A mãe suficientemente boa

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Gerda Boyesen, a mãe suficientemente boa descrita por Winnicott.

Artigo publicado na Revista Reichiana numero 11, São Paulo, 2002:

  Chamar Gerda Boyesen de a mãe suficientemente boa é uma metáfora para descrever posturas do psicoterapeuta biodinâmico que vão levar a um holding e a um manejo suficientemente bom na prática clínica, oferecendo ao paciente algo de fundamental importância: a oportunidade de Ser. O presente artigo tem por objetivo: I ) ampliar o conhecimento sobre a questão maníaco-depressiva por intermédio da descrição de um caso clínico atendido por Gerda Boyesen e através das visões da Psiquiatria, da Medicina chinesa, da estrutura de caráter descrita por David Boadella e da defesa maníaca descrita por D. W. Winnicott; II ) estabelecer conexões entre os conceitos de Winnicott e a Psicologia Biodinâmica de Gerda, usando para isto o caso de psicose maníaco-depressiva (o paciente Oscar), tratado por ela. Neste tratamento, Gerda usa técnicas de massagem como um manejo suficientemente bom, que possibilita o restabelecimento dos ritmos internos psíquicos e orgânicos do paciente. Por um lado, ela atua como pai que dá limites, quebrando a relação fusional (simbiótica) entre o paciente e sua mãe. Por outro, ela funciona como mãe suficientemente boa, que propicia a retomada do desenvolvimento emocional primitivo e lida com aspectos do paciente relativos à fase da posição depressiva, fortalecendo o ego e o despontar do verdadeiro self de Oscar. O pediatra inglês D. W. Winnicott iniciou sua vida profissional na década de 20, num hospital infantil. Ao cuidar de crianças com doenças orgânicas, ficou inconformado com as explicações etiológicas puramente orgânicas. Em sua busca por explicações mais consistentes, estudou a obra de Freud e aprofundou seus estudos com Melanie Klein, de quem divergiu em alguns pontos. Desenvolveu suas pesquisas de forma independente, escrevendo artigos que foram publicados sob o título de Textos selecionados da Pediatria à Psicanálise (1978). Como psicanalista, Winnicott pertence à escola das relações objetais. Em termos da psicologia do desenvolvimento infantil conceitua as seguintes fases: a) desenvolvimento emocional primitivo, no qual devem ocorrer os processos de integração, personalização e contato com a realidade. Esta teoria foi criada por ele, baseada no tratamento de pacientes psicóticos, na observação sistemática de milhares de relações entre bebês e suas mães e no relato materno e de outros familiares sobre a história do desenvolvimento da criança. Esta fase, que é de dependência absoluta do bebê em relação a sua mãe, vai desde o nascimento até por volta dos cinco ou seis meses de idade, período em que o psiquismo está em formação. O bebê está fusionado com a mãe, a relação é de unidade (unipessoal); b) posição depressiva, baseada nos conceitos de Melanie Klein, em que o bebê já se percebe como uma pessoa total e é capaz de sentir culpa ou responsabilidade por sua voracidade (amor implacável) em relação a sua mãe, que também é percebida como uma pessoa total. O bebê apresenta por vezes sinais clínicos de depressão, que, entretanto, não têm sentido patológico. Esta fase, de dependência relativa do bebê em relação a sua mãe, vai mais ou menos dos seis meses até os dois anos e meio de idade. A relação é diádica (bipessoal) entre o bebê e a mãe; c) fase edípica, baseada nos conceitos de Freud sobre a sexualidade humana, na qual aparece a possibilidade do terceiro na relação. Esta fase, de independência ou interdependência do bebê em relação a sua mãe, se inicia por volta dos três anos de idade. A relação é triádica (tripessoal) entre mãe, bebê e um terceiro, que geralmente é o pai. Obs.: quando fala da mãe, Winnicott refere-se à mãe ou mãe substituta, e à mãe-ambiente. A norueguesa Gerda Boyesen é fisioterapeuta e psicóloga. Ao trabalhar como fisioterapeuta no Instituto Bülow-Hansen, na década de 40, observou fortes reações emocionais e comportamentais em seus pacientes. Em busca de compreensão para tais reações, aprofundou seus estudos em Psicologia. Como psicóloga, é de formação reichiana, e fez terapia com Ola Raknes, importante discípulo de Reich. Gerda criou a teoria da Psicologia Biodinâmica, segundo a qual o conceito de psicoperistalse como forma de auto-regulação do organismo é de fundamental importância no tratamento das patologias. Desenvolveu uma série de técnicas de massagem para lidar com as couraças muscular, tissular e visceral, eliminando os resíduos de stress e restabelecendo a circulação libidinal e a saúde psicossomática do paciente. Em seu livro Entre Psiquê e Soma (1986), Gerda descreve sua trajetória profissional, suas pesquisas, e o tratamento de um paciente psicótico maníaco-depressivo. Ela é considerada uma terapeuta neo-reichiana; seu trabalho está baseado em sua vasta experiência clínica, em conceitos reichianos e no desenvolvimento psicossexual infantil, em que podem ocorrer fixações e bloqueios da energia libidinal nas fases ocular, oral, anal e genital. Sobre a teoria winnicottiana existem inúmeras publicações, mas a respeito da Psicologia Biodinâmica o material é ainda escasso. Embora os psicoterapeutas biodinâmicos observem resultados notáveis em sua prática clínica, ela ainda carece de uma melhor formulação teórica. Assim, este artigo tem a intenção de ser uma pequena contribuição para o assunto. Ao ler os artigos de Winnicott e Gerda, fico profundamente impressionada com a paixão que ambos tinham pela pesquisa e pela prática clínica, pelo amor aos seus pacientes, por sua disponibilidade e por sua compaixão pelo sofrimento humano. Winnicott fala da importância da mãe, que mantém a continuidade da linha de existência do bebê. Assim, também, o terapeuta suficientemente bom é o que contém e mantém a linha de continuidade do processo terapêutico do paciente, por intermédio de sua integridade psicossomática, sua confiabilidade e a constância tanto de suas atitudes quanto do setting. Para ilustrar a importância da continuidade, relato aqui uma história contada por Dean Ornish (1998) em seu livro Amor e sobrevivência, a intimidade que cura:

¨Existe uma tribo na África oriental onde a arte da verdadeira intimidade é fomentada mesmo antes do nascimento. Nessa tribo, o aniversário de uma criança não é contado a partir do dia do seu nascimento físico, nem a partir do dia da sua concepção, como em outras culturas primitivas. Para essa tribo, a data do nascimento é contada a partir da primeira vez em que a criança é um pensamento na mente da mãe. Consciente da intenção de ter um filho com determinado homem, a mãe sai de casa e se senta sozinha debaixo de uma árvore. Fica sentada, atenta, até ouvir a canção do filho que ela espera conceber. Quando ouve a canção, volta para o povoado e a ensina para o pai, para que possam cantar juntos e então fazem amor, convidando a criança a se juntar a eles. Depois que a criança é concebida, ela canta para o bebê no seu ventre. Depois ensina a canção para as velhas e parteiras da tribo, para que através do trabalho de parto e do milagroso momento do nascimento a criança seja recebida com essa canção. Depois do nascimento todos os habitantes da tribo aprendem a canção do novo membro da comunidade e a cantam para a criança quando ela cai ou se machuca. A canção é cantada nos momentos de triunfo, ou nos rituais e iniciações. Essa canção torna-se parte da cerimônia do casamento quando a criança cresce e, no fim da sua vida, seus entes queridos reúnem-se em volta do seu leito de morte para cantar a canção pela última vez.¨

Imagine-se a sensação de intimidade para quem cresce em uma família, em um povoado, onde se é tão completamente visto, ouvido e amado! A canção de amor da história pode ser considerada como o objeto transicional que simboliza a mãe e é o fio condutor que garante a continuidade, a unidade do self e a integração psicossomática da vida da criança. A comunidade coesa funciona com rede de sustentação (holding), e através da canção reconhece a individualidade e identidade de cada pessoa da tribo. Tanto Winnicott quanto Gerda mantêm com seus pacientes uma intimidade que cura, um amor que leva à sobrevivência e a um viver melhor. Na época em que Gerda trabalhava em um hospital psiquiátrico em Dikemark, na Noruega, conheceu Oscar, paciente internado e tratado com quimioterapia, sem grandes resultados. Ela propôs à mãe de Oscar um tratamento com massagem biodinâmica, que seria realizado fora do hospital. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM IV, Oscar seria classificado atualmente como 296.5, transtorno bipolar com aspectos psicóticos. Essa patologia é descrita por Kaplan (1993) no Compêndio de Psiquiatria Clínica como transtornos que constituem um grupo de condições clínicas caracterizadas por uma perturbação no humor, que pode ser exaltado ou deprimido, uma perda do senso de controle e uma experiência subjetiva de grande sofrimento. Essas perturbações sempre resultam em comprometimento do funcionamento interpessoal, social e profissional. Pacientes com humor exaltado demonstram expansividade, infatigabilidade, fuga de idéias, sono diminuído, auto-estima elevada, idéias de grandeza, rebaixamento das faculdades críticas e otimismo delirante. Pacientes com humor deprimido demonstram perda de energia e de interesse, sentimentos de culpa que podem chegar a ser delirantes, dificuldade de concentração, auto-estima baixa, sentimentos de impotência e pensamentos de morte e de suicídio. Outros sinais e sintomas do transtorno bipolar incluem alterações no nível de atividade, nas capacidades cognitivas, no discurso e nas funções vegetativas, tais como sono, apetite, atividade sexual e outros ritmos biológicos. O tratamento de Gerda com Oscar atuou diretamente sobre essas disfunções vegetativas. Embora Kaplan afirme que a etiologia do transtorno é desconhecida, relata que pesquisas apontam para uma base genética. Exemplo disso é a incidência dessa patologia em gêmeos monozigóticos, que é de 67%. O prognóstico é de que 40% dos casos se tornam crônicos, o que não ocorreu com Oscar. Em relação à questão etiológica de distúrbios emocionais, Winnicott (1948) comenta: “estou dizendo que o lugar adequado para se estudar a esquizofrenia, a depressão maníaca e a melancolia é o quarto da criança e, se isto for verdadeiro, pode-se dizer que algumas correntes modernas da Psiquiatria estão gastando seu esforço em vão.” Embora Kaplan recomende psicoterapia cognitiva, a maior ênfase é dada à farmacoterapia. A conduta na fase maníaca é dar medicamentos anticonvulsivantes ou tranquilizantes maiores (neurolépticos). E, na fase de depressão, receitar antidepressivos convencionais (tricíclicos ou tetracíclicos), com grande cuidado pois na emergência de sintomas maníacos há risco de suicídio. Assim, o lítio (substância estabilizadora do humor) é considerado um agente farmacoterápico de primeira linha para esses casos. É impressionante o número de pesquisas e a variedade de medicamentos disponíveis para tratamento do transtorno bipolar. As vantagens do tratamento químico são sua fácil administração, seu baixo custo, a possibilidade de ser ministrado a um grande número de pessoas e a contenção dos sintomas. Já um tratamento como o feito por Gerda com Oscar é muito mais oneroso, tanto em termos financeiros quanto em relação à disponibilidade de tempo e ao desgaste humano do terapeuta. Gerda tratou de Oscar durante três anos, e quando ele voltou ao hospital para ser novamente examinado os médicos não encontraram traço algum de tendências maníaco-depressivas. Concluíram que seu diagnóstico inicial estava errado. Enquanto o enfoque da Psiquiatria Clínica no transtorno bipolar recai sobre as alterações bioquímicas dos neurotransmissores adrenalina e serotonina, o enfoque de Gerda recai sobre as alterações energéticas e rítmicas do organismo. Esta maneira de olhar para a questão se aproxima da visão da Medicina chinesa. Na Medicina chinesa as doenças são vistas como padrões de desequilíbrio no fluxo energético e na dinâmica funcional de distribuição de energia, gerando como conseqüência alterações bioquímicas, reações emocionais e distúrbios comportamentais. Na fase maníaca, o paciente está com excesso de energia Yang e apresenta: calor, hiperatividade psicomotora, expansividade, excesso de atividade mental, fluxo da energia para cima e para fora (falta grounding energético), hiperfuncionamento do sistema nervoso simpático. Na fase de depressão o paciente está com excesso de energia Yin e apresenta: frio, atividade psicomotora reduzida, retração, excesso de atividade mental, fluxo da energia para cima e para dentro (falta grounding energético), hiperfuncionamento do sistema nervoso parassimpático. No Tratado de Medicina Chinesa (1993) recomenda-se psicoterapia e tratamento com a técnica da acupuntura para reequilibrar o funcionamento das polaridades energéticas Yin e Yang. Ao tratar de Oscar, Gerda não se deixou aprisionar pelo estereótipo do diagnóstico de psicose maníaco-depressiva. O mais importante não era a doença, mas o paciente visto como uma pessoa total em sua individualidade. Ela se baseou num diagnóstico energético e no princípio reichiano que afirma que a energia do orgônio se dirige para as concentrações maiores de energia, e, depois, em seu apogeu, muda de direção. Isto parece ter equivalência na teoria chinesa, que afirma que a energia Yang atrai Yang e a energia Yin atrai Yin, até um ponto máximo em que a energia Yang se repolariza em energia Yin, e esta, em seu ponto máximo, se repolariza em energia Yang. Assim, o tratamento visa à harmonização dessas polaridades, para que a dinâmica de funcionamento energético ocorra sem tantos excessos, ou seja, para que o funcionamento do sistema nervoso simpático e parassimpático ocorra sem atingir pontos de atividade máxima, permitindo a auto-regulação do sistema nervoso autônomo e o reequilíbrio do ritmo das funções vegetativas. Em Entre Psiquê e Soma (1986), Gerda descreve seu

