Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica
FREUD x WINNICOTT: POSSIBILIDADES À
CLÍNICA BIODINÂMICA
MARIA CLAUDIA TEIXEIRA DE ANGELIS FELICIANO
Monografia apresentada ao Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica, como parte dos requisitos para obtenção do título de Analista Biodinâmica. Orientadora: Profª Maria Forlani.
Taubaté
2013
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os caminhos antigos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia – e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa).
Obrigada, Guilherme Feliciano, meu Namorido, por surgir em minha vida, acreditar no meu potencial e me motivar a não ficar à margem de mim mesma. Dedico este trabalho a você, que muito amo e admiro.
AGRADECIMENTOS
Aos meus amados pais, alicerces da minha existência e andaimes do meu crescimento. Sem o apoio, carinho e amor de vocês, nada disso valeria a pena! À minha irmã, às vezes gata e às vezes rata de nossa tumultuada, mas verdadeira relação. Às minhas queridas amigas de formação: Sara, Rosi, Tati, Helô, Thelma e Sabrina. E também àquelas que, pelo curso da vida, não estiveram conosco até o fim: Gale, Adeliz, Val e Rê. Meninas, de cada uma, levo muito carinho e aprendizado! À Maria Forlani, Coordenadora de nosso Grupo de Formação, o primeiro de Taubaté, pela segurança e suavidade em todos os momentos compartilhados; pela dedicada e cuidadosa orientação a este trabalho; e pela confiança depositada em mim. Obrigada, querida! Ao Ricardo, grande Mestre. Como já te disse, o que o Gaiarsa significou a você, representa o mesmo que você significa a mim. Só não vou te chamar de vovô, fique tranquilo! A todos os demais professores do Instituto que nos brindaram com aulas e vivências: Glória Cintra, Lili, Márcia Coelho, Dulce, Eliana Pommé e Adriana Dal-Ri. À Sandra Abreu, amiga de muito tempo, com quem sempre aprendo a cada momento. À Lilia Bueno, fina estampa de mulher que me ajuda, literalmente, a ter pernas. Ao meu amado sobrinho Gabriel, que nasceu no meio da elaboração desta monografia, por me permitir vivenciar deliciosamente cada conceito da teoria winnicottiana. À Sandra Milessi, pelo respeito aos momentos introvertidos e extrovertidos, pela resposta assertiva aos gestos espontâneos, pelo holding e por todo acolhimento vivo e caloroso. Você foi o ambiente que me ajudou a SER e a EXISTIR. E, agora sim, com um EU constituído, que venha o Édipo! Muito obrigada, flor… Por tudo!
índice
Introdução Capítulo I: Freud e o desenvolvimento da Psicanálise I.1 – Estruturas da Personalidade: id, ego e superego I.2 – Fases do Desenvolvimento Psicossexual I.2.1 – A fase oral I.2.2 – A fase anal I.2.3 – A fase fálica e o complexo de Édipo I.2.4 – O período de latência I.2.5 – A fase genital I.3 – Neuroses I.4 – Paradigma Pulsional Capítulo II: Winnicott e o desenvolvimento da Teoria do Amadurecimento Pessoal II.1 – Teoria do Amadurecimento Pessoal II.2 – Estágios do Amadurecimento Pessoal II.2.1 – Estágios primitivos de dependência absoluta II.2.2 – Estágios iniciais de dependência relativa II.2.3 – Estágio rumo à independência II.2.4 – Estágios de independência relativa II.3 – Psicoses II.4 – Paradigma Objetal Capítulo III: Esquematizando as principais diferenças entre Freud e Winnicott Capítulo IV: Conclusão: as contribuições de Winnicott à clínica Biodinâmica Bibliografia
INTRODUÇÃO
A Psicologia Biodinâmica, desenvolvida pela psicóloga e fisioterapeuta norueguesa Gerda Boyesen, traz consigo inúmeras características peculiares. No entanto, a que mais chama a atenção é o CUIDADO especial dedicado ao paciente. Sem invasão ao processo terapêutico, sem onipotência do terapeuta. Apenas PRESENÇA, que acolhe ou impulsiona dependendo da necessidade do paciente e que está sempre ao seu lado. Este cuidado, manejado por Gerda com extremo feeling, foi se desenvolvendo ao longo de sua prática, de um modo bastante intuitivo a partir das reações de seus pacientes a certas intervenções corporais ou verbais. Sendo assim, Boyesen, visceral como era, não sistematizou pormenorizadamente sua teoria que, sabemos, envolve saberes dos mais variados. Deste modo, a Psicologia Biodinâmica é holística, englobando conceitos e conhecimentos da Fisioterapia, da Psicologia Humanista, do Existencialismo, da Psicologia Analítica de Jung, entre outros. No entanto, a base teórica para seu entendimento é estruturalmente psicanalítica. Freud, Reich e Winnicott atualmente são os autores essenciais para a compreensão e fundamentação da prática clínica biodinâmica. Dentre esses três autores citados, percebemos que Winnicott, ao basear seu pensamento na observação de psicóticos e do relacionamento entre mãe-bebê, enfatizou a necessidade de cuidados essenciais no início da existência humana, sem os quais o homem fatalmente adoece. Sendo assim, ele teorizou sobre uma fase primitiva – anterior àquela enfocada por Freud – que, quando precisa ser trabalhada em psicoterapia, envolve a urgência de cuidados e de um manejo adequado com o paciente regredido. E tal cuidado é muito difundido e apreciado na Psicologia Biodinâmica. Ressaltamos que Gerda, em momento algum, cita Winnicott em seus escritos. Ainda, discípulos diretos, como Clover, confirmam que o modo acolhedor da prática biodinâmica reflete unicamente os ensinamentos deixados por Boyesen. Entretanto, encontramos em Winnicott uma estruturação teórica que permite explicar, com maior clareza, a forma terapêutica biodinâmica de manejar um atendimento clínico. Não caberá, neste texto, esmiuçar as inovações teóricas e práticas trazidas pela Psicologia Biodinâmica. Nosso enfoque será apenas nas diferenças conceituais entre Freud e Winnicott, especialmente no que diz respeito à centralidade pulsional ϰ relacional como explicação para a construção da personalidade. Esperamos, ao final, contribuir para um melhor entendimento das ideias principais destes dois autores. E, quiçá, esclarecer as contribuições dessas ideias para o melhor entendimento da Psicologia Biodinâmica… Voilá!
CAPÍTULO I – FREUD E O DESENVOLVIMENTO DA PSICANÁLISE
O termo Psicanálise, usado pela primeira vez em 1896 por Freud, refere-se a uma teoria, a um método de investigação e a uma prática profissional. Seria impossível descrever todos os detalhes da Psicanálise freudiana e este não é o nosso propósito. Entretanto, algumas noções básicas devem ser destacadas, pois sem elas é impossível estabelecer as diferenças fundamentais entre os dois autores a que nos propomos estudar. Primeiramente devemos relembrar que Freud construiu suas ideias observando, principalmente, pacientes histéricas que apresentavam vários sintomas sem causa fisiológica. Percebeu, então, por meio da análise, que tais sintomas estavam relacionados com conteúdos psíquicos recalcados no inconsciente, de cunho agressivo ou sexual. Foi aí que estabeleceu a resolução do complexo de Édipo como o ponto culminante do desenvolvimento psíquico do indivíduo, o que poderia levar à normalidade ou à formação de neuroses. Tendo em vista a época vivenciada pelo psicanalista, de plena repressão da sexualidade pela família, sociedade e igreja, sua percepção foi muito assertiva. Deste modo, a resolução do complexo de Édipo é o núcleo da psicanálise freudiana. Sintetiza Loparic que “com o Édipo, Freud descobriu, ao mesmo tempo, a sexualidade infantil, o inconsciente reprimido, o conflito que causa as neuroses e o método de seu tratamento” (LOPARIC, 1997: 41). Mas, afinal, o que é o Édipo? Esta pergunta será mais bem respondida após tecermos breves comentários sobre as estruturas da personalidade e as fases do desenvolvimento psicossexual. I. 1 – Estruturas da Personalidade: id, ego e superego Freud sempre concebeu a mente humana como algo em constante e persistente conflito e, ao estudá-la, elaborou num segundo momento uma divisão de três instâncias: id, ego e superego. O id é a instância original da psique, reservatório e fonte de toda a energia psíquica. É a parte mais primitiva da personalidade, de onde provêm todas as pulsões[1], entendidas como necessidades e desejos que impelem o indivíduo a agir. Os conteúdos do id são quase totalmente inconscientes, incluindo pensamentos primitivos que nunca foram conscientes e pensamentos que foram negados e recalcados (FADIMAN e FRAGER, 2004: 36). É governado pelo princípio do prazer e demanda satisfação imediata. Seus objetivos são aumentar o prazer e diminuir o desprazer. Para Freud, o bebê ao nascer seria o exemplo de puro id. O ego é a parte da psique que está em contato com a realidade externa. Desenvolve-se a partir do id e o protege. A ele cabe toda a consciência e, portanto, todas as funções mentais e executivas. Todavia, também suporta conteúdos inconscientes, como os mecanismos de defesa. O ego, regido pelo princípio da realidade, funciona como um estrategista ao unir e conciliar as reivindicações do id e do superego com o mundo externo. Desta forma, tenta manter controle sobre as pulsões do id, decidindo se elas podem ser satisfeitas imediatamente, se precisam ser adiadas para satisfação oportuna ou se devem ser suprimidas por completo. O superego, repositório de códigos morais e padrões de condutas, é uma espécie de censor das funções do ego. Baseia-se nas normas morais que se fixam nos primeiros anos de vida a partir da interiorização do superego dos próprios pais. É considerado o herdeiro do complexo de Édipo, como explica Kusnetzoff Na verdade, o Superego nasce por ação da última grande proibição exercida pelos pais e pela cultura sobre os desejos da criança: seus desejos incestuosos. Assim, o Ego e o Id, que antes se dirigiam aos objetos exteriores e concretos, depois da constituição do Superego tomarão a este como objeto. Isto quer dizer que aos objetos exteriores, de agora em diante, chegará, sim, a energia pulsional intermediada pelo Ego, mas “fiscalizada”, permitida ou proibida, pelas prescrições e valores inscritos no Superego (KUSNETZOFF, 1986: 133). Obviamente, os três sistemas estão em constante interrelação, sendo que a saúde mental depende em muito da força e da flexibilidade do ego. Daí percebe-se a grande vantagem de se fazer análise, pois quanto mais conteúdos se tornarem conscientes, melhor o sujeito poderá se expressar de acordo com seus reais objetivos e vontades, não ficando à mercê de teores inconscientes, que muitas vezes escapam e vêm à frente dos atos e falas da pessoa. Sendo assim, o autoconhecimento profundo é uma das consequências do processo psicanalítico, pois ao fortalecer o ego, o indivíduo torna-se independente das excessivas e severas preocupações do superego e tem aumentada a sua capacidade de reconhecer e controlar o material anteriormente reprimido ou oculto no id. I. 2 – Fases do desenvolvimento psicossexual O conhecimento psicanalítico da infância foi elaborado, num primeiro momento, por meio da análise de conteúdos externados por pacientes adultos, sendo confirmado e estruturado posteriormente pela observação direta de crianças (BLOSS, 1998: 4). Deste modo, antes de Freud, a sociedade acreditava que o sexo começava apenas na puberdade, sendo impensável que a inocência e pureza das crianças pudessem vir acompanhadas de fantasias, desejos e prazeres de ordem sexual (KHAN, 2007: 59). Mas, afinal, o que é a sexualidade para Freud? Segundo Laplanche, Sexualidade não designa apenas as atividades e o prazer que dependem do aparelho genital, mas toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.), e que se encontram a título de componentes na chamada forma normal do amor sexual (LAPLANCHE, 2008: 476). Assim, a libido, energia sexual por excelência, está presente desde que o bebê nasce. Ela evolui, diminui, aumenta, desloca-se e sofre transformações por toda a vida do individuo, mas principalmente durante as cinco fases do desenvolvimento psicossexual (oral, anal, fálica, latência e genital). Para além, Freud utiliza o termo fixação para descrever o que ocorre quando uma pessoa não progride normalmente de uma fase para outra, permanecendo excessivamente envolvida num determinado estágio e na sua característica forma de satisfação infantil do prazer. I. 2. 