IV Mostra Nacional de Experiências na Atenção Básica/Saúde da Família
Brasília, 12 a 15 de março de 2014
Psicologia Biodinâmica e Prática Corporal como instrumentos de humanização na área de Saúde Mental da Atenção Primária à Saúde
Auryana Maria Archanjo
O uso da psicoterapia com massagem e do grupo corporal são o foco deste trabalho realizado com pacientes com sofrimento mental em uma Unidade de Saúde da Família na cidade de São Paulo. O corpo e seus modos de viver também se configura pelo registro corporal das histórias de vida de cada pessoa. O toque e a associação livre de idéias e de movimentos incentiva o autoconhecimento e a potência de vida que há em cada ser humano. Qual foi a experiência desenvolvida? Sobre o que foi? Sendo psicóloga de referência para seis equipes de Saúde da Família sem NASF, a experiência de utilizar massagem como um recurso terapêutico veio através da formação em Psicologia Biodinâmica e por observar que muito das queixas de sofrimento no corpo (pressão alta, dores de cabeça e no corpo, insônia etc.) estavam ligados a quadros relacionados a demandas sociais e a histórias de vida difíceis (violências diversas, violações de direitos básicos, perdas etc.). Não ter a percepção de que o sofrimento no corpo estava ligado ao sofrimento emocional prolongado e não cuidado fazia com que as pessoas demandassem muito por consultas médicas, remédios, exames como via de aliviar a dor e encontrar uma solução externa e, às vezes, imediata para seus problemas. O toque pode ter registros diversos no corpo a depender da história de cada um: de cuidado, carinho, invasão, agressão etc., e a massagem vem para ressignificar o toque na história de vida e ajudar a pessoa a se conhecer e reescrever sua história através da leitura que começa a fazer de seu corpo e da conexão deste corpo com as experiências vividas. Além desta intervenção mais individual, é possível propor atividades grupais com o mesmo propósito e que alterna autoconsciência/autoconhecimento corporal e o se conhecer a partir do outro através de atividades individuais, em dupla e coletivas. Como funciona(ou) a experiência? É uma experiência de âmbito local, que ocorre desde 2011 para atendimentos individuais e o grupo iniciou em 2013, após um curso de yoga oferecido pela Secretaria da Saúde de São Paulo e que vem se constituindo na UBS como um grupo corporal que inclui diversas técnicas (yoga, biodinâmica, bioenergética) para o autoconhecimento. O processo é iniciado com avaliação da queixa inicial e coleta da história de vida do paciente, identificando outras queixas possíveis e latentes, e oferece a possibilidade da massagem e do grupo, caso a pessoa queira. Como recurso, usa-se uma maca de massagem e/ou colchonete. Para o uso do colchonete é necessária uma leitura cuidadosa da história do paciente, uma vez que coloca terapeuta e paciente mais próximos e pode se tornar invasivo e mobilizador demais. O propósito não é a quebra de defesas, mas sim a amizade com as resistências respeitando os limites e ritmo do paciente. Orienta-o a deixar o corpo se expressar da forma que quiser (livre associação de movimentos), seja através de lembranças, imagens, sonhos, choro, riso, grito ou expressões de raiva. Utiliza-se o método da parteira, em que o terapeuta apoia o paciente em seu processo, mas sabendo que o processo é do paciente, que é ativo, na realidade. No grupo, são atividades que envolvem conhecimentos de outras práticas corporais (yoga, bioenergética) e teoria Winnicottiana (Psicanálise) e que remete a pessoa para si e para a relação com o outro e com o mundo, promovendo mais autoconfiança, autocuidado, autonomia e a ajuda a se fortalecer para mudar sua realidade interna e externa. Não são todas as pessoas atendidas com este tipo de intervenção. O critério depende do tipo de demanda: principalmente, quadros associados a queixas de dores inespecíficas no corpo, insônia, dores constantes sem causa orgânica (de cabeça; no estômago, problemas intestinais, diabetes e hipertensão sem resultado