¨(…) espanto ao observar as mudanças súbitas não só de personalidade, mas as de fisionomia a que estavam sujeitos os pacientes maníaco-depressivos. Durante a fase maníaca a pele estava inchada com uma forte distorção nas membranas de superfície. Depois, de repente, quando a depressão se instalava, a pele se tornava enrugada como se não restasse mais nenhum fluido nos tecidos. Na fase maníaca da doença a quimiostase (estase de resíduos metabólicos, que por não serem eliminados tornam-se patogênicos) tem uma direção centrífuga. A energia que vai para o exterior chega a um ponto de saturação na região periférica e, quando os tecidos estão cheios, a energia deve então voltar ao interior, de maneira centrípeta, levando assim à depressão, que é sintomatizada pela contração das membranas periféricas. Assim, a alternância entre os períodos maníacos e os períodos depressivos se deve a uma alternância energética entre os movimentos centrífugos (Yang) e os movimentos centrípetos (Yin), que têm uma seqüência rítmica afetada pela produção de Quimiostase. Indo mais longe, podemos ligar isto aos ritmos pulsatórios presentes em todas as células vivas. Portanto, se tratarmos um paciente maníaco-depressivo com a massagem psicoperistáltica, devemos fazê-lo durante o período maníaco, quando as membranas de superfície estão cheias de quimiostase. Isto poderá facilitar a descarga abdominal e a eliminação de acumulações tóxicas antes que o ponto de saturação seja atingido e que a quimiostase se torne inacessível. As membranas dos órgãos internos não podem, é claro, ser massageadas diretamente.¨

Pela conceituação da Medicina chinesa, os órgãos internos podem ser beneficiados energeticamente através dos canais principais de energia que correm sob a pele, chamados meridianos, e que por sua vez se ligam a canais secundários, que vão até os órgãos. Para isso podem ser usadas várias técnicas de estimulação ou de sedação, tais como massagem, acupuntura e moxabustão (uso de calor local por meio da queima da erva artemísia sobre pontos na pele), além de técnicas de movimento tais como tai chi chuan e kung fu. Na compreensão da Medicina chinesa, cada pessoa é um biossistema energético integrado, chamado microcosmo (que pode estar em maior ou menor equilíbrio), que interage com o biossistema do Universo, denominado macrocosmo. Tal interação se dá em graus de intensidade variada, conforme cada indivíduo e seu respectivo ambiente. Gerda observa os pacientes em mania e diz: “parece que toda a energia do Universo está à sua disposição.” É interessante observar o que acontece nas chamadas ‘noites brancas’, que ocorrem no verão nas latitudes altas do Hemisfério Norte, em que os dias se tornam muito longos e praticamente não há noite. Esse fenômeno desencadeia nas pessoas um estado de excitação ‘maníaco’ considerado normal, e comunidades inteiras se põem a festejar por dias, dormindo muito pouco. Note-se que a Psiquiatria Clínica descreve o transtorno bipolar com características sazonais, pois na primavera ocorre um número maior de surtos maníacos, e no outono há maior incidência de depressões. Descrevo aqui uma releitura do caso Oscar – sua história, seu tratamento e seus resultados -, atendido por Gerda sob um enfoque winnicottiano. A mãe de Oscar passou por um período de depressão durante a gestação, pois seu marido teve problemas com o próprio pai, que era também seu patrão. Por conta disso, o casal teve que mudar de cidade, e isso foi muito difícil para ela. Oscar nasceu cianótico, e só conseguiu falar aos cinco anos de idade, sendo considerado intelectualmente rebaixado. Fez seus estudos primários sem problemas, mas precisou de uma professora particular para os estudos secundários. Sempre esteve próximo de sua mãe, que o dominava e protegia. Sempre houve uma grande tensão entre ele e o pai, e desde os dezoito anos Oscar vivia longe dele. Então, quando chegou aos 36 anos, a situação forçou-o a viver novamente com o pai. Este fato trouxe à luz da consciência sentimentos agressivos muito fortes, que culminaram numa psicose maníaco-depressiva. Por essa descrição, é possível imaginar que a relação de Oscar com sua mãe era simbiótica, e que seu pai funcionava como um objeto persecutório, desencadeando reações paranóides e o primeiro surto psicótico em Oscar. Segundo Gerda (1986), a força libidinal de Oscar foi encapsulada por causa do traumatismo do nascimento e das condições da vida pré-natal. A vida de Oscar havia começado mal: a angústia resultante do traumatismo do nascimento e a quimiostase (conflito) paralisaram tanto a sua garganta que ele não conseguia pegar o seio e o leite saía pelo nariz. Durante o tratamento, Oscar passou por períodos de regressão súbitos – urinando e defecando no chão, chorava muito e lamentava-se dizendo coisas como “quero voltar para perto de Deus, por que foi que eu nasci se não posso fazer aquilo a que fui destinado?” Certo dia Oscar acordou como se fosse um bebê de uns três meses que não conseguia levantar a cabeça; ficava deitado olhando para seus dedos e emitindo sons de um bebê, Gerda, como terapeuta-mãe suficientemente boa, permitiu que Oscar vivesse a regressão à dependência na transferência, oferecendo holding com sua presença e acolhimento, sendo auxiliada permanentemente pela mãe e pela empregada do paciente. Usou diferentes técnicas de massagem, conforme o momento e a necessidade de Oscar, como um manejo suficientemente bom. Por vezes a massagem biodinâmica é uma técnica que pode mobilizar conteúdos emocionais recalcados, que serão elaborados durante o processo terapêutico. Outras vezes, a massagem é um poderoso instrumento terapêutico, que pode dar ao paciente a sensação de ser segurado, nutrido, ninado, protegido e vinculado, reparando aspectos da falha materna. Para Winnicott (1983), “o que traumatiza é a repetição da falha materna (tanto da mãe pessoa como da mãe ambiente). (…) A mãe suficientemente boa é monótona e adapta-se ativamente aos ritmos e às necessidades do bebê, sem se ressentir por isso. Ela cria um ambiente emocionalmente estável e protegido de excessos de estímulos sensoriais (luz, som, temperatura, movimentação, etc.), evitando choques” – ou o reflexo de sobressalto que, para Gerda (1986), é o que perturba a circulação libidinal, gerando padrões de stress e as couraças como forma de defesa. Ao cuidar de Oscar, Gerda respondeu aos chamados da mãe com grande disponibilidade. Por exemplo, ao atender o paciente à 1 hora da manhã. Ou massageando o paciente pelo tempo que julgava necessário, ou seja, até que o edema da garganta desaparecesse, ou que a peristalse voltasse a funcionar (abrir), ou que Oscar adormecesse, dependendo do que acontecia naquele ponto do processo terapêutico. Ela chegou a realizar sessões de até cinco horas de duração! O trabalho de Gerda, ao lidar com as couraças – tissular, muscular e visceral -, levou ao descongelamento do trauma do nascimento, assim descrito por ela:

“(…) eu achava que os choros do nascimento viriam na forma de uma enorme ab-reação do trauma, mas [eles]vieram chegando muito gradualmente, como um som muito baixo que se desenvolvia na garganta; ele estava quase inconsciente quando aconteceu. Seus olhos estavam afundados nas órbitas. Cada vez que sobrevinha o som do nascimento, o corpo de Oscar se estirava na posição característica do recém-nascido. Se ele estivesse antes sentado numa cadeira e depois se visse no chão, ele não tinha nenhuma lembrança do que havia ocorrido. Isto continuou por muitos dias e, uma certa manhã, veio o grande grito, com o som e todos os reflexos corporais do nascimento. Aí ele começou a dizer: ‘Estou na vida? Eu não estou vivo!’ Se considerar-se toda sua vida, é verdade que ele nunca estivera realmente vivo até este dia. Quando ele percebeu lentamente que estava na vida, disse que queria voltar para Deus e que as vozes em sua cabeça lhe diziam para se matar, que devia ir até o mar e se afogar. Era uma tal tristeza… Seu espírito estava preocupado com o problema da vida e da morte em termos de filosofia infantil: ‘As moscas têm consciência de que estão vivas? Spot (seu cachorro) sabe que está vivo? Será que a gente deve ter pena das coisas mortas?’

Segundo Boadella (1974), perturbações na primeira fase do desenvolvimento infantil (fase ocular) geram defesas de caráter esquizo-histéricas, nas quais o terror de aniquilamento e o pânico de contato são aspectos fundamentais. As questões primordiais que se colocam são a formação de identidade e o direito a existir, e as necessidades de ter um lugar no mundo, de ser amado, de estabelecer relações de confiança e de sentir-se vinculado e pertencente. Essas necessidades de Oscar foram atendidas por Gerda como terapeuta-mãe e com a ajuda da própria mãe dele. Ainda segundo Boadella (1974), perturbações na segunda fase do desenvolvimento infantil (fase oral) geram defesas de caráter oral-paranóide. O direito básico é o de ser sustentado (holding) e nutrido. Esta fase está ligada a mecanismos de introjeção (engolir o leite) ou projeção (cuspir ou vomitá-lo). É importante não só a qualidade do alimento mas a forma com que a mãe alimenta. A mãe intrusiva pode gerar no bebê duas reações principais: a) defesa oral – excesso de introjeção -, na qual o bebê desenvolve um self adaptativo, submisso, engolindo em excesso, segundo a necessidade da mãe de alimentá-lo; b) defesa paranóide – excesso de projeção -, na qual o bebê desenvolve um self reativo, cuspindo em excesso para tentar evitar a invasão que o alimento dado pela mãe representa e que não corresponde às suas necessidades. Pela descrição de Gerda, a amamentação de Oscar foi um processo intrusivo, talvez na forma paranóide, pois ele não só tinha dificuldade para engolir o leite como este saía pelo nariz. É possível que aqui esteja o início da reação paranóide de Oscar, que mais tarde vai se manifestar como defesa maníaca. Como terapeuta-mãe suficientemente boa, Gerda procura adaptar-se ativamente aos ritmos e necessidades de Oscar, sem ser intrusiva. Ao olhar para a história de Oscar sob um enfoque winnicottiano do desenvolvimento emocional primitivo, são encontradas perturbações nos processos de integração, personalização e contato com a realidade. Esta fase é de dependência absoluta do bebê em relação à sua mãe. O primeiro desses processos, o de integração, é descrito por Winnicott (1945) da seguinte forma:

“Por vezes, se supõe que o indivíduo saudável está sempre integrado, vivendo dentro do próprio corpo e capaz de sentir que o mundo é real. Muitas vezes, no entanto, a saúde tem uma qualidade sintomática, estando carregada de medo ou negação da loucura, medo ou negação da capacidade inata que todo ser humano tem de se tornar não-integrado, despersonalizado, e de sentir que o mundo é irreal. Uma falta suficiente de sono produz essas condições em qualquer um.”

Winnicott postula um estado de não-integração primário do bebê, que é a base para um processo de integração ou desintegração. O atraso ou o fracasso da integração primária predispõe à desintegração como uma regressão. A desintegração da personalidade é uma conhecida condição psiquiátrica e sua psicopatologia é altamente complexa.

