L.H. sofreu um acidente por mergulho em água rasa, quando estava em férias de verão, em 2004, na cidade onde nasceu e aonde morava seu avô paterno com o qual tinha grande ligação afetiva. Seu avô tinha falecido algum tempo antes do seu acidente. Atualmente L.H. com 20 anos mora em outra cidade. L.H., apresenta lesão medular, no nível de C5, com paralisia espástica leve a moderada. Seu quadro de tetraplegia é incompleto, pois o deixa sem os movimentos das pernas mas com movimentos parciais de membros superiores e todo um quadro clínico próprio da lesão como já descrito. Trazia também queixa de gastrite, úlcera nervosa e insônia, sintomas psicossomáticos associados ao quadro, bem como o comportamento ansioso de roer as unhas. Foi observado que seus dedos os quais não sente, estavam com lesões – quase úlceras, de tanto roê-las e com atrofiamentos nas falanges distais, comportamento este que revelava por trás de sua aparente calma, sua ansiedade. Tem o 1º grau incompleto, curso técnico em informática, e é evangélico. Filho adotivo de pais, que atualmente estão separados, tem uma irmã hoje com 16 e um irmão de 5 anos, que moram com a mãe. Antes mantinham contato diário pois a casa da mãe era no mesmo terreno, hoje a mãe se mudou com os irmãos para outra região de sua cidade, os vê menos, por isso sente muita falta deles. Com a irmã tinha atritos próprios da idade e outros que no decorrer do processo terapêutico foram vistos como uma forma de negação frente a situação do irmão. Tem uma ligação forte,com o irmão mais novo que lhe deu forças para lutar pela vida, no período que “desejava morrer”. Além do acidente o relato de sua história de vida traz uma sequência de abandonos, de “perdas”, relidas nas palavras poéticas de Lya Luft:
“A infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto de nossos dias. Se for esburacado demais vamos tropeçar mais, cair com mais facilidade e quebrar a cara – o que pode até ser saudável, pois nos dará chance de reconstruirmos nosso rosto. Quem sabe um rosto mais autêntico. Mas às vezes ficaremos paralisados […] Mesmo se fomos amados, sofremos de uma insegurança elementar. Ainda que protegidos, seremos expostos a fatalidades e imprevistos contra os quais nada nos defende. Temos de criar barreiras e ao mesmo tempo lançar pontes com o que nos rodeia e o que ainda nos espera. Toda essa trama de encontro e separação, terror e êxtase encadeados, matéria da nossa existência, começa antes de nascermos[…]Mas não somos apenas levados à revelia numa torrente. Somos participantes. Nisso reside nossa possível tragédia […]” Lia Luft, 2003
L.H. que diz ter sido sempre tranqüilo, nunca aceitou a separação dos pais, desejava e acreditava que iriam voltar, abandonara os estudos e se sentira desanimado frente esta realidade. Teve um caminho esburacado, numa trama de encontros e separações foi exposto a “fatalidades ou imprevistos” da vida, sempre buscou reconstruir-se, mas hoje está paralisado e inseguro. Como aprendera se defender, quais suas defesas? Quais reações, barreiras e pontes/couraças criou frente os perigos e ameaças que vivenciou? “Em termos ideais os perigos externos ou internos criam uma reação que muda nossa forma apenas temporariamente. Quando o perigo passa voltamos a um estado de atividade normal.” Porém a intensidade desta agressão é grande, intensa e crônica. “À medida que as agressões continuam o organismo vai perdendo sua forma, intumesce ou entra em colapso.” (Dinorah, Apostila da aula Curso Biodinâmica, 2007). Quando chegou a instituição ainda de maca, seu estado de saúde estava muito debilitado, correndo risco de vida. Jovem, adolescente, olhos constantemente vermelhos que nos atendimentos relata serem de noites de insônia, de ficar pensando em como sua vida poderia ser diferente se não tivesse acontecido o acidente. Sorriso de canto de boca, as palavras em tom baixo saem quase sem serem articuladas, por uma hipertonia