1 – A fase oral A fase oral, primeira da evolução libidinal, compreende o período em que a fonte corporal das excitações pulsionais localiza-se na zona bucal, envolvendo lábios, língua e mais tarde os dentes. A pulsão básica do bebê é simplesmente receber alimento e satisfazer as necessidades de fome e sede. No entanto, o movimento de sugar também traz enorme prazer à criança, que logo aprende a não depender apenas do seio materno ou mamadeira para sua satisfação. O polegar, a fralda, a chupeta tornam-se, também, fontes muito prazerosas. É normal que os adultos mantenham algum interesse nos prazeres orais, como beber e comer. Entretanto, quando hábitos orais são excessivamente utilizados para aliviar a ansiedade, dizemos que houve fixação na fase oral. I. 2. 2 – A fase anal A fase anal, a partir do segundo ano de vida, engloba o período em que as crianças geralmente aprendem a controlar o esfíncter anal e a bexiga. O treinamento higiênico ministrado pelos pais estimula o interesse natural na criança pela sua urinação e defecação, entendidas como produtos elaborados por ela mesma e, portanto, muito valiosos. Mas, tal fase gera muita confusão pois, se por um lado a criança é elogiada pelos pais quando controla suas necessidades fisiológicas, por outro, paira a ideia de que a higiene íntima é suja e deve permanecer em segredo. Adultos fixados na fase anal são excessivamente obstinados e disciplinados. I. 2. 3 – A fase fálica e o complexo de Édipo A fase fálica, iniciada a partir do terceiro ano de vida e concentrada nos genitais, conscientiza as crianças de suas diferenças sexuais. Aqui, pela primeira vez, ao estimular a zona genital, a criança sente prazer, que em sua mente está relacionado com a proximidade física dos pais. É chamada de fálica por Freud tendo em vista a primazia do pênis em sua teoria. Nesta fase, a criança enfrenta o complexo de Édipo, que ocorre de modo diferenciado entre meninos e meninas. Enquanto os meninos renunciam à mãe por medo de serem castrados pelo pai, as meninas, ao notarem as diferenças anatômicas, já se sentem castradas, o que gera sentimentos de inferioridade, denominados pelo autor como inveja do pênis. O complexo de Édipo Fundamentando-se na escuta analítica de seus pacientes, Freud concluiu que a criança, por volta dos quatro anos, apaixona-se pelo genitor do sexo oposto e rivaliza pelo amor deste com o genitor do mesmo sexo. Desde modo, “os meninos sentem o desejo inconsciente de se livrar do pai e substituí-lo como amante da mãe e as meninas carregam o desejo inconsciente de eliminar a mãe e substituí-la como amante do pai” (KAHN, 2007: 85). Freud chamou este conflito de complexo de Édipo, nome do herói trágico na peça elaborada por Sófocles, que mata o pai e depois casa-se coma mãe, sem conhecimento algum de que sejam seus pais (FADIMAN e FRAGER, 2004: 39). De acordo com Kusnetzoff, “o importante a reter será que, desde que todo ser humano deve sua origem a dois seres humanos chamados Pai e Mãe, não haverá nada passível de escapar a esta triangulação que constitui o âmago essencial do conflito humano” (KUSNETZOFF, 1986: 64, grifo nosso). Nesta época, as sensações afloradas nas crianças não têm a ver com ternura, mas com corpo, desejo, fantasia e prazer. Como explicou Nasio O Édipo é um imenso despropósito: é um desejo sexual próprio de um adulto, vivido na cabecinha e no corpinho de uma criança de quatro anos e cujo objeto são os pais. A criança edipiana é uma criança alegre que, em toda inocência, sexualiza os pais, introduzindo-os em suas fantasias como objetos de desejo e imitando sem pudor nem senso moral seus gestos sexuais de adultos. É a primeira vez na vida que a criança conhece um movimento erótico de todo seu corpo em direção ao corpo do outro (NASIO, 2007; 10). Obviamente, toda esta excitação gera muita angústia na criança que, apesar do prazer e euforia, sente-se perdida e completamente desamparada no medo de ver seu corpo desgovernar-se sob o ardor dos impulsos e no perigo de sofrer as consequências da temida Lei do incesto (NASIO, 2007: 10). Resumidamente e com muita propriedade, diz Nasio O Édipo é a experiência vivida por uma criança de cerca de quatro anos que, absorvida por um desejo sexual incontrolável, tem de aprender a limitar seu impulso e ajustá-lo aos limites de seu corpo imaturo, aos limites de sua consciência nascente, aos limites de seu medo e, finalmente, aos limites de uma Lei tácita que lhe ordena que pare de tomar seus pais por objetos sexuais. Eis então o essencial da crise edipiana: aprender a canalizar um desejo transbordante. […] O Édipo é também a fantasia que essa crise molda no inconsciente infantil. Com efeito, a experiência vivida do terremoto edipiano fica registrada no inconsciente da criança e perdura até o fim da vida como uma fantasia que definirá a identidade sexual do sujeito, determinará diversos traços de sua personalidade e fixará sua aptidão a gerir os conflitos afetivos. […] o Édipo, no entanto, é mais que uma crise sexual e uma fantasia que modela o inconsciente; é também um conceito, o mais crucial dos conceitos psicanalíticos. Diria que é a própria psicanálise, uma vez que o conjunto dos sentimentos que a criança experimenta durante essa experiência sexual que chamamos de complexo de Édipo é, para nós psicanalistas, o modelo que utilizamos para pensar o adulto que somos (NASIO, 2007: 12-13, grifo nosso). Como já dissemos, o Édipo ocorre de forma diferenciada entre meninos e meninas. Entretanto, não é nosso objetivo aprofundar este tema. Apenas ressaltamos que, ao final, todo o complexo é recalcado, cabendo ao superego sua primeira tarefa de manter este conflito perturbador fora da consciência e proteger a criança de expressá-lo em ações (FADIMAN e FRAGER, 2004: 39). I. 2. 4 – O período de latência Após enfrentar a eclosão dos impulsos sexuais na fase anterior, o psiquismo infantil perpassa um determinado período de calmaria, em que as pulsões são agora deslocadas para fora do ambiente familiar. Iniciando aos cinco ou seis anos e durando até a adolescência, a latência é o período da escolarização, do contato social com colegas e professores. Aqui têm início as atitudes do ego, como vergonha, pudor, repugnância e moralidade. I. 2. 5 – A fase genital A fase genital, que compreende a adolescência, é marcada pelo retorno da energia libidinal aos órgãos genitais e carrega a difícil tarefa de resolver o complexo de Édipo. De acordo com Kahn, tal “[…] resolução pode assumir muitas formas, mas uma coisa parece ser universal: os adolescentes devem se libertar do seu apego erótico ao progenitor e descobrir um meio de dirigir essa energia para pessoas novas e apropriadas. Uma adaptação saudável requer o estabelecimento de vínculos com essas pessoas novas, de tal modo que não haja o peso de uma fixação inconsciente no progenitor” (KAHN, 2007: 105). Para Freud, a resolução ideal do complexo de Édipo, raramente alcançada, levaria a um relacionamento heterossexual saudável, onde afeição e desejo pudessem ser reunidos e dirigidos a uma mesma pessoa, ou seja, seria possível amar quem desejasse e desejar quem amasse (KAHN, 2007: 106). Mas, para que isso aconteça, o complexo há de ser totalmente eliminado e não apenas recalcado. E, como já dissemos, essa meta dificilmente é alcançada. Geralmente, na melhor das hipóteses, a resolução do Édipo deixa difíceis marcas psicológicas no indivíduo, levando-o ao desenvolvimento de sintomas neuróticos. I. 3 – Neuroses As neuroses são produtos de conflitos pulsionais, em que a satisfação fica proibida pela censura do superego (HERRMANN, 1994: 71), pelos mecanismos de defesa do ego, pela pulsão de morte que opera contra os desejos eróticos e também pelo ambiente. Deste modo, segundo Kahn A neurose é causada pelo recalque dos desejos sexuais inaceitáveis. O recalque não foi suficientemente completo para proteger a pessoa da culpa inconsciente, daí a aflição da neurose. Os desejos encobertos estão sob pressão, buscando expressão, e encontram essa expressão nos sintomas neuróticos. Numa tentativa de ao menos evitar a culpa consciente, o desejo incompletamente recalcado se disfarça, para poder passar pela censura que, antes de tudo, o recalcou. Portanto, o desejo deve ser decodificado para que revele seu significado inconsciente (KAHN, 2007: 203). Assim, a neurose, paradigma do adoecer psíquico na psicanálise freudiana, nos revela que o inconsciente sempre acha um modo de se manifestar. Por mais que tentemos permanecer alheios aos conteúdos recalcados, os sintomas neuróticos estarão sempre operantes, lembrando-nos de sua existência. Finalizando, citemos Loparic, em artigo que resume muito bem a dinâmica da teoria freudiana, que afirma o Complexo de Édipo como imprescindível para a formação de neuroses […] é possível dizer que o exemplar principal da disciplina criada pela pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de Édipo, a criança na cama da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que estão relacionadas à administração de pulsões sexuais em relações triangulares. A generalização-guia central é a teoria da sexualidade, centrada na idéia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré-genitais e genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré-genitais. O modelo ontológico do ser humano, explicitado na parte metapsicológica da teoria, comporta um aparelho psíquico individual, movido por pulsões libidinais, e outras forças psíquicas determinadas por leis causais. A metodologia é centrada na interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação. Os valores epistemológicos básicos são os das ciências naturais, incluindo explicações causais, e o valor prático principal é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais, do tipo libidinal (LOPARIC, 2007: 29). I. 4 – Paradigma Pulsional Uma diferença fundamental existente entre Freud e Winnicott está na importância que os autores creditam ao desenvolvimento intrapsíquico ou à relação interpessoal. Analisemos, agora, a visão do primeiro. Como vimos, “Freud considerava que, basicamente, o ser humano é um ser de impulsos e pulsões, os quais buscam descarga e satisfação por meio de todo um complexo sistema de investimentos e de desvios, cujo conjunto é exatamente o funcionamento psíquico” (MEZAN, 1996: 350). Deste modo, o desenvolvimento humano se dá por meio do conflito de pulsões que, à medida que são satisfeitas ou recalcadas, formam a personalidade do indivíduo. Tudo ocorre “dentro” da pessoa, de forma intrapsíquica. Freud, pensando sobre a questão das pulsões, reelabora seu pensamento de diversas formas, mas “finalmente chega a um modelo que se consolidará como sua hipótese definitiva, na qual atuam duas pulsões básicas e irredutíveis e subjacentes a todo vivente. Duas Pulsões ou Princípios que atuariam ora amalgamadas, ora em oposição: a Pulsão de Vida e a Pulsão de Morte” (HANNS, 1999: 39). A pulsão de vida, também chamada por Freud de Eros, abrange tanto a libido quanto a pulsão de autoconservação e tem a finalidade de construir e conservar as unidades vitais. Procura manter a unidade do organismo e sua existência (LAPLANCHE, 2008: 414). Já a pulsão de morte carrega tanto a agressividade humana, voltada ao exterior, quanto a autodestrutividade do indivíduo, que significa a redução completa das tensões, ou seja, a volta ao estado anorgânico (LAPLANCHE, 2008: 407), sem vida. Explica Freud sobre a dinâmica dessas pulsões Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivalia a dizer que, assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos (FREUD, 2006 [1930]: 122). Portanto, para a Psicanálise ortodoxa, essas duas pulsões estariam na base dos fenômenos vitais, configurando todos os conflitos que põem em movimento o desenvolvimento (intra)psíquico do indivíduo. Vale lembrar, no entanto, que o próprio Freud considerava o caráter especulativo desse modelo de funcionamento, afirmando a possibilidade de ulteriores pesquisas que poderiam vir a transformá-lo. Passemos, agora, ao estudo do pensamento desenvolvido por Winnicott.