“A integração começa logo no início da vida mas em nosso trabalho nunca podemos tomá-la como algo natural. Temos que levá-la em consideração e observar suas flutuações. Um exemplo de fenômeno de não-integração é fornecido pela experiência muito comum do paciente que passa a dar todos os detalhes do fim de semana e se sente satisfeito ao final, se tudo foi dito, apesar de o analista sentir que não foi feito qualquer trabalho analítico. Às vezes, é necessário interpretar isto, pois o paciente precisa ser conhecido em todos os seus pedaços por uma pessoa, o analista. Ser conhecido significa sentir-se integrado pelo menos na pessoa do analista. É isso que comumente ocorre na vida da criança muito pequena e um bebê que não teve qualquer pessoa para juntar seus pedaços começa com uma desvantagem sua própria tarefa de auto-integração e talvez não consiga empreendê-la, ou pelo menos não consiga manter sua integração com confiança. A tendência a integrar é ajudada por dois conjuntos de experiência: a técnica de cuidado infantil através da qual a temperatura do bebê é mantida, ele é manipulado, banhado, embalado e nomeado e, também, as experiências pulsionais agudas que tendem a tornar a personalidade una a partir do interior. Muitos bebês já se encontram a caminho da integração durante certos períodos de suas primeiras vinte e quatro horas de vida. Em outros, o processo é retardado ou ocorrem recaídas, por causa da inibição precoce do ataque voraz. Há longos espaços de tempo na vida de um bebê normal durante os quais não importa para ele ser muitos pedaços ou um ser inteiro, viver no rosto da mãe ou em seu próprio corpo, desde que, de tempos em tempos, ele se torne uno e sinta algo. Mais tarde, tentarei explicar por que a desintegração é apavorante, enquanto a não-integração não o é. Com relação ao meio ambiente, só gradualmente pequenos pedaços da técnica de cuidado infantil, rostos vistos, sons ouvidos e cheiros sentidos são reunidos em um único ser total a ser chamado mãe. Na situação de transferência na análise de psicóticos, tem-se a prova mais clara de que o estado psicótico de não-integração teve seu lugar natural em um estádio primitivo do desenvolvimento emocional do indivíduo.”

  Atuando como terapeuta-mãe suficientemente boa por meio de seus cuidados, Gerda propicia uma melhor integração da personalidade de Oscar. O segundo processo, o da personalização, é comentado da seguinte maneira por Winnicott (1945):

“Tão importante quanto a integração é o desenvolvimento do sentimento de que se está dentro do próprio corpo. De novo é a experiência pulsional e as repetidas e tranqüilas experiências de cuidado corporal que, gradualmente, constróem o que se pode chamar de personalização satisfatória. Da mesma forma que a desintegração, o fenômeno psicótico da despersonalização se relaciona a retardos iniciais na personalização. A despersonalização é algo comum em adultos e crianças, sendo freqüentemente ocultado no que se chama sono profundo e em ataques de prostração com palidez cadavérica: ‘Ela está a quilômetros de distância’, dizem as pessoas, e estão certas. Um problema relacionado ao da personalização é o dos companheiros imaginários da infância. Não se trata apenas de simples construções da fantasia. Um estudo do futuro destes companheiros imaginários (na análise) mostra que eles são por vezes outro self de um tipo altamente primitivo. Não posso formular aqui uma exposição clara do que quero dizer e uma explicação detalhada deste assunto agora fugiria ao tema do trabalho. Eu diria, no entanto, que esta criação, muito primitiva e mágica, de companheiros imaginários, é facilmente usada como uma defesa, por se desviar de maneira mágica de todas as ansiedades associadas à incorporação, digestão, retenção e expulsão.”

  Durante o processo terapêutico com Gerda, Oscar apresentou diversos personagens, que podem ser vistos como os “companheiros imaginários que são por vezes outro self de um tipo altamente primitivo” acima citados por Winnicott. Esses personagens são entendidos por Gerda como: a) Oscar-criancinha-cheia-de-vida, personalidade primária, libidinal, com potencialidades criativas (talento musical); essa personalidade estava encapsulada antes do tratamento. O conceito de Gerda sobre a personalidade primária aproxima-se do de verdadeiro self descrito por Winnicott. b) Oscar-pré-mórbido, personalidade resignada, apática, retardada mental e sempre de mau humor. Segundo Gerda, essa era a manifestação da personalidade secundária de Oscar. O conceito de Gerda aproxima-se do de falso self descrito por Winnicott (self adaptativo). c) Oscar-doente-mental, o maníaco-depressivo, que nas fases de mania era agressivo e violento, principalmente com seu pai. d) Oscar-o-gigante, personalidade ligada à força de vontade e ao aparelho psicomotor. e) Oscar-Senhor-Hansen, inteligência inconsciente que aparece no processo terapêutico como facilitador da integração da personalidade. Personagem culto, encantador, sociável, sábio e bem-humorado. Gerda o denomina como função do si, da supra consciência. Ao tocar em Oscar de forma agradável, Gerda estava facilitando o processo de personalização, no qual a pessoa tem a sensação e a percepção de que a psique habita o soma. O terceiro processo do desenvolvimento emocional primitivo é o do contato com a realidade. Depois dos processos de integração e de personalização terem se iniciado, há a crescente apreciação do tempo, do espaço e de outras propriedades da realidade, relatada da seguinte forma por Winnicott (1945):

“Admitamos agora a integração. Se o fizermos, atingimos outro assunto extremamente vasto, o da relação primária com a realidade externa. Em análises comuns, podemos tomar como algo natural, e o fazemos, este passo no desenvolvimento emocional, que é altamente complexo e que, quando é dado, representa um grande avanço no desenvolvimento emocional e, no entanto, nunca é dado e estabelecido de vez. Muitos dos casos que não são considerados adequados para a análise, nunca o serão realmente, se não conseguirmos lidar com as dificuldades de transferência provocadas por uma falta essencial de relação verdadeira com a realidade externa. Através da análise de psicóticos descobrimos que, em algumas análises, esta falta essencial de relação verdadeira com a realidade externa representa, praticamente, todo o problema. Tentarei descrever nos termos mais simples possíveis este fenômeno da maneira como o vejo. Considerando-se o par bebê e seio da mãe (não estou afirmando que o seio seja essencial como veículo do amor materno), o bebê tem ímpetos pulsionais e idéias predatórias. A mãe tem um seio e o poder de produzir leite, e a idéia de ser atacada por um bebê faminto lhe é agradável. Estes dois fenômenos não entram em relação um com o outro até que a mãe e a criança vivam uma experiência juntos. A mãe, por ser madura e fisicamente capaz, tem que ter tolerância e compreensão, de forma que é ela quem produz uma situação que, com sorte, pode resultar no primeiro laço feito pelo bebê com um objeto externo, um objeto que é externo ao self do ponto de vista do bebê. Vejo o processo como se duas linhas viessem de direções opostas, com a possibilidade de se aproximarem uma da outra. Se elas se sobrepõem, há um momento de ilusão, uma experiência que o bebê pode tomar, ou como alucinação sua, ou como algo que pertence à realidade externa. Em outras palavras, o bebê vem ao seio quando excitado e pronto para alucinar algo apropriado para ser atacado. Neste momento, o mamilo real aparece e ele é capaz de sentir que se trata do mamilo que ele alucinou. Desta forma, suas idéias são enriquecidas por detalhes reais de visão, sensação e cheiro e, da próxima vez, este material será usado na alucinação. Deste modo, ele começa a construir uma capacidade de evocar o que é realmente disponível. A mãe tem que continuar a proporcionar ao filho este tipo de experiência. O processo fica imensamente simplificado, se apenas uma pessoa cuida do bebê, utilizando uma só técnica. É como se o bebê fosse realmente planejado para que a própria mãe cuidasse dele desde o nascimento ou, se isto não é possível, uma mãe adotiva e não várias babás. A importância da mãe é vital especialmente no início e, realmente, a mãe tem como tarefa proteger seu bebê de complicações que ele não pode entender ainda e continuar a fornecer, de maneira uniforme, o pedacinho simplificado de mundo que a criança, através dela, passa a conhecer. Somente sobre este alicerce pode-se construir objetividade ou uma atitude científica. Qualquer falha de objetividade que ocorra em qualquer época se relaciona a uma falha neste estádio do desenvolvimento emocional primitivo. Tendo somente como base a monotonia, uma mãe pode enriquecer proveitosamente a vida de seu filho.”