tanto da musculatura orbicular da boca como da articulação mandibular, em contraposição a um corpo hipotônico, sua fala é lenta, seu olhar para baixo, suas mãos ficam nos bolsos e às vezes passa uma pela cabeça, sua respiração é curta e abdominal, seu semblante aparentemente sereno, “conformado”, mas eu diria assustado e que de alguma forma me fazia sentir um pedido de ajuda. Uma lesão medular é uma agressão grande, intensa e crônica e no decorrer do tempo o corpo de uma pessoa lesada medular vai perdendo a forma ficando hipotônico e adquirindo a aparência de um corpo colapsado, além de apresentar uma cisão real, um bloqueio cervical, o único “controle” físico é da cabeça-pescoço e dos pensamentos, dissociado das sensações físicas para baixo da lesão, caracterizando também traços esquizóides adquiridos. Na hipotonia a função dos músculos estriados fica prejudicada, os músculos perdem seus fluídos, secam e se estreitam, há fraqueza e atrofia, não conseguindo prover os limites que ajudam a gerar pressão ou mantê-la. Tem dificuldade de ficar sobre os próprios pés. Realmente como que se tivesse sido retirado o fio [medula]da tomada [cérebro] desligando o ser que o habita. (Dinorah, Apostila da aula Curso Biodinâmica, 2007) O corpo fica semelhante ao que é descrito como colapso – reflexo de susto por Stanley Keleman (1992). Uma forma que expressa a desorganização, o recuo, a derrota, um organismo fatigado, incapaz de lutar, onde o diafragma desce e o peito e a parede abdominal estão colapsados, frágil e distendida, os órgãos flácidos, formando uma protuberância. A esperança, a expectativa de ajuda, suporte, encorajamento e contato são perdidos. Há apatia, resignação, falta de confiança e medo. Podendo-se entender a mensagem emocional como: Estou derrotado, desmoronando, deixo de existir. Com base no texto “Tensão e estrutura de caráter – uma síntese de conceitos” de David Boadella, as características esquizóides descritas coincidem com a história e com o quadro de L.H.. Como uma criança sua necessidade básica deste momento é o existir, de sentir-se seguro, precisa se redescobrir ao mesmo tempo que, familiares, amigos e profissionais o descobrem. Tendo como posição básica a sensação de abandono, a desolação, de estar congelado e ausente do mundo. Esta defesa se origina da tentativa de lidar com o medo, […] o medo da não existência e da rejeição como um terror agudo diante do qual ela congela, paralisando e fragmentando de muitas de suas funções.A experiência vivenciada é a despersonalização, “[…] uma vez que não ser uma pessoa com seus próprios direitos é a base para a situação de medo”. L.H. é receptivo (sensível) a música. Tocava instrumentos na igreja e na escola, nos atendimentos auxilia a Musicoterapeuta afinar o violão e no decorrer do processo tocou melodias no órgão eletrônico, canta algumas vezes e adora ouvir e refletir com canções de seu repertório. Iniciou o processo Musicoterápico com 15 anos, em 16 de agosto de 2005; estes inicialmente aconteciam em grupo, atendimentos interdisciplinares da Musicoterapia e da Psicologia, a pacientes com lesão medular. Os objetivos estabelecidos nos atendimentos em grupo, foram o possibilitar um espaço de troca de sentimentos e pensamentos sobre seu momento de vida, interagindo, se auto-percebendo física e emocionalmente e percebendo os outros com quadros físicos e situações de vida semelhantes, lidando com sua realidade, pela troca descobrindo possibilidades de vida, motivando-se frente sua reabilitação bio-psico-social e espiritual. Após 12 encontros, em maio 2006, os atendimentos passaram a ser individuais. Atualmente é acompanhado quinzenalmente na Musicoterapia. Dentro do Programa de Reabilitação recebeu atendimentos de fisioterapia,os quais ainda continua e também de Terapia Ocupacional, do qual já recebeu alta, mas continua sendo acompanhado na escola. Sendo também sempre acompanhado nas discussões de caso