CAPÍTULO II – WINNICOTT E O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DO
AMADURECIMENTO PESSOAL
Winnicott, observando simultaneamente psicóticos (durante a prática psicanalítica) e o relacionamento entre mães e seus bebês (durante a prática pediátrica), formulou uma teoria do amadurecimento pessoal normal, considerada a ideia central e fundamental de seu pensamento. Diferentemente de Freud, não a sistematizou (trabalho hoje realizado com grande êxito por autores brasileiros, como Elsa Oliveira Dias e Zeljko Loparic), pois tinha grande receio de que em torno dele fossem criados dogmas vazios, impessoais e afastados da experiência. Daí a importância dos acadêmicos atuais, que disseminam os valorosos ensinamentos winnicottianos, tornando-os mais acessíveis à comunidade psicanalítica. Diante de suas constatações, Winnicott notou que algumas aquisições do processo do amadurecimento (consideradas como já alcançadas pelo próprio fato de nascer pelas teorias vinculadas à ciência determinista causal como, por exemplo, a psicanálise freudiana), são tarefas importantíssimas a serem conquistadas pelo bebê e não ocorrem apenas com o desenrolar do tempo. E mais, falhas graves neste processo podem impedir que o ser humano se constitua enquanto tal, causando, por vezes, danos irreparáveis ao psiquismo, como no caso das psicoses. Deste modo, segundo o autor, o relacionamento mãe[2]-bebê e a evolução pelos estágios iniciais da vida são premissas fundamentais para o amadurecimento normal, sendo que falhas neste período podem levar à psicose, esta sim, considerada o paradigma do adoecer humano (LOPARIC, 2001: 10). Ressaltamos que a grande contribuição winnicottiana reside exatamente na explicação de fenômenos ocorridos no desabrochar da vida, pois ao se deparar com certos distúrbios psíquicos precoces, Winnicott não encontrava suporte teórico adequado nas teorias de Freud e Melaine Klein. Entretanto, veremos que o autor nunca descartou a importância do conflito edípico, mas apenas não o concebeu – e nem as neuroses – como o núcleo do adoecer psíquico. Tentaremos agora esclarecer, pouco mais, alguns dos principais conceitos winnicottianos. II. 1 – Teoria do Amadurecimento Pessoal Winnicott baseou todo o seu estudo na observação da natureza humana, entendida pelo autor como “quase tudo o que possuímos” (WINNICOTT, 1990: 21) e que pouco se modificou durante toda a história da humanidade. Deste modo, a natureza humana é a mesma para brancos, índios ou negros, brasileiros, hindus ou japoneses, ou seja, é a mesma para todos os seres humanos, desde os tempos mais remotos. Não perdendo de vista esta amplitude, a teoria do amadurecimento está fundada em duas questões centrais: a tendência inata ao amadurecimento e a existência contínua de um ambiente facilitador (DIAS, 2003: 93). Todo ser humano é herdeiro de uma tendência inata à integração numa unidade, ao longo de um processo de amadurecimento (DIAS, 2003: 94). Ao nascer, segundo Winnicott, o bebê ainda não é dotado de psiquismo, que vai se formando a partir de suas sensações corporais. Enquanto o corpo vivo do bebê respira, mama, evacua, chora, se move, é embalado pela mãe, a psique retém cada movimento como memória, ainda que rudimentar. Este trabalho de atribuir um pequeno significado às sensações do corpo é a raiz do sentimento de si-mesmo e de unidade, o que confere a futura concepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo (CEMBRANELLI, 2010: 62, grifo nosso). Por isso, a existência, para Winnicott, é essencialmente psicossomática, pois a integração psique-soma numa unidade representa conquista fundamental para o desenvolvimento humano e constitui a base da saúde psíquica. Adequadamente, diz Ariadne Moraes que o amadurecimento […] se caracteriza por um desenrolar histórico da natureza humana, orientado por essa tendência inata à integração, envolvendo fatos, situações e experiências vividas pela pessoa em sua concretude e totalidade. A premissa da qual parte – e que se torna a base de sua teoria do amadurecimento – é: um indivíduo precisa, primeiramente, constituir-se como uma pessoa para que possa relacionar-se com o outro e com a realidade externa (MORAES, 2005: 104). Portanto, o resultado desta integração numa identidade unitária permite a noção da existência do eu e do não-eu. Winnicott sugere que as crianças começam a estabelecer a integração da personalidade por volta de um ano, mas que esta integração só alcança mais estabilidade por volta dos dois ou três anos (DIAS, 2003: 254). No entanto, para que o recém-nascido possa amadurecer, faz-se urgente a existência de um ambiente cuidador e facilitador, pois apesar de inata, a tendência à integração não ocorre automaticamente, com o mero passar do tempo. Assim, os bebês que não recebem cuidados suficientemente bons não conseguem, sequer, se realizar como bebês, pois os genes não bastam (DIAS, 2003: 96). Segundo Elsa Dias, O ambiente facilitador é, no início, a “mãe suficientemente boa”. A expressão “suficientemente boa” refere-se à mãe capaz de reconhecer e atender à dependência do lactente, devido à sua identificação com ele, a qual permite-lhe saber qual é a necessidade do bebê, num dado momento, e responder a ela. […] A mãe apenas facilita um processo [amadurecimento]que pertence ao bebê. Ela é suficientemente boa porque atende, ao bebê, na medida exata das necessidades deste, e não de suas próprias necessidades, como, por exemplo, a de ser boa ou muito boa (DIAS, 2003: 133). As expressões mãe suficientemente boa e mãe devotada comum são amplamente divulgadas por toda a obra de Winnicott, referindo-se a todos os cuidados ambientais que devem ser despendidos com o bebê. Cuidados estes que, em nossa sociedade, são geralmente fornecidos pela mãe. Mas vale lembrar que em sua ausência, outra pessoa pode e deve assumir o papel de cuidador. O que se exige não é a perfeição, mas antes, a disposição e atenção às reais necessidades do recém-nascido. Outro aspecto importante na obra de Winnicott, quando se refere aos estágios iniciais, é a conceituação de ambiente. Levando em conta o ponto de vista do bebê, o ambiente somente é externo da perspectiva do observador, pois no início da vida, “o ambiente é subjetivo e, neste sentido, não é externo nem interno. É somente no decorrer do processo de amadurecimento que a criança poderá chegar ao sentido de externalidade” (DIAS, 2003: 66, grifo nosso). Deste modo, o nenê sente o ambiente e os objetos como prolongamentos dele mesmo; por exemplo, o seio da mãe é o bebê. É nesse sentido que falamos em ambiente subjetivo e objeto subjetivo. Finalizando este tópico, enfatizamos que Winnicott percebe o processo de amadurecimento como uma longa jornada, que tem início em algum momento após a concepção e continua por toda a vida do indivíduo até a sua morte natural, podendo ser desdobrado em estágios, os quais veremos a seguir. II. 2 – Estágios do Amadurecimento Pessoal Cada estágio do amadurecimento apresenta tarefas e conquistas específicas que, para serem alcançadas, dependem da provisão ambiental (MORAES, 2005: 107). No entanto, o processo é sempre contínuo, com os estágios se entrelaçando um no outro, em constante interrelação. Salienta Elsa Dias Como a apresentação sequencial dos estágios do amadurecimento e o próprio termo “estágio” podem induzir à ideia de etapas estanques, cada uma sucedendo à outra, é preciso salientar que, a despeito de ser assim apresentado, o processo não é linear. Primeiro, porque, na vida, os vários estágios, com suas respectivas tarefas, se superpõem parcialmente; segundo, porque, na concepção winnicottina, amadurecimento não é sinônimo de progresso: amadurecer inclui a possibilidade de regredir a cada vez que a vida exige descanso, em momentos de sobrecarga e tensão, ou para retomar pontos perdidos (DIAS, 2003: 101, grifo nosso). Winnicott descreve o crescimento emocional transcorrendo em quatro etapas: (1) estágios primitivos de dependência absoluta; (2) estágios iniciais de dependência relativa; (3) estágio rumo à independência, (4) estágios de independência relativa. Notemos que os termos são relacionais, ou seja, o amadurecimento implica, sempre, na existência e na presença de um outro ser humano (DIAS, 2003: 98). Dentre estes estágios, a ênfase recai nas aquisições primitivas, onde o bebê vive em estado de dependência da mãe, pois é neste período que estão sendo formados os alicerces da personalidade e da saúde psíquica (DIAS, 2003: 99). Falhas graves neste momento impedem que o indivíduo se constitua como um eu separado do não-eu, o que, por sua vez, pode desencadear a psicose. II. 2. 1 – Estágios primitivos de dependência absoluta Em alguma ocasião, após a concepção, inicia-se o processo de amadurecimento, no qual o indivíduo passa a ser e ter de continuar a ser. A partir deste momento, nada daquilo que o ser humano vivencia é perdido. Tudo significa experiência. Logo ao nascer, o bebê vivencia o estado de não-integração, ou seja, ele ainda não é uma unidade coesa. Não integrado, o bebê está como que espalhado, desorganizado, uma mera coleção de fenômenos sensório-motores reunidos pelo suporte do ambiente. Sendo assim, no estágio da dependência absoluta, o bebê depende inteiramente da mãe-ambiente para ser. Não há aqui dois indivíduos, mas uma relação sui generis que pode ser chamada dois-em-um, anterior à oposição entre o eu e o não-eu (LOPARIC, 1997: 45). Deste modo, “a unidade é a dupla mãe-bebê, sendo que a mãe é sentida pelo lactente como parte dele, ou seja, como objeto subjetivo” (DIAS, 2003: 98, grifo nosso). O desenvolvimento, inicialmente, é interpessoal e não intrapsíquico, como sugerira Freud, mesmo porque, para Winnicott, o próprio psiquismo só vai se formando a partir das experiências somáticas realizadas pelo bebê, com a sustentação do ambiente cuidador. É somente na relação com o outro, que o lactente construirá sua identidade unitária. Desde cedo o bebê responderá ao contato do ambiente. A questão que se coloca é: de onde parte o movimento do contato? Ele decorre da necessidade do bebê (movimento espontâneo) ou é uma reação a alguma mudança no ambiente (movimento reativo)? No primeiro caso, as experiências são pessoais, enquanto no segundo, são intrusivas. Diz Elsa Dias Se o contato é feito a partir do gesto espontâneo do bebê, o fato dele estar vivo e a própria experiência são sentidos como reais, e o acúmulo dessas experiências pessoais começa a integrar-se na personalidade; quando, entretanto, a reação à intrusão subtrai algo da sensação de um viver verdadeiro, esta só pode ser recuperada por meio do retorno ao isolamento, à quietude (DIAS, 2003: 160). Vejamos como ocorre a experiência. O bebê lança um gesto espontâneo: estou precisando de… Neste momento, a mãe põe o seio na