Manejo suficientemente bom da relação mãe/bebê em sala de parto baseado nos conceitos de winnicott
RELATO DE UM CASO
Dora psicóloga Clínica,
Marta – Enfermeira Obstetra
RESUMO Em decorrência da evolução da ciência e dos recursos tecnológicos os partos “modernos” têm sido conduzidos de forma mais mecânica e menos natural. A interferência humana excessiva no processo da parturição é invasiva e perturba o vínculo mãe e bebê. A humanização do parto surgiu como um meio de diminuir as interferências ambientais e profissionais para fortalecer o vínculo mãe e bebê e favorecer o desenvolvimento emocional primitivo e a saúde psicossomática do bebê. Neste trabalho, relatamos um caso no qual o nascimento de uma criança portadora de síndrome de Down gerou uma crise à equipe profissional e aos pais deste bebê. Parte da equipe teve condutas inadequadas mas os outros elementos do grupo deram suporte para o casal ajudando-os a estabelecer um vínculo satisfatório com o bebê. Segundo Winnicott, o manejo adequado minimiza os danos psicológicos e fortalece o vínculo. CONTEÚDO Este trabalho foi vivenciado e descrito pela Enfermeira Marta e supervisionado pela Psicóloga Dora. O PRIMEIRO CONTATO GESTANTE / ENFERMEIRA Maria (39 anos) me telefonou assustada e preocupada. Dr.Roberto iria interromper a gestação com 37 semanas fazendo uma cesariana porque foi diagnosticada uma alteração circulatória feto/placentária e retardo de crescimento fetal, estimando-se o peso de 2200g. “Preciso ter muito leite para amamentá-lo e fazê-lo crescer e engordar rápido”, disse Maria. “Você pode me ajudar?” Notei que a cliente é muito desinformada sobre o aleitamento materno e demonstra medo de não ser capaz de alimentá-lo e, portanto, medo de não poder garantir sua sobrevivência. Sustenta a fantasia de que o seu filho depende disso e exclusivamente dela, caso contrário ela seria uma mãe ruim, incapaz. O PARTO Maria, Paulo (42 anos) – seu marido – e eu nos conhecemos 30 minutos antes da cirurgia. Aparentemente felizes e mais confiantes, o casal ainda demonstrava uma preocupação com o tamanho e o peso do bebê e, também, questionava se bebê seria “normal”. Intercedi alertando-os sobre a importância de o João nascer com um desempenho respiratório adequado para uma melhor adaptação ao nosso meio ambiente, uma condição mais importante que o peso. Comentei sobre alguns casos de bebês de baixo peso (abaixo de 2500g) e de bebês prematuros (abaixo de 37 semanas) que alcançaram o peso devido após o nascimento em tempo previsto pelos pediatras, a maioria deles só recebendo leite materno. Disse: “o sucesso da amamentação dependerá da sucção eficaz do João e, sobretudo, da sua tranqüilidade, bem-estar e prazer. O meu trabalho consiste em te ajudar a encontrar os caminhos para tudo isto acontecer. O melhor começo da amamentação pode acontecer na sala parto pois, na primeira hora de vida, a criança está muito ávida pelo contato com a mamãe; afinal o parto é uma separação brusca, traumática e, colo e peito de mãe significam segurança e conforto! ”
O casal olhava para mim como se eu significasse a garantia da amamentação plena e satisfatória de João, seu filhinho.