por toda equipe de profissionais, psicóloga, fonoaudióloga e assistente social. É importante esclarecer que devido às dificuldades do transporte (ambulância inicialmente, passou para o ônibus do transporte especial de Almirante Tamandaré e voltou para ambulância) o que ocorreu ao longo do processo terapêutico; L.H. faltou muito, sendo que em 2009 chegou a ficar 3 meses sem atendimento devido ao serviço de transporte do município de Almirante Tamandará (foi necessário intervenção do Serviço social), mas foi mantido contato telefônico, pois percebia-se que ele queria muito continuar a receber o tratamento. O problema do transporte é crucial pois limita a vida social de L.H., dificultando o seu processo, a sua reabilitação e o retorno aos estudos. Apesar de desanimar, ele não desiste. Por isso a Musicoterapeuta insiste e investe no seu processo. Ela está convencida de que o seu corpo aparentemente “derrotado” continua pedindo ajuda. É como se ela sentisse a força vital dele sussurrando: “Não vou desistir, não desista de mim” “É essencial para a imagem biodinâmica da pessoa, a maneira como ela se relaciona com os movimentos de sua força vital.” (Soutwel, 1986) Segundo o mesmo autor, esta se move em nós como libido, tendo um fluxo inerentemente prazeroso, mas que quando esta é bloqueada, causa sintomas físicos e psicológicos. Assim diante de um adolescente que sofreu “violento choque emocional” era sentida sutilmente o movimento de sua força vital, num ímpeto natural de sobrevivência, de luta pela vida. Tão sutil quanto à dinâmica transferencial que já se estabelecia, dinâmica esta que […] “permeia as relações humanas”[…], considerando em alguma medida como resultado da empatia imediata terapeuta – paciente . (Wagner,2003) Quando o atendimento passou a ser individual, pode ser inserido no contexto do processo Musicoterápico a Massagem Biodinâmica, sendo estas utilizadas ao longo de todo processo como forma de intervenção:
- numa sessão inteira, no início da sessão para organizar, dar holding, fazer uma limpeza ou quando estava sem energia ou desvitalizado após uma noite de insônia;
- no fim de uma sessão para harmonizar, integrar ou centrar;
- no meio da sessão para trabalhar um sintoma ou mobilizar;
- ao mesmo tempo em que se conversava principalmente por apresentar grande tensão cervical e mandibular;
- de forma ocasional como doses homeopáticas pensando-se na premissa de que o pouco é muito;
- como centro do trabalho em certas fases do processo;
- Para trabalhar questões como:
- da relação terapêutica (entrega, maternagem, reparação, fome de toque, melhora do vínculo e desenvolvimento da capacidade de estar só);
- sobre a energia (harmonização e integração, vitalização, drenagem e injeção e trabalho com o campo energético);
- relacionadas ao psiquismo (mobilização de emoções, sentimentos, imagens e memórias; tolerância ao prazer; para facilitar a propiocepção e consciência corporal;
- das defesas psíquicas– afrouxamento das couraças (muscular, tissular e viceral);
- do equilíbrio psíquico e estados confusionais leves;
- ansiedade muito elevada;
As técnicas de Massagem mais usadas foram a de Escoamento, contorno, crânio sacral e do campo energético na intenção de diminuir a tensão-bloqueio cervical, a ansiedade; diminuir o fluxo de pensamentos (escoar), despertar o corpo, distribuir sua energia, dar contenção físico-emocional, digerir sentimentos e pensamentos, relaxar… Sua vida no início do processo girava em torno de sua reabilitação. Esta é uma fase onde foi necessário dar espaço, encorajar para expressar seus sentimentos, acolhendo, e proporcionando um espaço seguro, um espaço “de paz e segurança, ou seja, que possibilitasse repousar em um ambiente favorável”, para restaurar sua capacidade de auto-regulação e possibilitar o digerir seu choque emocional, segundo Boysen (1983, p10). À medida que ia se sentindo seguro, compartilhava seus sentimentos, emoções