posição de ser encontrado. Então, ocorre um sentimento para o bebê: era disto que eu precisava! Assim, “quando a mãe responde de maneira adaptativa ao gesto espontâneo, o bebê sente como se o mamilo e o leite fossem resultados de seu próprio gesto: ele faz a experiência de criar aquilo que encontra” (DIAS, 2003: 170). A este fenômeno, Winnicott denominou ilusão de onipotência: o bebê tem a ilusão de que ele mesmo criou aquilo de que necessitava, sem nenhuma ajuda do ambiente cuidador. Manter a ilusão de onipotência, preservando o mundo subjetivo do bebê, protege sua continuidade de ser e evita que o bebê seja surpreendido com um sentido de realidade (externa para o observador) para o qual não está preparado (DIAS, 2003: 173). Assim, vivenciar a ilusão de onipotência é o primeiro registro que possibilita, no futuro: (1) a criação do mundo subjetivo em que habitamos; (2) a intervenção saudável no mundo da realidade compartilhada; (3) o livre trânsito do mundo subjetivo para o mundo da realidade compartilhada e vice-versa. Deste modo, para que tenhamos essa potência, de construir nosso próprio mundo interior, fecundo de riquezas subjetivas, e de mantê-lo em conexão com o mundo da realidade compartilhada, é preciso, primeiramente, que tenhamos a ilusão de que somos nós que criamos tudo àquilo de que necessitamos. Aproveitando o exemplo anterior, explicamos que o aleitamento foi muito privilegiado por Winnicott, que utiliza a expressão primeira mamada teórica para referir-se às primeiras experiências de amamentação, ocupando os três ou quatro primeiros meses de vida do lactente. Este período permite o início do contato com a realidade e o começo da constituição de um si-mesmo que, futuramente, irá integrar-se numa unidade. O mais importante aqui é a qualidade do contato humano e a realidade de experiências que estão sendo providas ao bebê por meio do ato de amamentar (DIAS, 2003: 165). Ainda neste estágio, o bebê está envolvido com três tarefas básicas: integração no espaço e no tempo (partindo do estado de não-integração, o bebê vai realizando experiências de integração no tempo e no espaço); personalização (alojamento gradual da psique no corpo); realização (início das relações objetais). À medida que estas tarefas estão sendo realizadas, outra está se processando: a construção do si-mesmo como identidade (DIAS, 2003: 166-167). Tais tarefas ocorrem simultaneamente, sem uma ordem específica. Têm caráter fundamental, já que sua base é ontológica – sem essas quatro tarefas, o sujeito não se estrutura. Derivam da necessidade essencial de ser e continuar a ser. A forma como se desenrolam definem a personalidade do indivíduo e denotam maior ou menor saúde psíquica. Para resolver essas tarefas iniciais, o bebê conta, de propriamente seu, além da tendência inata ao amadurecimento, com a criatividade originária que, segundo Winnicott, é inerente à natureza humana, pois “cada ser humano cria o mundo de novo e começa seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento” (WINNICOTT, 1988: 130). Explica-nos Safra que A criatividade é compreendida por ele [Winicott] como a habilidade de criar o mundo. A criança está pronta para encontrar o mundo de objetos e ideias, e a mãe apresenta o mundo ao bebê. Por sua grande adaptação, a mãe possibilita que o bebê experimente a onipotência, para que ele realmente encontre o que criou. Cada bebê começa com uma nova criação do mundo (SAFRA, 2005:37). Então, manter o bebê na ilusão de onipotência, ou seja, na ilusão de que ele cria tudo àquilo que lhe é necessário, permite o exercício da criatividade originária e, no futuro, possibilitará ao indivíduo dotar o mundo de significado pessoal. A primeira tarefa, temporalizar e espacializar o bebê, que habita inicialmente um mundo subjetivo, significa cuidar para que o tempo e espaço que regem tal mundo sejam também subjetivos e que preservem sua continuidade de ser, sem intrusões do ambiente externo. Para tanto, são indispensáveis a confiabilidade e a previsibilidade dos cuidados maternos: a mãe segue apresentando ela mesma e o mundo ao bebê, em pequenas doses e apenas quando lançados os gestos espontâneos. Então acontecem as pequenas integrações, com os gestos espontâneos sendo acolhidos e respondidos pela mãe e o bebê encontrando o objeto subjetivo, criado por ele mesmo na ilusão de onipotência. A repetição dessas experiências pelo bebê permitem que os períodos em estado de não-integração, aos poucos, diminuam. Como já explicamos anteriormente, para Winnicott, a existência é psicossomática. No entanto, inicialmente, soma (constituído pelo corpo e anatomia viva inicial do bebê que respira, evacua, se move, sente fome, sede, frio, calor, etc, mais o corpo pessoal daquele bebê, já elaborado e sendo habitado – diferente, portanto, do corpo do anatomista) e psique (que, primeiramente, é uma elaboração imaginativa das funções corpóreas e organiza as sensações do lactente) ainda não estão reunidos. Somente constituirão uma unidade se tudo fluir satisfatoriamente bem no processo de amadurecimento. (DIAS, 2003: 208). A esta tarefa, de alojamento da psique no soma, dá-se o nome de personalização. Para que ocorra, é necessária a presença e participação ativa da mãe, que segura, sustenta e reune o bebê, tanto em seus braços como em seu olhar. Chegamos à terceira tarefa, realização, que compreende o início das relações objetais e do contato com a realidade. Winnicott é um teórico que atribui vários sentidos à realidade, os quais são construídos de acordo com o momento vivenciado pelo indivíduo. Assim, o sentido de realidade será um, para o bebê no estágio de dependência absoluta, será tantos outros, para o nenê no estágio de dependência relativa e, assim, sucessivamente. Isso é sinal de saúde: atribuir à realidade um sentido peculiar, de acordo com o processo de amadurecimento pessoal. Neste primeiro estágio, onde pensamos numa unidade indiferenciada mãe-bebê, em que este vive em total dependência dos cuidados maternos e sem maturidade para saber da existência do mundo externo, o único sentido possível de realidade é a realidade do mundo subjetivo. É aqui que o bebê lança seus gestos espontâneos e tem a ilusão de onipotência de que é capaz de criar os próprios objetos que precisa para satisfazer suas necessidades. Portanto, também aqui o objeto é compreendido como objeto subjetivo. O objeto subjetivo é confiável e previsível. Aparece somente quando o bebê necessita, desaparecendo logo depois. O encontro do objeto subjetivo e, consequentemente, a oportunidade de criar e vivenciar uma experiência completa, sentindo-a como real, só deve ocorrer nos estados excitados do lactente, ou seja, quando sente uma necessidade e lança um gesto espontâneo. Se a mãe oferece algo quando o nenê está tranquilo, não lhe faz sentido algum. Deste modo, a tarefa da mãe suficientemente boa, nesta etapa, é apresentar o mundo ao bebê em pequenas doses. Quando a mãe falha, o bebê passa a ter menos iniciativas e se retrai, lançando menos gestos. Se a falha é constante e grave (casos celebrex em que a mãe tem um comprometimento psíquico sério, como num episódio de depressão pós-parto, por exemplo), ocorre o trauma, entendido como a imposição do ambiente seguida de uma reação por parte do lactente. Neste caso, o bebê, além de não vivenciar a experiência, não retorna ao estado de não-integração mas, sim, de desintegração. Aqui está a etiologia das agonias impensáveis e das psicoses. Ao longo de todas as tarefas apresentadas, dá-se a partida para a constituição do si-mesmo primário do nenê, que apenas se consolidará num estágio mais à frente. A cada vez que o bebê realiza uma experiência real e completa (qual seja: parte do estado de não-integração; lança um gesto espontâneo num momento de excitação; encontra o objeto subjetivo, criado por ele mesmo na ilusão de onipotência; satisfaz-se; retorna ao estado de não-integração), ele vivencia breves momentos de integração. Essas “são as primeiras e inaugurais experiências de si mesmo, de ser como identidade. É esse sentido de ser que faz o bebê sentir-se não apenas real mas, também, integrado numa unidade incipiente, que é o si mesmo primário” (DIAS, 2003: 218 e 219). Esses pequenos momentos de integração, experimentados pelo bebê desde seu nascimento, evoluirão com o tempo e por conta da constância dos cuidados maternos, até que o si-mesmo seja finalmente integrado numa identidade unitária. Portanto, a resolução dessas quatro tarefas (temporalização e espacialização; personalização; realização; construção do si-mesmo primário) são de fundamental importância para a jornada do amadurecimento, pois estabelecem a base da personalidade e da saúde psíquica do indivíduo. Conforme Elsa Dias Ao falar de saúde psíquica, Winnicott está se referindo, sobretudo, ao fato de uma criança ter resolvido as tarefas iniciais de maneira satisfatória e ter conseguido alcançar o estatuto unitário, que é condição básica para que a independência relativa comece a se estabelecer. A partir deste ponto, estando constituídos os alicerces, o indivíduo pode vir a sofrer de distúrbios psíquicos, mas não padece mais o risco de tornar-se psicótico (DIAS, 2003: 100, grifo nosso). No mais, para que haja sucesso nessas conquistas, são necessários cuidados maternos específicos, como o holding (que compreende o modo como a mãe segura e sustenta tanto o bebê como o ambiente a sua volta) e o handling (aspecto mais específico do segurar; é o manejo da mãe relativo aos cuidados físicos com o bebê). Sendo assim, a priori, a mãe adapta-se absolutamente às necessidades do bebê. Winnicott denomina este estado de preocupação materna primária, que configura uma condição psicológica muito especial, de sensibilidade aumentada (DIAS, 2003: 134). Explica o autor que, […] ao chegar ao fim da gravidez e nas primeiras semanas depois do nascimento de uma criança a mãe está preocupada com o (ou melhor, “devotada ao”) cuidado de seu nenê, que de início parece ser parte dela mesma; além disso, ela está muito identificada com o nenê e sabe muito bem como é que o nenê está se sentindo (WINNICOTT, 1983: 81). Quando, por outro lado, o padrão ambiental é marcado por atitudes invasivas, “o bebê não deixa de construir uma identidade, mas esta será falsa, artificial, pois será edificada defensivamente, visando proteger o si-mesmo verdadeiro e espontâneo” (DIAS, 2003: 220). Deste modo, o falso self ou “o falso si-mesmo é uma organização defensiva que tem por objetivo proteger o verdadeiro si-mesmo da inconfiabilidade e da imprevisibilidade ambiental. Apoiado nessa falsa saúde, a pessoa poderá realizar todos os tipos de experiências, contudo, elas irão se revelar sem valor, pois o sentimento de inutilidade, próximo da ideia de que a vida não vale a pena ser