  Winnicott (1948) diz: “a mãe suficientemente boa inicialmente deixa que o bebê domine, desejando (na medida em que a criança é quase uma parte dela mesma) estar pronta para responder. Gradualmente introduz o mundo externo compartilhado, ajustando cuidadosamente esta introdução, de acordo com as necessidades do bebê, que variam de dia para dia e de hora para hora.” De início, Gerda se relaciona com Oscar à semelhança de sua mãe, de forma simbiótica, permitindo seus comportamentos onipotentes e suas fantasias megalomaníacas. Ele grita e obtém o que quer. Mas depois que Gerda é introjetada no mundo interno de Oscar, provavelmente como um objeto bom, ela gradualmente vai se desadaptando, quebrando a simbiose e funcionando como o terceiro na relação (esta é uma função paterna, porém o pai de Oscar não foi capaz de romper a simbiose que se estabeleceu entre Oscar e a mãe). Numa determinada sessão, Gerda deu limite de forma brusca, mas com um resultado bastante interessante:

“Um dia, depois de estar sendo massageado há cinco horas, os sons não apareciam e a situação parecia sem esperança. De repente perdi o sangue frio e bati nele. Me senti mal por ter feito isto a um bebê indefeso. Disse-lhe enquanto chorava: ‘Eu bato em você porque você não quer ser curado!’ Para minha grande surpresa, ele respondeu de maneira normal e sincera: ‘A senhora tem razão, eu não quero que a senhora me dê este tratamento porque a senhora pode me reduzir a nada.’ Depois disto, o tratamento mudou completamente. Ele consentiu em deixar-se massagear. A partir deste dia, foi como um filme de sua vida projetado em sentido inverso. Este filme dava uma imagem interessante dos conflitos que estão por detrás da síndrome maníaco-depressiva. Foi-nos então possível ver a causa de um comportamento tipificado numa reação particular, que estava ligada à acumulação de quimiostase viscosa. Por exemplo, ele acordava de manhã com um fechamento abdominal e estava em plena fase maníaca. Quando apareciam os sons peristálticos, o sistema se abria e ele adormecia calmamente. Quando ele acordava outra vez, tinha virado uma criança, e esta criança podia ser feliz (se a quimiostase tivesse sido esvaziada o suficiente pelo peristaltismo), ou uma criança infeliz e sem paz, ou ainda em plena fase maníaca. E se a pressão se tornasse mais forte, ele se transformava até se tornar um adulto em fase maníaca. O problema de agressão era evidente; ele defecava no chão e dizia: ‘Isto, mãe, é porque você não gosta de mim!’ A ambivalência em relação à sua mãe era muito clara. Às vezes, ele queria fazer tudo por ela: corria por tudo como uma criança de três anos, apanhava objetos e dizia: ‘É pra você, mamãe!’ Repetia de modo maníaco: ‘Mamãe, toma isto! Mamãe, toma isto!’”

  Depois desse terceiro processo, no qual Oscar estava mais em contato com a realidade externa compartilhada, alcançando certa maturidade em relação ao desenvolvimento emocional primitivo, teve lugar o trabalho relacionado à defesa maníaca que acontece na posição depressiva. Esta fase do bebê em relação à sua mãe é de dependência relativa. Com relação a isso, Winnicott (1948) comenta que “o bebê agora possui uma membrana limitadora (eu pele), com um interior e um exterior. Ele passa a se sentir como uma pessoa total e a considerar sua mãe uma pessoa total, e desta forma preocupa-se quanto aos resultados de seus ataques reais e imaginários a ela, feitos sob o domínio da tensão pulsional.” Para Winnicott (1935), “a defesa maníaca é uma das defesas que podem ser empregadas contra a depressão durante a fase da posição depressiva. O termo defesa maníaca deve englobar a capacidade de uma pessoa de negar a ansiedade depressiva, que é inerente ao desenvolvimento emocional, uma ansiedade que pertence à capacidade do indivíduo de se sentir culpado e também de admitir a responsabilidade pelas experiências pulsionais e pela agressão que as acompanha na fantasia.” Na análise da depressão e da defesa contra a depressão (mania), Winnicott (1945) afirma que

“é vitalmente importante a fantasia do paciente sobre sua organização interna e sua origem na experiência instintiva. O paciente tem fantasias sobre sua organização interna e a própria fantasia ajuda nesta organização. A fantasia sobre o mundo interno do paciente inclui a fantasia de que isto se localiza dentro do seu próprio corpo. Tornou-se possível relacionar na análise as mudanças qualitativas no mundo interno do indivíduo com suas experiências pulsionais. A qualidade dessas experiências pulsionais explica a natureza boa ou má do que está dentro, assim como sua existência.”

