que tiveram, nas massagens biodinâmicas, experiências semelhantes. Assim, o silenciar do ”eu superficial” e o mergulho no “eu profundo “, o “passar do estado normal de concentração a um estado de dispersão”, propostos por Bergson, como via direta de nos conhecer, encontram eco nas práticas utilizadas pela Psicologia Biodinâmica, tal como acontece nas massagens ou pelo “relaxamento dinâmico”, outro seu importante recurso terapêutico, através do qual, por um profundo aquietamento somático, o silenciar do “eu superficial”, repetitivo e automatizado dá lugar ao “eu profundo”, potente, livre, “criador”. Gerda e Bergson não se contentam em nos introduzir , apenas, no reino do conforto, do prazer. Delegam esta tarefa à Ciência. Semelhante ao “élan”, são mais ambiciosos: – convidam-nos a experimentar a “alegria divina”, a imanência do nosso ser. Tal como Bergson afirma, na Introdução da edição francesa, de “Matéria e Memória” : – “ enquanto a psicologia tem por objeto o estudo do espírito humano como funcionamento útil à prática, a Metafísica representa o esforço deste mesmo espírito para se libertar das condições que o limitam à ação útil, para se reaprender enquanto pura energia criadora”.*

(11) Neste sentido, pode-se afirmar que tanto Bergson quanto Gerda, se aproximariam, sim, por transgredirem os limites da razão na compreensão do humano, legitimando a intuição como uma importante via epistemológica da complexa e instigante relação consciência-corpo e nos devolvendo ao que somos, de direito, a saber: pura energia criadora.

Notas: *(1) “A evolução criadora” , Bergson, Zahar Editores, 1979. * (2)Bergson esclarece: “[…]mas é com nosso passado integral, inclusive, nosso perfil de alma original, que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado manifesta-se, pois, integralmente.” “A evolução criadora”, Zahar Editores, 1979. * (3)“A alma e o corpo”. Bergson, Os pensadores, Abril Cultural, 1979 *(4) ”Introdução à Metafísica”,Bergson, Os Pensadores, Abril Cultural. *(5) ”Introdução à Metafísica”. *(6) “A evolução criadora”, Bergson, Zahar Editores, 1979 *(7)“A evolução criadora”, Zahar Editores, 1979 *(8) Carta de Bergson a William James, 1903 Bergson, Os Pensadores, Abril Cultural * (9) “Entre Psique e Soma”, GerdaBoyesen, Summus Editorial, 1992, pág. 35. *(10) “A consciência e a vida” Conferência feita em Birmingham, em 29 de Maio de 1911, Bergson, Abril Cultural.) * (11) “Matière et Mémoire”, Henri Bergson, PressesUniversitaires de France, 1975.

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