vivida, será predominante” (MORAES, 2005: 122-123). Ilustrando, conta Elsa Dias sobre um paciente Um homem, de aproximadamente quarenta anos, que padece de uma descrença que corrói qualquer realidade, disse-me: “Fui socializado antes de me tornar uma pessoa. Sei muito bem o que se espera de mim e cumpro meus deveres com exatidão, mas nada, jamais, fez qualquer sentido. Não me sinto real, não sinto o mundo ou os outros reais. Não tenho história. Não sei por que vivo ou continuo vivendo” (DIAS, 2003: 123). Percebemos claramente neste episódio o que sobrevém nos casos em que o mundo não é apresentado adequadamente ao bebê quando seus gestos são lançados: não ocorre a experiência, não há o encontro com o objeto subjetivo e não se constrói o sentimento de ser real. Então, erige-se o falso self como defesa do verdadeiro si-mesmo que não foi plenamente integrado. Resumindo o estágio de dependência absoluta com assertividade, diz Conceição Araújo […] de acordo com a teoria do amadurecimento pessoal, o ser humano parte de um estado de não integração inicial, com tendências herdadas para o amadurecimento e vai precisar de outro ser humano para isso acontecer. Ele vai precisar de uma mãe-ambiente que se identifique com ele e o ajude a integrar-se, ou seja, perceber-se no tempo e no espaço, reconhecer-se em seu corpo e na realidade, permitindo que ele viva uma experiência de onipotência que é importante, no início, para afastar a ameaça de falta de controle sobre o que se apresenta. A mãe, nessa fase, será um objeto subjetivo e será parte do bebê, caracterizando um estado de “dois-em-um”. A integração, que se inicia pela elaboração imaginativa das funções do corpo, vai se ampliando de acordo com os momentos do amadurecimento do bebê, abarcando também o seu relacionamento com o mundo externo (ARAÚJO, 2003:41). Por todo o exposto, a herança do estágio de dependência absoluta, bem sucedido, é o início da integração num estatuto unitário, condição primordial para que a jornada do amadurecimento prossiga. Lembrando-se, no entanto, da imaturidade do bebê que vivencia esta etapa, finalizada por volta de quatro a seis meses, tal conquista não tem caráter definitivo, podendo ser perdida diante de ulteriores falhas dos cuidados ambientais. II. 2. 2 – Estágios iniciais de dependência relativa Tal período é caracterizado pela passagem da adaptação absoluta da mãe às necessidades de seu bebê a um estado de desadaptação gradual, onde a genitora naturalmente emerge do estado de preocupação materna primária e passa a cometer pequenas falhas, toleráveis pelo nenê e necessárias ao rompimento da unidade indiferenciada mãe-bebê (DIAS, 2003: 228). Elsa Dias (2003) sistematiza a dependência relativa, dividindo-a nas seguintes etapas: desilusão ou desmame; transicionalidade; uso do objeto; estágio do eu sou. A desadaptação gradual da mãe dá início ao processo de desilusão do bebê. Deste modo, aos poucos, o bebê vai perdendo a ilusão de onipotência. Com o tempo, a criança perceberá que não é ela quem cria, efetivamente, o mundo e que a existência deste independe e é anterior e a ela. No entanto, o sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente, e pode continuar a sê-lo, não desaparece, permitindo que a criatividade e espontaneidade permaneçam. As pequenas falhas do cuidado materno, características da desadaptação gradual, impulsionam o uso da mente no bebê, que vai adquirindo a capacidade de espera. Mas ainda falamos de uma mente pré-representacional, que vem da previsibilidade do ambiente, da familiaridade com sensações somáticas e da somatória das experiências significativas que o bebê viveu até agora. O bebê vai construindo o esquema “se… então”, que lhe assegura certo conforto. Exemplificando, “se eu escuto os passos da minha mãe, então ela vem me pegar no colo”. Por volta dos oito ou dez meses ocorre um fenômeno, desde sempre observado pelas mães: o apego do bebê a certos objetos, que ele, por assim dizer, elege. São os denominados objetos transicionais: o ursinho de pelúcia, a fralda, a ponta do cobertor, etc. A sistematização dos fenômenos e objetos transicionais, realizada por Winnicott, foi considerada por muito tempo sua mais criativa e inovadora contribuição teórica. Os objetos transicionais exercem uma função indispensável de amparo, pois substituem a mãe que, agora, se desadapta gradualmente e desilude o bebê. Ocorre uma pequena quebra na onipotência, já que algumas características da realidade externa começam a introduzir-se na experiência. Se na fase da dependência absoluta ocorre a identificação primária com o objeto (ou seja, o bebê é o objeto), nesta, o bebê passa a possuir o objeto, o que lhe permite, gradualmente, abandonar o controle mágico e onipotente característico da relação com os objetos subjetivos (DIAS, 2003: 236). Deste modo, a transicionalidade marca o início da desmistura, da quebra da unidade indiferenciada mãe-bebê. O lactente, ainda criador de mundos, cria a área inaugural de separação entre ele e a mãe: o espaço potencial, onde encontramos os objetos ou fenômenos transicionais. A transicionalidade leva o bebê a um novo sentido de realidade. Pensamos em transição da realidade do mundo subjetivo do bebê, permeado de confiança e característico da dependência absoluta, para a realidade do mundo externo compartilhado, que se apresenta durante a dependência relativa. O espaço potencial configura um terceiro espaço, um mundo entre as duas realidades, um lugar de experimentação. Se o bebê tiver as condições ambientais satisfatórias que lhe possibilitem criar este novo mundo, esta área da transicionalidade será ampliada para o exercício do brincar e, no decorrer da vida, para a arte e cultura em geral. Portanto, construir a transicionalidade permitirá o trânsito saudável entre o mundo subjetivo e o mundo compartilhado, pois “os fenômenos transicionais estão exatamente no meio do caminho dessa longa jornada que vai da realidade subjetivamente concebida à realidade objetivamente percebida” (DIAS, 2003: 233). Para além, permite que o contato com a realidade externa se dê de modo criativo, ou seja, possibilita que o indivíduo recepcione os acontecimentos de acordo com a sua própria e singular maneira de ser. Lembrando que criatividade, para Winnicott, não implica em grandes realizações, mas em feitos autênticos, que demonstrem o si-mesmo do indivíduo. Caminhando no processo de amadurecimento, chegamos ao uso do objeto, estágio em que os objetos, efetivamente, podem começar a ser percebidos e usados como externos. Para tal alcance, o bebê precisa ter vivenciado satisfatoriamente os anteriores sentidos de realidade: o de ser o objeto (subjetivo), durante a dependência absoluta e o de possuir o objeto, durante a transicionalidade. A partir dessas vivências, o bebê caminhará em direção à realidade externa compartilhada, onde poderá usar os objetos, somente agora vistos de uma perspectiva objetiva (DIAS, 2003: 244). O objeto que, no início do processo de amadurecimento, é subjetivo, necessita ser expulso do si-mesmo do bebê para tornar-se externo. Explica Elsa Dias que […] é o lactente que confere ao objeto o caráter de externo. Ele o faz expulsando o objeto (subjetivo) para fora do âmbito da onipotência: algo (alguém) que faz parte do si-mesmo ou do mundo subjetivo é destacado, expulso para fora, para ser examinado e/ou atacado. Essa operação de expulsão do objeto, como não mais pertencendo ao mundo subjetivo, é denominada, por Winnicott, destruição do objeto. O objeto que é destruído pelo bebê é o objeto subjetivo. Melhor dizendo: é o caráter subjetivo do objeto que está sendo destruído. […]. A destruição primitiva ou mágica de todos os objetos é necessária para que o objeto deixe de ser parte do “eu” para ser “não-eu”, deixe de ser fenômeno subjetivo para passar a ser objetivamente percebido (DIAS, 2003: 246 e 249). Pensemos, então, na mãe como o mais importante objeto subjetivo do bebê. No caminho do amadurecimento, primeiramente, ela faz parte do bebê. Depois pode ser substituída, ainda que por pouco tempo, por um objeto transicional. E, agora, precisa ser expulsa, destruída, para que a indiferenciação mãe-bebê, aos poucos, acabe e dê lugar à estruturação do eu do bebê, separado do não-eu (entendido como tudo aquilo, inclusive a própria mãe, que é externo do ponto de vista de um observador). É preciso compreender bem o caráter desta destrutividade, que não é instintual nem permeada de raiva, mas que “desempenha um papel na criação da realidade, com o bebê colocando o objeto fora do si-mesmo, ou seja, fora do mundo subjetivo” (DIAS, 2003: 247) e, assim, construindo o sentido de externalidade. Deste modo, o objeto interno é destruído pelo bebê, mas deve sobreviver e continuar existindo, tal como antes, na realidade externa. Analisemos novamente como acontece com a mãe. O bebê passa a chutá-la ou morder seu seio, mas a mãe suficientemente boa não o retalia e nem muda suas atitudes por isso, permanecendo confiável e previsível. A mãe sobrevive e é justamente essa sobrevivência do objeto que conduz ao uso do objeto. Se o bebê pudesse dizer algo para o objeto (neste caso, a mãe), segundo Winnicott, seria “Destruí você”, e o objeto acha-se lá para receber a comunicação. A partir daí, o sujeito diz: “Alô, objeto! Destruí você. Amo você. Você tem valor para mim por sobreviver à minha destruição de você. Enquanto estou amando você, estou todo o tempo destruindo você na fantasia (inconsciente)” (WINNICOTT, 1994: 174). Se todo o estágio do uso do objeto for vivenciado de modo sadio, perceberemos as seguintes conquistas do bebê: a criação do sentido de realidade externa; a capacidade para o uso do objeto; a aptidão para a fantasia inconsciente (o bebê pode destruir o objeto em suas fantasias, pois sabe que ele sobreviverá no mundo externo); a incipiente capacidade para amar (aqui é o sentimento de um eu recém-integrado, o bebê, dirigido para um outro, a mãe, intuída somente agora com suas próprias características, seus estados de humor, seu jeito de ser; lembremo-nos, no entanto, que ainda são percepções rudimentares e que se tornarão cada vez mais sofisticadas no desenvolvimento do processo, consolidando-se somente ao final do estágio seguinte, o concernimento). Cumpre destacar e ressaltar que, na leitura winnicottiana, somente neste momento surge a fantasia, no sentido de mecanismo mental, tendo em vista que para Freud esta capacidade já está presente desde o nascimento. Explica Ariadne Moraes que Falar em fantasia indica muito em termos de amadurecimento pessoal. Significa que o eu é uma unidade e está contido e separado do exterior pela pele; portanto, a psique encontrou morada no corpo e isso traz sentido para os termos interno e externo e para a relação entre