Winnicott (1935) descreve de que forma um certo uso da defesa maníaca pode ser considerado normal:

“Deveria ser possível ligar a diminuição da manipulação onipotente do controle e da desvalorização à normalidade e a um grau de defesa maníaca empregado por todos na vida cotidiana. Por exemplo, estamos em uma sala de espetáculos e entram no palco os dançarinos, treinados para ter vivacidade. Pode-se dizer que aí se encontra a cena originária, exibicionismo, controle anal, submissão masoquista à disciplina, um desafio ao superego. Mais cedo ou mais tarde, acrescenta-se: aí há VIDA. Por acaso o ponto principal do desempenho não poderia ser uma negação da morte, uma defesa contra idéias depressivas de ‘morte dentro’, sendo a sexualização secundária? E coisas tais como deixar o rádio ligado interminavelmente? E morar em uma cidade como Londres, com seu barulho que nunca cessa e luzes que nunca se extinguem? Cada uma dessas coisas ilustra a utilização da realidade para tranqüilizar as pessoas acerca da morte interior e um uso da defesa maníaca que pode ser normal. (…) A defesa maníaca é uma defesa contra a ansiedade depressiva. Neste estado existem fantasias onipotentes e a fantasia de ter a realidade externa onipotentemente controlada. A fantasia onipotente é um esforço para fugir da realidade interna ameaçadora, indo em direção à manipulação da realidade externa. Na fantasia da criança há um ataque contra os pais, transformados em maus pelo ódio. Na mania, a defesa é contra os objetos maus, que agora também ameaçam o ego, ódio dos pais cruéis e duros que deixam a criança exposta aos terríveis perigos das tensões libidinais insatisfeitas”

  No trabalho de Gerda com Oscar observa-se, sessão após sessão, o aparecimento da agressividade dele em relação à mãe, à empregada e a Gerda; mas, em relação à figura paterna o que emerge é um ódio inimaginável. Essa emoção é projetada maciçamente no pai, e este passa a funcionar como objeto persecutório. Segundo Gerda, foi a volta do pai para casa, quando Oscar tinha 36 anos, que desencadeou nele o primeiro surto psicótico. Gerda pôde dar espaço e agüentar a expressão do ódio de Oscar. Além disso, o próprio paciente foi criando durante o tratamento força egóica para dar conta dessa emoção. Gerda suportou os ataques de Oscar sem fazer retaliações, e ele aos poucos passou a ter comportamentos amáveis, que podem ser entendidos como reparação dos ataques. Assim, estabeleceu-se o que Winnicott (1990), em A Natureza Humana, chamou de ciclo benigno. Para Winnicott (1935), “é possível acompanhar a diminuição da defesa maníaca no comportamento e nas fantasias em um paciente durante a análise. À medida em que as ansiedades depressivas diminuem como resultado da análise e a crença nos objetos bons internos aumenta, a defesa maníaca se torna menos intensa, menos necessária e muito menos evidente.” Talvez o tratamento de Gerda não possa ser chamado de análise no sentido winnicottiano, mas com certeza ela ocupou um lugar de terapeuta-mãe suficientemente boa, provavelmente sendo introjetada por Oscar como um objeto bom. Relacionado à defesa maníaca e à condição persecutória de Oscar, aconteceu o descongelamento de um forte trauma, assim relatado por Gerda (1986):

“Depois de um tratamento, senti que havia por trás de tudo um traumatismo muito grande que ocorrera pelos quatro anos. Na noite seguinte, a mãe me chamou pelo telefone e disse que Oscar havia vomitado tanto e tinha tanta dor na barriga que ela achava que poderia ser apendicite. Mas eu estava certa de que era só uma reação ao tratamento, pois eu havia utilizado técnicas mais fortes do que habitualmente. Quando cheguei, vi Oscar com o rosto convulsionado pela pressão do vômito. O cômodo inteiro cheirava a éter. Ele disse que tinha medo da faca. E, enfim, tivemos a explicação de um estranho sintoma. Há muitas semanas, Oscar tinha estado preocupado com seu nariz. Dizia frases assim: ‘Quando vejo meu nariz, sei que estou na vida.’ Invejava o cão pastor porque este tinha um nariz tão grande que podia vê-lo o tempo todo. Aos quatro anos, ele havia tido uma operação para extração das amígdalas. Haviam proibido sua mãe de entrar com ele na sala de operações e ela tivera de ficar na sala de espera. Só o pai pudera assistir à operação. Quando ela o escutou gritando, consolou-se pensando que ele estivesse anestesiado. No dia em que Oscar reviveu o traumatismo, a mãe veio me dizer: ‘Hoje eu tive um choque terrível. A empregada me disse que tinha uma confissão a fazer. O dia em que Oscar foi operado, meu marido tinha chegado para ela muito deprimido e lhe havia confiado que Oscar tinha sido operado sem anestesia. Quatro enfermeiras tiveram que segurar seus braços e pernas, uma quinta havia segurado sua cabeça, e ele se debatera com tanta força que o pai tinha sido obrigado a usar sua força para ajudá-las. Oscar tinha berrado como um animal no matadouro.’ Compreendíamos então o sintoma do nariz. A criança deve ter-se convencido de que iam matá-la e que só enxergando o nariz poderia saber se ainda estava viva.”

Winnicott (1935) descreve o uso da defesa maníaca como uma negação da morte, uma defesa contra idéias depressivas de ‘morte dentro’. Sobre as condições persecutórias que por vezes acontecem na vida de uma criança e que podem ser relacionadas com o caso de Oscar, Winnicott afirma, em A Natureza Humana (1990):

“É interessante observar o quanto o modo de vida paranóide pode aparecer cedo, clinicamente falando. A condição de ‘perseguição esperada’ pode se desenvolver depois que a criança viveu alguns anos sem nenhuma tendência persecutória aparente; em casos desse tipo, entretanto, existe um grande trauma ao qual se atribui a mudança – uma concussão, uma operação de amígdalas – ou uma coincidência fortuita de dois ou três fatores adversos. Muitas vezes é possível, no entanto, fazer um diagnóstico bastante confiável na primeira parte da infância. O ponto de partida muitas vezes está claro na história do indivíduo, mas a susceptibilidade à perseguição, à suspeita e à animosidade está freqüentemente presente desde o princípio, no momento em que a mãe falhou (nem sempre por uma culpa que lhe possa ser atribuída) em estabelecer a primeira relação com o bebê e em seus esforços iniciais para apresentar o mundo a ele. Muitos bebês que parecem apresentar uma disposição hipersensível são levados a um relacionamento mais confiante com o mundo por um cuidado materno prolongado e excepcionalmente adaptados, e muitas vezes é possível, até mesmo com crianças mais velhas sujeitas a fantasias persecutórias, levar a uma melhora de sua condição através da criação de uma situação especializada. Na psicoterapia, as mudanças profundas necessárias surgem através da liberação do sadismo oral reprimido.”