medicamentoso etc.); tristeza inexplicável; dificuldade extrema de se expressar pelo verbal; desconexão com o próprio corpo evidenciado num autocuidado precário; questões relacionadas à sexualidade etc. Qualquer profissional pode encaminhar para o atendimento com psicólogo e a decisão de utilizar a massagem biodinâmica é realizada com o paciente. Para a maioria destes pacientes, a experiência de massagem nunca havia sido vivenciada, mas foi aceita com receptividade, com exceção das pessoas com muita dificuldade de serem tocadas, como são os casos em que há histórico de violência física e sexual. Nestes casos, ao invés de assumir a massagem como técnica, é utilizado um misto de postura biodinâmica e ‘holding winnicottiano’ para trabalhar, inicialmente, a confiança básica. O grupo também é indicado. No grupo, não é usada a massagem, mas técnicas de expressão corporal individual e coletiva. O critério de inserção no grupo é o mesmo em relação às demandas individuais e ainda inclui pessoas com dificuldade de relacionamento, solitárias, cuidadores, com uma rede social pobre e sem projetos de vida. Inicialmente, o grupo era restrito a pacientes em acompanhamento psicológico, mas tem sido aberto a qualquer profissional que avalie o grupo como um recurso de cuidado ao paciente. A proposta foi acolhida pela gerência e profissionais de saúde como algo inovador e, conforme as pessoas melhoram de seus sintomas e os médicos percebem uma diminuição de demanda clínica e, em alguns casos, também medicamentosa, este tipo de intervenção não tradicional da psicologia foi fazendo mais sentido para as equipes. O mesmo vem ocorrendo com os pacientes que têm passado por esta experiência. Desafios para o desenvolvimento. Quanto ao atendimento individual – Não é possível atender com massagem todos que querem; o desgaste profissional é imenso e a demanda enorme; – Há o desafio de descontruir a idéia de massagem que muitas pessoas têm. A massagem não tem um fim em si mesmo; ela é usada neste contexto como técnica psicoterápica ou pode ser o processo psicoterápico em si e o que se chama de massagem pode ser simplesmente um segurar de mão e isto ser importantíssimo para o paciente (“o pouco é muito”). O uso somente da massagem é possível, mas tem o propósito de mobilizar lembranças, imagens, movimentos corporais espontâneos conforme eles surgem e no ritmo do paciente. Usa-se um esteto adaptado para facilitar a mobilidade do profissional ao redor da maca e que é colocado na barriga do paciente, a fim de se ouvir sons peristálticos (chamados de psicoperistálticos) que auxiliam no toque conforme surgem. É na vivência que as pessoas vão compreendendo melhor do que se trata; – Falta visibilidade e reconhecimento pelo sistema de saúde: a maca foi doada e está velha; o colchonete já tinha na UBS; travesseiros, cobertores, lençóis, almofadas, aquecedor para o inverno, foram comprados e são levados pela psicóloga. Afinal, não são materiais justificáveis para atendimento na atenção básica à saúde e para o psicólogo, cuja visão é que usa somente a fala e escuta como instrumentos. Quanto ao grupo – Falta de espaço e recursos materiais para ampliar para um grupo aberto; num dia de sol, o grupo é feito no gramado externo que existe na UBS; caso contrário, há uma sala interna mais ampla, onde aproximamos os colchonetes e dividimos espaço com materiais não mais utilizáveis que esperam a prefeitura para serem levados. Os pacientes trazem duas toalhas de banho para dobrá-las em adaptações necessárias e tem sido solicitado para quem tiver colchonete, trazê-los. No gramado, a toalha pode servir de “colchonete”. – Muitos profissionais têm vontade de participarem, mas como “alunos”. Não é uma aula de ginástica, mas um grupo terapêutico. Contudo, indica a necessidade dos profissionais de saúde também serem cuidados e de serem inclusos nas discussões e ações que tratam da saúde do trabalhador; o psicólogo, inclusive, também é um profissional de saúde que precisa de cuidado; – A participação de outros profissionais