eles. É, portanto, uma aquisição do amadurecimento, indicativa da temporalização do bebê, que poderá a partir de agora criar (fantasiar) a partir de memórias relativas às experiências vividas com a mãe armazenadas no mundo pessoal e também a partir de novas experiências instintivas, pois a mente exerce as funções de comparar e pensar (MORAES, 2005: 181). Chegamos agora ao estágio do eu sou, onde a realização do si-mesmo, ou seja, a integração da personalidade está mais perto. Começa por volta de um ano ou um ano e meio, mas somente alcança estabilidade por volta de dois ou três anos. Após o bebê ter experenciado diversos e inúmeros momentos de integração e “ter feito, no estágio anterior, repetidas experiências de expulsar a mãe para fora do âmbito de onipotência, ou seja, após tê-la objetivado e, portanto, se separado dela, [a criança]pode, neste estágio do EU SOU, separar-se do ambiente total” (DIAS, 2003: 255). O eu sou integra tanto o verdadeiro si-mesmo como o falso si-mesmo instrumental, entendido, aqui, como o verniz que apresentamos em sociedade e, portanto, saudável (vide nota n. 6). Agora a mãe passa a ser sentida como um outro, separado, e a criança começa a perceber seus estados emocionais. É somente a partir da construção do eu sou que Winnicott começa a falar em interior (realidade psíquica pessoal, entendida como o acúmulo de todas as experiências vivenciadas pelo bebê desde a gestação até então) e exterior (tudo o que está fora da pele do bebê, percebido como o não-eu). Vale lembrar, no entanto, que o eu sou, recém-integrado, ainda é muito vulnerável, e que a criança precisa de tempo para explorar por completo essa passagem. Deste modo, na mesma ocasião em que avança a certas direções, regride a tantas outras que pareciam ultrapassadas, vivenciando vários tipos de relações objetais num mesmo dia. Descreve Elsa Dias: Uma criança pode estar brincando, entretida, com a tia ou com o cachorro, ao mesmo tempo que tem algumas percepções subjetivas e faz descobertas criativas. No momento seguinte, ela se mistura de novo com o berço, ou com a mãe, ou com os odores familiares, e se instala outra vez num ambiente subjetivo. Ao longo da vida, são esses padrões familiares da criança, os do mundo subjetivo, mais do que qualquer outra coisa, que a abastecem para todos os outros tipos de relação com a realidade, de tal modo que, ao descobrir o mundo, a criança sempre realiza uma viagem de volta – e esta viagem faz sentido para ela (DIAS, 2003: 257). Alcançando, em algum grau, a integração num estatuto unitário, a criança prossegue em sua jornada do amadurecimento, rumo ao próximo estágio, o do concernimento. II. 2. 3 – Estágio rumo à independência Será no concernimento, estágio pré-edípico, que ocorrerá a integração da vida instintual que, por sua vez, permitirá à criança tornar-se uma pessoa inteira, capaz de relacionar-se com outras pessoas inteiras (DIAS, 2003: 259). Aqui está a origem da capacidade para preocupar-se, indicando o fato “do indivíduo se importar, ou valorizar, e tanto sentir como aceitar responsabilidade” (WINNICOTT, 1983: 70) pelos seus feitos. Antes desta fase, ou seja, nos estágios iniciais de dependência absoluta e relativa, todos os gestos espontâneos, lançados pelo bebê em seus momentos excitados, têm a finalidade de diminuir a tensão instintual, ou seja, de permitir que sua necessidade seja satisfeita e, assim, possa retornar ao estado tranquilo e de contemplação. Deste modo, “seu propósito, quando se agita e se lança em direção a alguma coisa, procurando algo (o seio), é alcançar o alívio para a tensão instintual; entretanto, tudo o que faz para conseguir a paz no corpo é por acaso, sem intenção de machucar ou ferir, mesmo que, ocasionalmente, quando mame, isso possa acontecer” (MORAES, 2005: 160). Tal modo de se manifestar do bebê, exercitando sua vitalidade, foi denominado por Winnicott de impulso amoroso primitivo. Nele “estão contidos dois elementos distintos: a instintualidade (potencial erótico) e a motilidade (potencial agressivo), os quais, em um amadurecimento saudável, irão fundir-se, fortalecendo a sensação de realidade e de existir do indivíduo” (MORAES, 2005: 161). E como já dissemos, as consequências das manifestações deste amor excitado (que ocorre na forma de um instinto, um gesto espontâneo, um contato que busque alívio de alguma necessidade) não são avaliadas pelo bebê, que pode vir a machucar o objeto (mãe, seio) a que se dirige. Portanto, na ausência do concernimento, característica das etapas do amadurecimento anteriores, “o bebê é incompadecido e, por isso, exerce sua impulsividade nos momentos de excitação sem preocupação” (MORAES, 2005: 163). Será somente a partir de agora, com um si-mesmo constituído, que o bebê passará a ser concernido, começando a se preocupar e se responsabilizar por seus gestos e pelos efeitos de sua impulsividade no outro (especialmente, na mãe). Ainda, convém destacar que, para a criança imatura, podemos distinguir a existência de duas mães, que se diferenciam quanto aos aspectos dos cuidados direcionados ao lactente: a mãe-objeto (a quem o bebê dirige seus impulsos a fim de satisfazê-los) e a mãe-ambiente (que afasta o imprevisível e cuida para que nada de grave aconteça ao nenê). No entanto, nesta fase do amadurecimento, a criança começa a difícil tarefa de integrar a mãe-objeto com a mãe-ambiente. Ou seja, ela começa a perceber que a pessoa que lhe acolhe em seus momentos tranquilos é a mesma que ela ataca em seus momentos excitados. Além, integrando a mãe-ambiente à mãe-objeto, a criança pode, também, integrar amor e ódio, percebendo que a destrutividade inerente ao impulso amoroso primitivo tem proporções menores do que imagina: apesar da voracidade destinada à mãe nos momentos de excitação, ela sobrevive; e sobrevivendo, o bebê confere valor à existência da genitora. Todo este processo gera a capacidade de preocupar-se e de envolver-se. Segundo Winnicott, as circunstâncias favoráveis, necessárias à consolidação deste estágio, são as seguintes: […] que a mãe continue viva e disponível, isto é, acessível fisicamente e acessível no sentido de não estar preocupada com alguma outra coisa. A mãe-objeto tem que sobreviver aos episódios guiados pelo instinto […]. À mãe-ambiente cabe, por outro lado, uma função especial, que é continuar sendo ela mesma, continuar empática em relação ao seu bebê e presente para receber o gesto espontâneo dele e ser agradada (Winnicott, 2012: 115). Então, com a constância da disponibilidade da mãe, o bebê começa a desenvolver movimentos de reparação, que podem se traduzir em algo concreto como um sorriso, um borburinho ou o lançamento de um gesto espontâneo de amor (Winnicott, 1990: 91). Sendo assim, para o êxito desta conquista do amadurecimento, há que se estabelecer, por várias e várias vezes, um ciclo benigno, onde a criança experimenta sua instintualidade, preocupa-se com o resultado desta excitação e repara seu gesto, confiando na sobrevivência dos cuidados maternos suficientemente bons. O estágio do concernimento é longo, iniciando-se por volta dos seis meses e findando-se, aproximadamente, aos cinco anos, como detalha Ariadne Moraes Em termos de extensão, a elaboração para o concernimento é um processo longo. Em circunstâncias favoráveis, é possível observar sinais esporádicos de culpa em um bebê a partir da segunda metade do primeiro ano de vida, fato que indica que ele reconhece algo da destrutividade do impulso amoroso primitivo. É durante esse período que o bebê percebe seu incompadecimento anterior e, mediante um particular relacionamento com a mãe, conquista a capacidade de sentir-se concernido e responsável pelo que faz. No entanto, em relação à tarefa específica do estágio – integração da vida instintual e da destrutividade -, o ápice do processo ocorre por volta dos dois anos; no que se refere ao sentimento de culpa que sustentará a capacidade para o concernimento, raramente se estabelece de modo seguro antes dos cinco anos (MORAES, 2005: 187). Convém relembrar que o amadurecimento não é um processo linear. Especialmente durante o concernimento, estágio extenso, o bebê deve ter assegurado seu direito de regredir a uma situação de dependência intensa, sempre que necessário. Caberá à mãe, ou ao ambiente cuidador, atendê-lo com paciência e desvelo, fortalecendo o vínculo de confiança e proporcionando a continuidade da jornada num ritmo pessoal e sadio. Se tudo correr bem no concernimento, a criança adquire capacidade para sentir culpa e tristeza, acreditar, responsabilizar-se, envolver-se com a vida, reagir à perda de modo organizado, diferenciar os sentidos de bom e mau, aceitar sua agressividade e sua amorosidade. Enfim, a criança passa a lidar melhor com sua ambivalência, que é uma característica presente em cada e em todos os seres humanos. Para tais conquistas, as experiências vivenciadas pelo bebê, a partir deste estágio, deverão lhe assegurar a força do ego. E isso ocorrerá pela possibilidade de continuar sendo e existindo de um modo pessoal e verdadeiro, mediante o auxílio de um ambiente continente. Então, “tendo seu ego fortalecido, ele gradualmente se tornará independente do ego auxiliar da mãe e passará a contar consigo mesmo para lidar com a realidade externa” (MORAES, 2005: 197). II. 2. 