  O descongelamento do trauma da cirurgia (extração das amígdalas) acima citado, foi, segundo Gerda, um avanço notável no processo terapêutico de Oscar:

“Esta última reação parece ter sido crucial. A partir deste dia, ele se tornou uma pessoa integrada e cresceu. Podíamos acompanhar os estágios de amadurecimento dos oito ou nove anos até os dezesseis. Contudo, era ainda necessário prosseguir longamente o tratamento. Como Oscar morava em outra cidade, ensinei a sua mãe o método para que ela pudesse continuar a terapia. Neste estágio do tratamento Oscar só manifestava alguns sintomas neuróticos. Ele tinha uma agressividade marcada por sua mãe, que depois do tratamento deu lugar ao humor. Entrou num período em que chamava a si mesmo de Senhor Hansen, o Ale-Grão; este foi logo um aspecto integrado de sua personalidade. Aos poucos, ele passou a recusar os medicamentos, pois o deixavam doente. Esta é em linhas gerais a história de Oscar. Gostaria de acrescentar que sua criatividade continuou a se desenvolver. Com as últimas notícias que tive dele, ele mandava me perguntar, por intermédio de sua mãe, se o que lhe acontecia era normal ou não: ele agora não apenas podia ouvir a música que compunha dentro de sua cabeça, mas ainda podia ver as notas no ar e, quando as passava para o papel e tocava ao piano as partituras assim escritas, finalmente acontecia a mesma música.”

  O resgate desse ser humano feito por Gerda é maravilhoso. Oscar pôde enfim viver próximo à sua essência, seu self verdadeiro, sua personalidade primária. Em Cadernos de Biodinâmica (1983) e em Psiquê e Soma (1986), Gerda afirma que a pessoa que vive sua personalidade primária está em contato com sua circulação libidinal. As correntes energéticas do corpo fluem livremente, permitindo a manifestação dos impulsos internos originais e promovendo a atualização dos potenciais humanos individuais. A personalidade primária é espontânea, criativa, confiante, auto-afirmativa, não tem dificuldades para dizer sim ou não, e tende para a auto-regulação, a auto-realização, a satisfação e a plenitude. É independente e possui a capacidade de estar só quando necessário e desejado. É capaz de expressar suas emoções sem culpa, de dar e receber, de amar, e de viver sua sexualidade de forma integrada. Vive em contato com seu eu instintual e espiritual. Tem prazer em viver, sentindo-se pertencente ao seu meio ambiente. Em suma, neste tratamento encontramos Gerda como a mãe suficientemente boa descrita por Winnicott, segurando, manejando e apresentando a realidade para Oscar de modo a promover os processos de integração e de personalização e o contato com a realidade, levando ao desenvolvimento emocional primitivo. Além disso, ela lida com aspectos da defesa maníaca, sendo introjetada por Oscar como um objeto bom, havendo transformações do paciente na fase de desenvolvimento emocional denominada posição depressiva. Essa relação terapêutica permitiu a Oscar o desenvolvimento de um ‘eu pele’, de estrutura egóica, favorecendo a organização da personalidade e a saída do quadro psicótico. Observamos o desenvolvimento do dom musical de Oscar, sua individuação como ser único, sua possibilidade de socialização e de participação na vida cultural. A relação terapêutica entre Gerda e Oscar permitiu a atualização dos potenciais do paciente, levando-o a fruir o bem-estar independente, a magia do viver e o brincar na realidade.

Conclusão

O presente artigo tem suas limitações, devido ao reduzido número de informações sobre o processo psicoterapêutico do paciente. Todavia, é uma tentativa de olhar a prática clínica da Psicologia Biodinâmica sob o enfoque da teoria e técnica do pediatra e psicanalista Winnicott. É importante que outros casos clínicos sejam descritos, para reafirmar essas conexões entre a teoria de Winnicott e a clínica da Psicologia Biodinâmica. Tanto o trabalho clínico de Winnicott quanto a psicoterapia biodinâmica permitem a regressão à dependência na transferência, pois buscam reparar a dor da “criança ferida” do paciente, seus traumas e as falhas ocorridas em fases bastante precoces do seu desenvolvimento emocional. Regredir para progredir: o paciente pode obter do terapeuta um ambiente facilitador, uma mãe suficientemente boa, para que seu processo de maturação possa se desenvolver. Isso se dá a partir da reparação de traumas ocorridos em fase de dependência, em que a criança tem direito a existir e a estar segura e nutrida, em direção à independência, na qual ela tem direito de ser autônoma, a ter amor, e a dar e a receber, para alcançar o bem-estar independente ou a capacidade de estar só. Ambos, Gerda e Winnicott, têm uma visão bastante positiva do ser humano, acreditando que existe algo de intrinsecamente belo dentro de cada pessoa, denominando isso personalidade primária ou verdadeiro self. A ênfase do trabalho de ambos não é sobre a patologia, mas sobre a possibilidade de atualização dos potenciais humanos e de amadurecimento emocional através do processo terapêutico.   Visão poética da massagem biodinâmica por intermédio da canção de Charles Trenet “La mer” (“O mar”) ou “La mère” (“A mãe”).   Em francês ‘o mar’ (la mer) e ‘a mãe’ (la mère) têm o mesmo som. Quando escuto essa canção, me sinto embalada e protegida como numa massagem biodinâmica, e posso, então, entrar no meu mundo interno de imagens, sonhos e fantasias. Sinto-me óvulo (memória genética) mergulhado em oceano uterino, essência mergulhada no oceano cósmico, unida à Mãe Natureza e, depois dela separada, em busca de religação. Surgem os símbolos que me põem em contato com a realidade compartilhada que me reconecta com o outro e com a natureza, desenvolvendo em mim o sentimento de ser e de pertencer, porque o humano se faz humano no calor, no acolhimento e na presença do humano. A mãe-mar embalou meu coração com uma canção de amor por toda vida, trazendo-me o prazer de viver. Mãe-mar mito? Sim, pois que o mito é o berço do humano. Mãe perfeita, ideal? Não, simplesmente mãe suficientemente boa. AGRADECIMENTO Gerda, obrigada por desenvolver a massagem biodinâmica, que permite aos pacientes que não tiveram berço de calor humano a experiência de serem embalados, ninados em seus processos terapêuticos por terapeutas suficientemente bons.

Cintra, Glória. “Gerda Boyesen a mãe suficientemente boa descrita por Winnicott” , artigo publicado na Revista Reichiana numero 11, São Paulo, 2002.

 

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