Fomos todos juntos caminhando para a sala de cirurgia. Não houve dificuldades com os preparativos iniciais de monitorização materna, punção venosa, anestesia e assepsia. Paulo acompanhou todos estes cuidados ao lado de Maria, com muita serenidade. Cuidei do ambiente para que ficasse mais acolhedor: reduzi a iluminação, desliguei o ar condicionado e coloquei uma música tranqüila para tocar baixinho. O parto não teve intercorrências. O bebê foi retirado com muita delicadeza. Dr. R. acolheu João nos braços, afastou-o do foco de luz, limpou sua boquinha e afagou suas costas para estimular a respiração. Cortou o cordão umbilical somente quando este parou de pulsar, indicação da interrupção do fluxo sangüíneo entre mãe e filho. João chorou pouco, muito pouco. O Dr. Roberto, o obstetra – é um profissional muito experiente, calmo e acredita que o parto é um momento único, íntimo e especial na vida de um casal e defende a idéia de que o nascimento deve ser o menos traumático possível. Procuramos promover o que chamamos de “parto humanizado”. Acreditamos que o recém-nascido, estando em boas condições de saúde, deve permanecer prolongadamente junto da mãe e do pai na sala de parto mesmo que este ainda não tenha sido concluído. É uma maneira simples e essencial para se estabelecer e fortalecer vínculos familiares, laços de amor. Existe um falso mito de que um recém-nascido deve chorar forte nos primeiros minutos da vida. Ainda existem médicos obstetras que “recebem” o bebê puxando-o firmemente pela cabeça e depois pendurando-o pelos pezinhos de cabeça para baixo e/ou batendo-lhe nas nádegas para que ele chore logo. Esses obstetras exibem (com prazer) este choro aos pais como uma garantia da saúde do bebê, um atestado de que a gestação e o parto foram “bem conduzidos” e “bem sucedidos”. Quanto mais manuseado, manejado, maior e mais duradouro será o choro do bebê. Reduzir os estímulos aplicados ao recém-nato deveria ser preocupação do obstetra, do pediatra e da enfermeira. Será que tantos manejos são necessários em todos os casos, com todas as crianças? Não é um manuseio excessivo para um ser humano que acabou de sair do aconchego e da segurança que a mãe lhe ofereceu até agora? Por que não acariciá-lo mais e com o mesmo encantamento e delicadeza que manifestamos a um filhotinho de animal? IMEDIATAMENTE APÓS O PARTO Maria e Paulo se emocionaram ao ouvir o chorinho de João e vendo-o passar nas mãos da enfermeira para a avaliação do neonatologista. João foi submetido ao que é chamado primeiros cuidados com o recém-nascido*. Maria observou, atenta, a avaliação realizada pela pediatra: o bebê foi colocado no berço aquecido localizado próximo à cabeceira da mesa de cirurgia. E durante os procedimentos a mãe conversou com João repetindo em voz alta que o amava muito. Paulo, mais próximo do berço, não tirou os olhos do bebê observando suas reações aos cuidados prestados a ele. O bebê chorou cada vez mais e mais forte, o que, de certa forma acalmou os pais no que se referia à sua vitalidade.
O pediatra é um profissional obrigatório em sala de parto. É seu papel verificar as condições vitais do nascimento da criança e informar os pais sobre o resultado desta avaliação.
Segundo o Dr. Gabriel – pediatra e neonatologista – este profissional deveria ser um expectador atento do nascimento. Deveria interferir e intervir apenas essay quando e se necessário, e esperar pela adaptação espontânea e natural do recém-nascido ao nosso meio ambiente. Assim, a manipulação da criança seria bastante minimizada uma vez que este primeiro exame é uma estimulação intensa e traumática. Ele diz: “pediatra só atrapalha o que deveria ser um acontecimento natural e fisiológico!”. * Padronizou-se a avaliação de alguns quesitos durante o primeiro exame do recém-nascido, assim como a execução de alguns cuidados imediatos, descritos a seguir. 1- enxugar, principalmente a cabeça, a fim de evitar perda excessiva de calor; 2- auscultar o coração e os pulmões; 3- aspirar as vias aéreas (nariz, boca) e estômago, utilizando uma sonda plástica, para facilitar a eliminação de líquido amniótico destas regiões; 4- administrar de oxigênio, quando necessário; 5- avaliar o tônus muscular, alguns reflexos e a coloração da pele; 6- fazer inspeção de todo o corpo a fim de identificar anomalias anatômicas como, por exemplo, ânus não perfurado, dedos extras nas mãos ou nos pés, tumorações, fraturas, malformações, etc. 7- aplicar nitrato de prata em colírio (CREDÊ) nos olhos do bebê para prevenir infecções oculares passíveis de serem transmitidas pela mãe durante a passagem da criança pelo canal de parto. Obs.: o Crede é obrigatório por lei e é realizado também nas crianças nascidas através de cesareana. 