4 – Estágios de independência relativa Após o concernimento e tendo conquistado efetivamente a identidade unitária, a criança está capacitada a vivenciar a situação edípica, com a entrada do pai como terceiro na relação que, até então, era dual. E, a partir deste momento edípico, Winnicott concorda com a conceituação freudiana, motivo pelo qual não o descreveremos pormenorizadamente. II. 3 – Psicoses As psicoses são distúrbios caracterizados pela perda de contato do indivíduo com a realidade externa. Para Winnicott, “a psicose se origina num estágio em que o ser humano imaturo é inteiramente dependente do que o meio lhe propicia” (WINNICOTT, 1983: 114). Diante do que já expusemos, amadurecer, tornar-se um eu integrado e diferenciar-se do não-eu, externo, são tarefas que o bebê apenas cumpre diante da existência contínua de um ambiente cuidador suficientemente bom. De modo oposto, falhas graves nos estágios de dependência absoluta e relativa podem impedir que o bebê se organize num estatuto unitário, levando-o à psicose. Explica Conceição Araújo que Para Winnicott, perturbações do ambiente que não ultrapassem o tempo e a capacidade do bebê para lidar com elas não interrompem o amadurecimento e são até importantes para que ele desenvolva os seus próprios recursos. No entanto, se as perturbações ultrapassam a capacidade num estágio bem inicial, são acompanhadas de uma perda temporária da identidade em formação. Assim, percebe-se que a ameaça presente em todo o processo de desenvolvimento do indivíduo é a possibilidade de não se integrar. A enfermidade psicótica é, para Winnicott, “uma organização defensiva relacionada a uma agonia primitiva”; o bebê adoece e psicotiza porque não consegue mais crescer ou continuar existindo (ARAÚJO, 2003: 43). Percebemos, então, que para o indivíduo chegar ao conflito neurótico, característico das relações triangulares, há que ter saúde suficiente, ou seja, precisa ter atravessado relativamente bem o período de dependência absolta, pois, “existem pessoas que, tendo tido seu amadurecimento interrompido em fases primitivas, jamais alcançam maturidade suficiente para padecer dos problemas inerentes à situação edípica” (DIAS, 2003: 301-302). Segundo Winnicott Assim como o estudo das neuroses leva o estudante ao complexo de Édipo e a situações triangulares que atingem seu pico na criança na idade pré-escolar e de novo na adolescência, assim o estudo da psicose leva o pesquisador aos estágios iniciais da vida infantil. Isso significa relacionamento materno-infantil, uma vez que nenhum lactente pode se desenvolver fora de tal relacionamento (WINNICOTT, 1983: 120, grifo nosso). Portanto, o fracasso ambiental, com o consequente impedimento das conquistas básicas dos estágios iniciais da existência humana, pode levar à psicose. Obviamente “haverá diferentes tipos de distúrbio psicótico segundo a etapa, dentro dos estágios iniciais, em que o bebê for traumatizado pelas falhas ambientais” (DIAS, 2003: 314). Nos casos mais graves, entretanto, a agonia enfrentada pelo indivíduo é tamanha e dolorosa, podendo ser pensada como uma batalha pelo alcance da existência. II. 4 – Paradigma Objetal Quando explicamos o paradigma pulsional, característico da psicanálise freudiana, deixamos claro que a ênfase recai no desenvolvimento intrapsíquico do indivíduo, com a as pulsões operando internamente e gerando conflitos que põem o psiquismo em movimento. Winnicott, entretanto, em sua prática clínica, percebeu que certas patologias, como as psicoses, não podiam ser compreendidas teoricamente nem tratadas clinicamente a partir do paradigma pulsional de Freud. Para o teórico inglês, tais distúrbios não derivavam de conflitos intrapsíquicos, mas sim, de falhas nos cuidados dispensados aos bebês. Explica Loparic Na percepção de Winnicott, a principal dificuldade da psicanálise tradicional em tratar dos casos de tendência anti-social e de psicose decorria do fato de ela pensar a etiologia dos distúrbios psíquicos em termos relacionados aos conflitos “pulsionais” intrapsíquicos, deixando de ver que, pelo menos nesses casos, a patologia ou a anormalidade estava primariamente no ambiente e só secundariamente na criança. Em outras palavras, Winnicott entendeu que era necessário mudar a etiologia dos distúrbios em questão. […] Dessa forma, a etiologia tradicional, baseada nos conceitos de pulsão e de conflito interno, foi substituída […] Winnicott chegou à “inesperada conclusão de que a esquizofrenia era uma espécie de doença provocada por uma deficiência ambiental”. A esquizofrenia se origina – esta é a tese que Winnicott começará a defender apoiado, de novo, em dados colhidos na sua intensa clínica pediátrica – no estágio de dupla dependência, ou seja, no período no qual o indivíduo em desenvolvimento ainda não adquiriu a capacidade de ter consciência da sua dependência do ambiente externo e de se dar conta das falhas deste (LOPARIC, 2006: 30-31). Deste modo, considerando a psicose e não a neurose como o paradigma do adoecer humano, Winnicott atentará para a relação estabelecida entre a mãe e seu bebê nas fases onde a dependência impera. Será, portanto, no relacionamento interpessoal que o amadurecimento e a saúde psíquica do indivíduo poderão se consolidar. Falamos, então, de paradigma objetal, onde o contato do bebê com os diversos objetos do mundo é mais importante que os posteriores conflitos pulsionais para o estabelecimento da saúde.. E, como já evidenciamos ao longo do trabalho, a conceituação de objeto mudará de acordo com o estágio vivenciado pelo bebê. No início, o objeto é subjetivo e sentido como uma extensão do bebê, que o cria quando necessita. Aqui, o bebê é o objeto. Após, na fase da tansicionalidade, algumas características da realidade externa começam a introduzir-se na experiência do bebê, que passa a possuir o objeto. Caminhando, chegamos à fase do uso do objeto, em que este será percebido objetivamente como externo. Relembramos, ainda, que as várias alterações da natureza do objeto implicam em mudanças no sentido de realidade. O bebê caminhará por uma longa estrada no processo de amadurecimento, amparado pelos cuidados ambientais, o que lhe permitirá vivenciar desde a realidade do mundo subjetivo até a realidade do mundo compartilhado. Para além, quando adulto, poderá transitar entre os dois mundos de forma saudável, resguardando sua subjetividade que dará um colorido pessoal, espontâneo e criativo na realidade compartilhada externamente.
Capítulo III – Esquematizando as principais diferenças entre
Freud e Winnicott
Neste momento, a partir do que já foi esclarecido nos capítulos anteriores, tentaremos esquematizar, de forma clara e resumida, as principais diferenças conceituais entre os dois autores em estudo. III. 1 – Édipo ϰ Relação mãe-bebê Para a psicanálise tradicional, o problema central para o desenvolvimento psíquico é a resolução do complexo de Édipo que, resumidamente, consiste na identificação do menino com o pai, o que significa a resolução da angústia de castração e o abandono da pretensão de ocupar o seu lugar como marido da mãe. Trata-se, portanto, de uma relação tríade. No lugar do problema edípico, Winnicott coloca como ponto crucial para a saúde emocional, o bebê no colo da mãe. A relação, de início, não chega a ser dual, mas sim, como já dissemos, dois-em-um. Após vivenciar satisfatoriamente os estágios de dependência, é que o lactente terá noção de internalidade e externalidade. Somente aí iniciará a relação dual. Portanto, ao chegar à relação triangular, o bebê já tem saúde suficiente para não se tornar psicótico. III. 2 – Neurose ϰ Psicose O ponto de partida para a conceituação de doença é totalmente diferente entre os dois teóricos. Enquanto Freud postula a neurose, fruto da resolução do Édipo, como paradigma do adoecer psíquico, Winnicott defende a psicose em seu lugar, pois acredita que a saúde psíquica se estabelece logo nos primórdios da existência. Sendo assim, podemos dizer que “nas neuroses, o engate da vida não está posto em questão. O não que concerne às neuroses é um não que se dá no interior da vida, sendo parte da história do indivíduo. Nas psicoses, o não nega a própria possibilidade de ser; não faz parte, portanto, de uma história, porque esta só se constitui com base no ser” (DIAS, 2003: 153). III. 3 – Fatores intrapsíquicos ϰ Fatores interpessoais Enquanto Freud privilegia os fatores internos, ou seja, os conflitos pulsionais intrapsíquicos, Winnicott enfatiza os aspectos ambientais e a tendência inata ao amadurecimento. Assim, “o bebê humano depende, até para chegar a ser um bebê, da presença concreta e contínua de um ambiente facilitador. O processo, no início não é intrapsíquico, mas interpessoal” (DIAS, 2003: 303). Eis a importância, primeiramente da relação dois-em-um, seguida da relação dual e, por fim, da relação tríade para o processo do amadurecimento humano. III. 4 – Desenvolvimento das funções sexuais ϰ Processo de amadurecimento Freud entende a formação da personalidade como um desenvolvimento da libido, que no início é investida em si mesmo (como nas fases oral e anal) e, posteriormente, nos objetos externos. Todo o processo culmina na resolução do complexo de Édipo, onde a neurose é instituída. Para Winnicott, antes deste enredo, “há uma pré-história na qual o pequeno indivíduo, que já é um ser humano passível de ser afetado pelo ambiente, ainda não chegou a si; o bebê está apenas iniciando o processo de amadurecimento que leva à integração num eu unitário e, se o processo falhar, pode ocorrer de esse bebê jamais chegar a ter um eu com uma história para contar” (DIAS, 2003: 82). Ressalte-se, no entanto, que apesar de não priorizar a sexualidade na constituição do sujeito, Winnicott não nega sua importância, como constatamos ao acompanharmos seus relatos clínicos. Na sua teoria do amadurecimento ele acrescenta dados onde a psicanálise freudiana apresenta lacuna, especialmente nos primórdios da vida humana. No entanto, a partir da fase em que se desenrola o Complexo de Édipo, Winnicott acata a metapsicologia freudiana. III. 5 – Id ϰ Ego Freud postula que o id é a primeira instância da psique. O bebê já nasce num conflito pulsional, que o impele à satisfação de suas necessidades e desejos. E a partir desta dinâmica, vão se estruturando o ego e superego. Tal entendimento pressupõe que a capacidade de se perceber como indivíduo, separado do outro e do mundo externo, ocorre bem precocemente. Para Winnicott, não há id – com conteúdos recalcados – sem o ego, que se estrutura à medida que o bebê amadurece e conquista sua identidade unitária. Assim, para haver tensão pulsional, característica do id, faz-se imprescindível a anterior constituição do si-mesmo, que não pode ser avaliado como adquirido apenas pelo nascimento. O psiquismo, bem como o estatuto unitário, jamais podem ser considerados inatos. Há um longo caminho a percorrer até a plena estruturação egóica e tão só após se falará dos conflitos característicos do id. III. 6 – Formação mental inata ϰ Formação mental construída Para Freud, a atividade mental está presente desde o nascimento, servindo-se de um aparelho psíquico (id e, posteriormente, ego e superego) para executar suas atuações que, por sua vez, dispõe da energia libidinal para se mover. Para Winnicott, a mente constitui-se tardiamente, somente no estágio da dependência relativa, com o início do desmame. Sendo assim, a partir da integração psicossomática bem sucedida, a atividade mental surge como um ornamento, ou seja, como um “modo especial do funcionamento do psique-soma” (DIAS, 2008: 113). Para este autor, a mente está presente nos vários significados da palavra pensar (como exemplos, comparar, catalogar eventos, fazer previsões, armazenar memórias, etc) e surge quando o processo de desadaptação materna se inicia e o bebê precisa compreender as falhas ambientais, para que prossiga o processo de amadurecimento. Portanto, algumas características da mente, dadas como existentes muito precocemente por Freud e Melanie Klein, são, para Winnicott, aquisições do processo de amadurecimento. Deste modo e exemplificando, o fantasiar e a atividade simbólica, só aparecem no estágio da transicionalidade; a capacidade para amar é uma conquista do concernimento.
