O vínculo restabelecido

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Por: Zuleide M. Giraldi

Entre as idas e vindas para as aulas sobre a teoria de Winnicott, e incentivada por conversas de almoço depois de uma das primeiras aulas, convidei algumas amigas (uma psicóloga e uma pedagoga) para lermos juntas “Privação e Delinquência”. Elas trabalham num abrigo para crianças – a maioria retirada das famílias por maus tratos e que aguardam uma decisão judicial para serem encaminhadas para adoção ou um trabalho junto às famílias para poderem voltar pra casa. O lugar se chama Lar Miriã, mantido pela igreja Luterana, e entre as crianças abrigadas está um casal de gêmeos que chegou mais ou menos em março deste ano, com sérios problemas de desenvolvimento e desnutrição. Mãe alcoólatra, pai ausente, irmãos maiores, mas não tanto – sem condições de cuidar… Seguimos o ano, lendo o livro e conversando muito. Quando chegávamos a alguma coisa que elas não compreendiam, eu ia dando os meus pitacos com o que tinha lido no livro da Elsa Oliveira Dias e com o que trazia das aulas. Acho que eu pude contribuir esclarecendo alguns pontos da teoria de Winnicott e elas contribuíram comigo, trazendo a prática: as observações no dia a dia das crianças, as dificuldades com relação às mães sociais, as reações das crianças ao essay writing trabalho no Lar. Líamos um trecho, alguém trazia um exemplo e a gente discutia o que vinha. Ainda hoje fazemos assim, sempre tendo Winnicott como referência: a relação mãe-bebê, a integração do eu, a dependência absoluta e relativa, a perda do que foi conquistado, a construção do que ainda falta… Os gêmeos chegaram com 10 meses, mas eram muito pequenininhos (+ ou – 3 kg) e viraram os xodós da casa. Todo mundo dando atenção e eles respondendo: aprendendo a abanar a mão, a jogar beijo, a comer melhor, a mastigar, engatinhar e agora, finalmente, estão firmando as perninhas e ensaiando os primeiros passos. Até aí, beleza. Tudo bem dentro do que seria possível, eu acho. Acontece que esse cuidado estava levando as pessoas que trabalham no Lar a se ressentirem com a mãe, como se ela não fosse mais apta a cuidar das crianças. Nas visitas aos domingos ela ficava um pouco com cada um, mas muito sem jeito, insegura, o que reforçava justamente a visão das pessoas de que não seria bom para as crianças voltar pra casa, que a mãe não daria conta. A mãe, às vezes ia embora chorando, em outras ia muito brava porque tudo o que ela tava fazendo parecia errado. De vez em quando alguém dizia: “se eles forem pra adoção, eu quero, eu fico com os dois…” Parece que tinha uma espécie de torcida muda pra que eles não voltassem pra mãe. No nosso grupo, lendo Privação e Delinqüência, fomos entendendo o ressentimento da mãe com o bem estar das crianças – que parece um paradoxo, mas é compreensível. Com ela, eles corriam riscos de vida e agora eles estavam bem, então ela era a errada. Ao mesmo tempo, existia alguma coisa porque, por causa deles, ela estava bebendo menos, admitiu o vício e estava se esforçando. Chegava para as visitas sóbria e limpa. E isso é uma conquista, acreditem. Num dos nossos encontros, falamos mais sobre essa insegurança e ressentimento. Com a ajuda de Winnicott, tentamos nos colocar no lugar dela e compreender a situação com outros olhos, até que surgiu a idéia dela ficar com os bebês num final de semana, como forma de experimentar o cuidado. Dizendo isso agora, sei que parece meio óbvio, mas naquele momento isso foi uma solução para as nossas próprias angustias com o distanciamento e com o não saber. Eu não vou contar tudo, mas a coisa deu tão certo que eles têm ido pra lá todo final de semana e só não foram reintegrados à família ainda porque estão em tratamento e vão ser matriculados na APAE para os exercícios de fonoaudiologia e fisioterapia. Até aqui tudo bem, mas não é bem isso que eu quero compartilhar com vocês e sim a reação das crianças. Quando eles começaram a passar os finais de semana com a mãe, já tinham ficado 4 ou 5 meses no Lar, com visitas semanais (cada vez menos freqüentes) da mãe. As crianças chegaram a ficar 20 dias sem vê-la e durante as visitas, ela parecia ninguém. Eles não se envolviam. Por isso, no primeiro final de semana em que eles foram pra casa, todos ficaram (ou ficamos) preocupados. Mas as crianças sobreviveram (aos cuidados da mãe, vejam só!!!). Voltaram na semana seguinte e… no terceiro final de semana quando o carro encostou na frente da casa e a família veio recebe-los, a Tavillidy abriu um sorrisão e ergueu as mãozinhas pra mãe. E o Altieres bateu “palmas” com os pezinhos (que é o que ele sempre faz quando está feliz). O amor estava ali, vivo outra vez. Durante todo aquele tempo o vinculo ficou bem guardado, pronto pra ser restabelecido com um pouco de contato e liberdade. E ninguém tem como negar isso, porque as crianças ficam 5 dias no Lar, cheias de paparicos, e apenas 2 dias em casa. Acada segunda-feira, voltam pro Lar com piolho, olhos e nariz cheios de remela, mas felizes por terem estado em casa. Amãe não bebe mais aos finais de semana, a comunidade está se mobilizando pra fazer uma casa de madeira pra eles (onde moram hoje, não tem nem banheiro) e o pai tem passado mais tempo com a família. Até os irmãos maiores ficam à espera dos gêmeos. As “meninas” do grupo de estudo disseram que só entenderam a importância e se esforçaram para que as coisas acontecessem assim, passando a adoção pra última alternativa, por causa do grupo de estudos e do que estão aprendendo. Por causa da compreensão da importância do vinculo mãe-bebê e mais que isso, pela confiança nesse vinculo, mesmo sem compreender. E eu, sei que o grupo só tem acontecido por causa das aulas que vieram ao encontro da minha vontade de aprender mais sobre isso tudo e que me deram suporte pra esclarecer algumas dúvidas e questionamentos das meninas. Estou contando isso tudo para agradecer à Maria e à Glória pelas aulas tão vivas, ao Ricardo por ter aberto as aulas, à turma da formação que nos recebeu, à Xilia e à Eliana pela sugestão do grupo de estudos. Vocês podem pensar que não foi nada, mas cada “nada” desses contribuiu para a seqüência de acontecimentos que levou os gêmeos pra casa! Obrigada! Talvez mais do que agradecer, minha vontade foi de compartilhar com vocês o reconhecimento de que o vinculo dos bebês com a mãe, restabelecido logo nos primeiros finais de semana, foi como uma prova viva do pensamento de Winnicott: uma mãe presente é suficientemente boa para o filho. Winnicott me ensinou a compreender isso e os bebês estão me ensinando a confiar.

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