8- verificar peso, estatura e outras medidas como perímetro cefálico e perímetro torácico; 9- identificar o bebê, colhendo suas impressões plantares e colocando pulseiras de identificação no braço e perna; 10- administrar Kanakion (vitamina K) via intramuscular para prevenir a Doença Hemorrágica do Recém-Nascido. 11- atribuir uma nota ao recém-nascido (Teste de Ápgar) de zero a dez que retrata as condições vitais da criança no primeiro, quinto e décimo minuto de vida.. Como profissionais da saúde, zelamos por saúde. Será que todos estes procedimentos são tão urgentes? Precisam ser executados mesmo que o bebê tenha um nascimento sem intercorrências e que sua mãe tenha feito um controle pré-natal cuidadoso? Por que tudo isto precisa acontecer nos primeiros 10 minutos de vida? Hoje em dia, na maioria dos serviços privados, estes cuidados são realizados dentro da sala de parto e na presença do pai. Alguns dos itens acima descritos poderiam ser realizados posteriormente, depois que o bebê já estivesse tranqüilo e seguro nos braços da mãe. A interferência precoce e desnecessária é uma invasão, uma agressão que perturba o estado psíquico do recém-nascido, deixando-o irritado, tenso, estressado. Do ponto de vista Winnicottiano, a linha de continuidade do bebê é quebrada por estes procedimentos, provocando uma interrupção no desenvolvimento emocional primitivo. O PRIMEIRO CONTATO MÃE E FILHO Levei o bebê até Maria enrolado num tecido cirúrgico, colocando seu rosto de tal forma que ela pudesse admirar e identificar suas feições. A cirurgia ainda não havia terminado. Incentivei Maria a tocar no seu filho, sentir sua pele, seu cheiro e seu calor e acomodá-lo em seus braços. Assim sendo, ainda emocionada e com voz carinhosa repetiu para o bebê que o amava muito. Paulo ficou próximo a eles o tempo todo e também tocava o filho admirando-se da maciez de sua pele. João parou de chorar por completo assim que sentiu a presença e o toque da mãe. Logo, ele começou a abrir a boquinha e “procurar” pelo seio materno, tentando se arrastar pelo colo dela. Neste momento, a pediatra se aproximou do casal informando-os que o bebê passava muito bem, pesou mais do que o esperado (2400g) e recebeu notas 9 e 10 no teste de Ápgar*. Autorizou que João permanecesse conosco na sala de parto para a primeira mamada e para que Paulo lhe desse o primeiro banho. Subitamente, Maria mudou a expressão do seu rosto e com um olhar transtornado me perguntou: “Está tudo bem com o meu filho? Ele é perfeito? Ele é normal? Por que ele tem os olhinhos rasgados? Ele não tem nenhuma síndrome, tem?” E, em pânico, voltou-se para Paulo repetindo as mesmas perguntas e pedindo que nós não lhe escondêssemos nada. Verbalizou que sempre sentiu pavor de pensar na possibilidade de ter um filho sindrômico, referindo-se à síndrome de Down. A partir daí, parou de olhar e de fazer carinhos no bebê e pediu para falar com a pediatra novamente. Ficou muito agitada, assustada. Todos nós da equipe do Dr.Roberto fomos surpreendidos pelo pavor repentino de Maria. Eu não sabia o que dizer e apenas repeti as palavras da pediatra, mas isto não a convenceu de que seu filho “era normal”. A situação foi ficando tensa e Paulo também começou a ficar nervoso com as dúvidas de sua esposa. Então, o anestesista interferiu. Tomou o bebê dos braços da mãe e o segurou próximo à ela dizendo enfaticamente: “ Não há problemas com seu filho! Ele é normal, está aqui, tranqüilo e perfeito. Você não pode ficar procurando problemas onde não existe. A pediatra não disse que está tudo bem com ele? Você não pode deixar de aproveitar este momento: o João quer mamar!” Percebi que a atitude do anestesista também não a acalmou, foi uma interferência intempestiva e inadequada pois a sua grande experiência profissional está muito mais voltada para adultos do que para bebês. Como ele poderia ter tanta convicção de que não havia anormalidades com o recém-nascido? Esta atitude colocou em risco a credibilidade de Maria em relação a todos os outros profissionais. Maria girava os olhos pela sala de parto procurando pela pediatra cada vez mais aflita, desacreditando em todos nós. Tomei o bebê das mãos do anestesista, coloquei-o de volta no berço aquecido e, só então, observei características da síndrome de Down: olhos amendoados com as fendas palpebrais oblíquas, orelhas pequenas com implantação baixa em relação à linha dos olhos, dificuldade para manter a língua na boca, prega palmar única, hipotonia do pescoço, perfil achatado. Como eu não havia prestado atenção antes?!!! Segundo o Dr.Roberto, foi feito o ultra-som de translucência nucal na 12ª semana de gestação (exame rotineiro nesta fase) e o resultado foi negativo para síndromes congênitas. Nestes casos, especialmente para gestantes com idade superior a 35 anos, é recomendado fazer a punção intra-uterina de líquido amniótico para o diagnóstico precoce de síndrome de Down. No entanto, Maria e Paulo decidiram não fazer este exame alegando que desejaram