Capítulo IV – CONCLUSÃO: AS CONTRIBUIÇÕES DE Winnicott
À CLÍNICA BIODINÂMICA
Escrevo este capítulo para os leitores já familiarizados à teoria Biodinâmica de Gerda Boyesen, escusando-me com aqueles que ainda não a conhecem. Digo isso, pois usarei terminologias empregadas pela comunidade biodinâmica sem, contudo, explicá-las conceitualmente. Como o enfoque desta monografia deu-se na literatura winnicottiana, comparando-a, muito suscintamente, à freudiana, explico que desenvolver os conceitos biodinâmicos e relacioná-los às duas teorias seria um outro trabalho, extremamente complexo. Deixo-o para o futuro. Sabemos que, se a Psicologia enquanto ciência é nova, a Psicologia Biodinâmica é quase recém-nascida. Deste modo, seu amadurecimento está em processo e conta conosco, estudantes e profissionais, para darmos corpo e consistência teóricos e práticos ao belo modo biodinâmico de compreender o ser humano. Neste sentido, os pressupostos winnicottianos enriquecem e organizam muito o nosso saber/fazer terapêuticos, fornecendo-nos um rico suporte. Por exemplo, “tanto o trabalho clínico de Winnicott quanto a psicoterapia biodinâmica permitem a regressão à dependência na transferência, pois buscam reparar a dor da criança ferida do paciente, seus traumas e as falhas ocorridas em fases bastante precoces do seu desenvolvimento emocional” (CINTRA, 2010: 16). Como se sabe, o grande diferencial da técnica biodinâmica é a massagem, por intermédio da qual podemos oferecer ao paciente o holding necessário ao momento atual que vivencia. Especialmente nas fases de regressão, a massagem proporciona ao paciente a experiência de ser e de continuar a ser. Por meio do toque apropriado, de seu ritmo, de sua constância, bem como da segurança do setting, o terapeuta fornece condições apropriadas para que o paciente regrida, retome pontos importantes de seu processo de amadurecimento e retorne mais integrado e organizado. Cria-se uma nova experiência mais saudável e agregadora que, por subjetiva e significativa, possibilita o retorno à realidade compartilhada, conservando-se uma nuance pessoal e positiva. Ocorre, assim, tanto a reparação quanto o resgate da criatividade. Muitas vezes, num trabalho psicoterapêutico que utiliza a massagem como dispositivo, observamos a possibilidade do paciente experimentar, durante sua aplicação, uma situação semelhante ao que Winnicott descreve como estado de não-integração. Os pacientes, após o recebimento da massagem e o retorno ao estado de vigília, comumente relatam que se desligaram do ambiente físico ao redor, que tiveram suas referências temporais alteradas ou que vivenciaram sensações corporais difusas. Geralmente, alegam uma dificuldade de explicar suas impressões por palavras, apenas traduzindo-as como algo aproximado ao bem-estar, à calma, à possibilidade de compatibilizar seu funcionamento orgânico e seus sentimentos, enfim, à integração. Sendo assim, para pacientes que tiveram dificuldade em vivenciar a continuidade de ser, o uso da massagem biodinâmica é uma rica oportunidade para, winnicottianamente falando, tornar possível o acontecimento de algo que deveria acontecer, mas que faltou. Portanto, consideramos inegáveis os benefícios da massagem nos processos em que a personalização aconteceu de forma precária. Ainda, tanto na massagem como na atuação cuidadosa e respeitosa do terapeuta, que utiliza o método da parteira, faz amizade com as resistências e aguarda os gestos espontâneos do paciente, ou seja, que age como o ambiente cuidador ou como uma mãe suficientemente boa, percebemos a possibilidade de encontro do paciente com seu self verdadeiro ou com sua personalidade primária. Explica Glória Contra Regredir para progredir: o paciente pode obter do terapeuta um ambiente facilitador, uma mãe suficientemente boa, para que seu processo de maturação possa se desenvolver. Isso se dá a partir da reparação de traumas ocorridos em fase de dependência, em que a criança tem direito a existir e a estar segura e nutrida, em direção à independência, na qual ela tem direito de ser autônoma, a ter amor, e a dar e a receber, para alcançar o bem-estar independente ou a capacidade de estar só. Ambos, Gerda e Winnicott, têm uma visão bastante positiva do ser humano, acreditando que existe algo de intrinsecamente belo dentro de cada pessoa, denominando isso personalidade primária ou verdadeiro self. A ênfase do trabalho de ambos não é sobre a patologia, mas sobre a possibilidade de atualização dos potenciais humanos e de amadurecimento emocional através do processo terapêutico (CINTRA, 2010: 16). Deste modo, tanto Winnicott quanto Gerda postulavam uma terapêutica não invasiva, sem atropelamentos ao tempo subjetivo de cada indivíduo. O terapeuta deve estar sempre ao lado do paciente, numa presença disponível e amorosa, que seja confiável nos momentos de regressão e apoiadora nos momentos de crescimento e decisão. Precisa, portanto, perceber o fluxo do processo terapêutico e respeitar o ciclo elíptico do amadurecimento de cada paciente. Assim, Winnicott, enquanto psicanalista, solicitava cuidados no tocante à interpretação, que poderia ocorrer em momento inoportuno, agredir o paciente e não contribuir para o andamento da análise. Já Gerda, mesmo acreditando plenamente nos cuidados corporais para o tratamento psíquico, não participava do enfoque diretivo de sua época, onde os terapeutas corporais propunham exercícios exaustivos e provocadores de catarse. Defendia, outrossim, a livre associação de movimentos, que deveria partir tão somente do paciente. Notamos, por conseguinte, o manejo cuidadoso de ambos os pensadores, cada qual em sua peculiaridade. Gerda e Winnicott foram contemporâneos, mas nunca se encontraram. Descreveram, com muitas semelhanças, na prática e na teoria, um modo idiossincrásico do manejo terapêutico. Sincronicidade junguiana? Muito provavelmente. Por fim, lembro-me de uma aula expositiva com a professora Maria Forlani, que definiu a Biodinâmica como “uma qualidade especial do cuidado”. Precisa e adorável conceituação… Intitular-se Biodinâmica representa um modo de ser e de atuar na vida e na profissão. Representa um olhar diferenciado para o singular acontecer humano de cada pessoa que contatamos no nosso dia-a-dia e em nossos consultórios. Representa, enfim, um eclodir da personalidade primária, do self verdadeiro, que nos permite cuidar biodinamicamente de nós mesmos e dos nossos pacientes. Que a comunidade Biodinâmica possa crescer cada vez mais em número e em saúde, contemplando o acontecer humano com todo o respeito que lhe é cabido e merecido. BIBLIOGRAFIA ARAÚJO, Conceição A. Serralha de. O autismo na teoria do amadurecimento de Winnicott. 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O importante é que haja alguém responsável pelo atendimento das necessidades imediatas do bebê. Gesto espontâneo: nome dado aos movimentos que o bebê lança na direção de um objeto (externo para o observador, mas subjetivo se considerarmos o ponto de vista do lactente) e que fazem parte de uma necessidade pessoal. Quando acolhidos, favorecem a sensação de segurança e confiança no bebê. O sentimento de ser, de ser real e de existir num mundo real como um si-mesmo está intimamente ligado à realização de experiências. Somente aquilo que é vivenciado na experiência é real para o indivíduo. O entendimento das agonias impensáveis é de suma importância na obra winnicottiana. Apesar da relevância, não nos aprofundaremos no tema, pois foge ao objetivo deste trabalho. No entanto, apresentamos uma breve e clara conceituação, dada por Tereza Elizete: “Winnicott refere-se às agonias primitivas, de natureza psicótica, como reação ao sentimento de que o núcleo do self foi violado e experimentou ameaça de descontinuidade ou aniquilamento. Resultam de traumas ocorridos no estágio de dependência absoluta, período no qual a criança não tem defesas, tais como a capacidade de representar, pensar o que se passa com ela: a agonia avassaladora que subjaz é impensável. O autor relaciona angústias primitivas, tais como a perda da relação com o próprio corpo, do sentido de real, o sentimento de queda infinita, desintegração, despedaçamento somático e incomunicabilidade” (GONÇALVES, 2003: 4). Precisamos esclarecer que o falso self pode configurar tanto um aspecto saudável da personalidade (neste caso, representando o modo como o indivíduo age em sociedade ao respeitar regras e valores já estabelecidos pela coletividade), como também um aspecto patológico e defensivo, que é enfatizado no texto acima. Detalhando a dimensão saudável ou doentia do falso self, explica Tereza Elizete: “Este conceito, de D. W. Winnicott, refere-se a uma divisão na personalidade na qual o que há de mais pessoal e verdadeiro se opõe ao que há de concessão e submissão às convenções sociais. O falso self socializado e civilizado, na saúde, protege e permite a realização do verdadeiro self que não pode se comunicar diretamente. Trata-se do “self cuidador”. Na doença, ele usurpa o lugar da autenticidade, fazendo com que a pessoa perca contato com o que há de mais criativo em si, resultando em falta de sentido, futilidade e irrealidade. Refere Winnicott que um colapso potencial domina a cena, quando uma fachada falso self se transforma numa defesa contra o verdadeiro self” (GONÇALVES: 2003, 1, grifo nosso). Concernimento é um neologismo, proposto por Elsa Dias (2003: 258), na tentativa de alcançar o amplo sentido de concern, utilizado por Winnicott. Segundo a autora, concern encerra o sentido de preocupação dirigida ao outro. A maioria dos tradutores, entretanto, utiliza apenas a palavra preocupação como tradução para o termo em inglês, como veremos em algumas citações realizadas no decorrer deste trabalho. Há uma enorme divergência entre os estudiosos de Winnicott no que diz respeito ao incluí-lo ou não entre os teóricos (tal como Melaine Klein) das relações objetais. Os que discordam, afirmam que apenas Winnicott operou uma verdadeira mudança paradigmática na psicanálise, ao enfatizar a importância da relação dual mãe-bebê. Tal discussão, apesar importante, não será alvo do presente trabalho, pois foge à temática essencial.