e memórias. Sua memória mais antiga da infância é resgatada, “tinha 3 anos, a primeira vez que os pais se separaram, ele ficou com a Tia C. (a mesma que o cuida hoje) e diz: “Me senti abandonado” (pela segunda vez). Depois acrescenta se sentir arrependido de ter ficado com o pai, mas foi este que foi buscá-lo na casa da tia C., após a separação, sua irmã que na época tinha um ano, que nascera após os pais fazerem um tratamento, ficou com a mãe. L.H. chorou em um atendimento quando da mudança de estagiário da fisioterapia com quem tinha um ótimo vínculo, acreditando ter sido provocado o conhecido sentimento de abandono. Sua força vital se expandia lentamente, iniciando o resgate dos seus objetivos de vida, mudava o foco, voltando a vida a estar no primeiro plano e as terapias apenas apoio. Voltou a escrever, e a estudar, algo que já abandonara uma vez. Passou a falar em terminar não só o segundo grau, e de ser exemplo (não mais só para o irmão), mas na possibilidade de fazer uma faculdade talvez de psicologia, pois descobriu que ajuda as pessoas sempre que conversa. Retoma o contato com amigos da escola e da igreja, participa de encontros da igreja, (graças a eles diz que parou de tomar a medicação anti-depressiva), vai a casa de vizinhos, recebe atendimentos na informática adaptada (atendimentos realizados pela terapia ocupacional), retomando atividades que poderiam motivá-lo frente ao processo, momento em que está receptivo para novas possibilidades e com o lidar com suas limitações e adaptar-se a realidade: Inicia processo de aceitação saindo da paralisia frente a própria paralisia da lesão física. Ganha um computador e pode acessar o mundo pela internet. Mas o que ainda é difícil é o depender dos outros para tudo, mas principalmente para ir e vir. Redirecionava sua sensibilidade musical, tocando o órgão eletrônico em vez do violão – seu instrumento, com as adaptações – órteses, movimentava os membros superiores, sentindo-se capaz. O tocar visto como uma forma também de se expressar, de resgatar algo seu, pois apesar de não conseguir mais tocar violão sua musicalidade continuava ali, sua essência continuava ali, seu “núcleo vivo ou personalidade primária”, apesar de [soterrados]. Flexibilizando-se, uma forma de transpor para vida, valorização do seu potencial musical. Após tocar recebia a massagem para relaxar muscularmente (pescoço e nuca), pois diz que se sente tenso ao tocar, pois o esforço reforça as tensões principalmente na região cervical (cintura escapular), local onde também se queixa de muito frio (estagnação de energia), e poder continuar desfrutando o prazer de tocar, o qual pode ser estendido à vida. A psicoterapia Biodinâmica trabalha com o prazer essencial da existência. O prazer é uma força naturalmente expansiva, infinitamente curativa (Southwell,1986. Tradução Terezinha Oppido, p.25) Nesta época da terapia a medida que L.H. recorda e relata novas lembranças do acidente, durante intervenção com audição musical e massagem, que teve inicio o “descongelamento do trauma”, utilizando o toque básico (Toque básico: Composto por movimentos circulares ritmados que podem ser rápidos ou lentos; suaves ou profundos dependendo da necessidade do paciente.). LH diz: “Fui eu que insisti para irmos pescar. Na hora de irmos embora só eu resolvi mergulhar” Em posterior atendimento acrescenta que não só pulara, mas dera um passo atrás para se impulsionar. Lembranças que até então afirma que não tinha, não conseguia pensar sobre o assunto. O inconsciente é acessado e as lembranças emergem em sonhos também e se vê sendo socorrido pelos amigos no momento em que é retirado da água e o chamam pelo nome, LH ouve mas não consegue responder e hoje também é assim que se sente em relação aos amigos vizinhos e da igreja, sendo socorrido, amparado. E esta relação o fortalece. Sua fala sugere um responsabilizar-se, uma certa culpa pelo seu acidente. Continue lendo