muito esta gravidez e que estavam preparados para enfrentar qualquer situação. Dr.Roberto começou a conversar com Maria pedindo-lhe calma enquanto ia terminando a cirurgia. Aproveitei a ocasião, saí da sala para localizar a pediatra. Para minha surpresa, a doutora me aguardava do lado de fora da sala porque levantou a hipótese de síndrome de Down mas queria que eu a avisasse sobre o término da cirurgia para poder dar a notícia aos pais. Então, pedi que ela fosse conversar com eles naquele momento por causa da angústia de Maria e do desejo dela de saber a verdade. Voltamos à sala. A pediatra, com uma postura delicada mas muito firme, confirmou as suspeitas maternas e esclareceu que o diagnóstico definitivo é feito através do cariótipo da criança, exame cujo resultado só ficaria pronto em 15 dias. Informou, também, que não percebeu alterações clínicas cardíacas, problema bastante freqüente nas crianças que têm a síndrome mas, solicitou um exame de ecocardiografia para avaliar melhor o coração de João. A REAÇÃO DE MARIA E PAULO “Eu não estou preparada para isto”, exclamou Maria. “Meu Deus, a vida inteira tive medo de ter um filho assim!” Ouvindo o desespero da esposa, Paulo a interrompeu dizendo: “Maria, qualquer que seja o diagnóstico, o João é o nosso filho, o filho que tanto desejamos!” Então, foi a vez do Dr.Roberto: “Maria, vocês quiseram muito um filho. O João é fruto do amor de vocês. Vamos tentar ser pacientes para esperar pelo diagnóstico. Vocês têm o meu apoio para lidar com o bebê.” Deste momento em diante, Maria foi se acalmando. Durante alguns minutos pareceu estar fora dali, ausente, como se estivesse revendo seus conceitos, seus valores. Olhava para o Paulo buscando apoio, cumplicidade, como se tentasse se eximir da culpa de ter gerado um filho sindrômico. O parto terminou. Neste momento de crise, a equipe se dividiu. O anestesista, a instrumentadora cirúrgica, a enfermeira do hospital, o outro obstetra que auxiliou no parto, todos falavam sem parar, tentando convencê-la de que estava tudo bem, não havia com o que se preocupar. Dr.Roberto e a pediatra deram um suporte positivo ficando ao lado e se colocando à disposição para conversar, esclarecer dúvidas. Eu preferi o silêncio e também permaneci ao lado de Maria o tempo todo: com uma das mãos segurei a mão dela e com a outra alcancei o berço e acariciei o bebê continuamente. João estava bem quieto, de olhos abertos, como se observasse o que se passava ao redor. Esperei que todos saíssem, que Maria “acordasse” do pesadelo. Só então, ela perguntou pelo filho, olhou para o berço e para o marido, procurando-o. E lembrou: “ele não vai mamar?” Eu disse: “vai, sim! Ele está aqui abrindo a boca e procurando alguma coisa mas ele é um menino “comportado” e esperou por você. Maria sorriu e Paulo também. Recebeu o bebê com carinho, aconchegando-o junto ao peito e sorriu admirada ao vê-lo – tão pequeno – rapidamente pegando o seu mamilo e sugando com força. Fiz uma ordenha suave no outro mamilo e mostrei a ela que seu colostro já estava sendo liberado e aproveitado pelo filho. Elogiei o desempenho de João: ele nos mostrou bastante habilidade e, certamente, iria ganhar peso com facilidade. A mamada durou uns 20 minutos. Durante este tempo, incentivei Paulo a continuar tocando e acariciando o bebê. Maria foi levada para o seu quarto, esgotada, exausta, acompanhada de Paulo que lhe fez carinhos o tempo todo. A amamentação é um encontro onde mãe e filho têm que estar prontos para o contato. In this organized same, growth Somente depois de todo o tumulto Maria estava em condição de acolher o filho nos braços e amamentá-lo. A mãe havia me procurado com uma preocupação inicial sobre o alimento físico e o manejo nos mostra que este alimento precisa vir acompanhado de um estado de tranqüilidade. Um manejo adequado minimiza os danos psicológicos e fortalece o vínculo afetivo. No caso de um bebê portador de síndrome de Down, a amamentação é especialmente importante porque a sucção no peito é um intenso estímulo neurológico e motor que ajuda a criança a desenvolver habilidades como a coordenação motora, tônus muscular, a mastigação e a fala. Devemos ressaltar ainda que o sistema imunológico é deficiente e, mais uma vez, o aleitamento deve ser incentivado para a prevenção contra doenças infecciosas devido à alta concentração de anticorpos e outros fatores de defesa existentes só no leite humano. A mãe tem o direito de sentir rejeição. A manifestação deste sentimento precisa ser ouvida com atenção, acolhida por quem está ao seu lado para podermos ajudá-la a lidar com os próprios sentimentos. Do contrário, ela se sentiria reprimida e seria mais difícil a reaproximação com o filho, comprometendo o estabelecimento de um vínculo mãe e bebê consistente, verdadeiro, fundamento da saúde psicossomática da criança.
SÃO PAULO, ABRIL / 2008.