também é prejudicada pela cobrança que se tem para números mínimos mensais de consultas, procedimentos e visitas domiciliares, por exemplo; – Ao mesmo tempo, não é possível fazer sozinho um grupo aberto com esta proposta terapêutica sem outros profissionais envolvidos, e conseguir manter a qualidade que ele exige; – Terapia pessoal e supervisão de casos, instrumentos fundamentais para um trabalho de qualidade do psicólogo, não são oferecidos, porque não reconhecidos como tal. O custeio é exclusivamente do profissional; – O positivo vem de iniciativas individuais: os professores que deram o curso de yoga, sendo um deles também com conhecimento em bioenergética, ofereceram supervisão gratuita uma vez por mês. A gerente libera e é necessário justificar a presença devido ao ponto eletrônico existente na UBS. – Interlocuções com a Rede de Saúde Mental em reuniões mensais e em reuniões internas à UBS para discutir casos e planos integrados de cuidado também auxiliam na supervisão de casos complexos. – Outro desafio é ajudar as pessoas a identificarem alternativas ao medicamento para seu cuidado. O remédio pode ser um instrumento meio e não fim. Tem sido nosso trabalho discutir com o paciente o significado que o remédio tem assumido em sua vida e, quanto mais a pessoa se sente fortalecida e volta a sonhar e construir projetos de vida, mais ela deseja não mais precisar de remédio. Os profissionais reconhecem que o remédio é apenas um dos recursos e que se outras questões não forem trabalhadas, estes serão pacientes sempre solicitantes de medicamentos, de exames e consultas, muitas vezes, desnecessários; e mais, serão culpabilizados, em alguns casos, por demandas sociais e violações de direitos existentes. Os conhecimentos específicos são diluídos quando profissionais de categorias diferentes conversam juntos para discutir a necessidade de introduzir ou não um medicamento e, inclusive, discutem a dosagem para se chegar a um cuidado que alivie sintomas, mas não impeça, por exemplo, que o trabalho do psicólogo seja realizado. O conflito latente não pode ser ‘abafado’ pelo medicamento. Os desafios são superados com muito estudo, muito trabalho, educação permanente e um trabalho em equipe integrado e bem articulado, em que o conhecimento de cada profissional é valorizado pelo outro, porque se sabe que o foco deve ser sempre cuidar da melhor forma possível o paciente que nos procura. Quais as novidades? – A articulação de psicoterapia com massagem tira a clínica psicológica de seu eixo tradicional: mudança de eixo de uma psicologia focada na psicopatologia para uma focada na potencialidade para a vida; – Evita a medicalização de demandas sociais e a culpabilização do indivíduo: as pessoas passam a encontrar recursos próprios para mudarem suas vidas e passam a ver o medicamento como um subsídio necessário em certos momentos, mas não aquilo que irá resolver seus problemas. Tem havido diminuição no uso de remédios. Ao mesmo tempo, são orientadas quanto à violação de direitos e a violências que estão sofrendo, sendo acompanhadas no processo de busca de garantia de direitos; – O registro de prontuário tem auxiliado na conduta dos colegas, profissionais de saúde, para uma outra forma de escuta e conduta em saúde mental e tem permitido um registro histórico de cuidado. Escrever em prontuário único sobre o trabalho da biodinâmica também é uma forma de dar visibilidade à técnica e de tirar a psicologia de um lugar misterioso, enigmático e mágico na visão de pacientes e de profissionais da UBS por terem pouco acesso e ficarem sem saber o que foi feito e de que forma foi feito; há critérios cuidadosos para a garantia de sigilo; – Oferecer um trabalho consistente e de qualidade em saúde mental no serviço público, dando acesso a um tipo de serviço ainda bastante elitista; – Aos poucos acredito que mais profissionais se interessarão em participar desta proposta, principalmente em grupo. Por solicitação de uma enfermeira, já foi realizado um grupo de mães que estão amamentando ou pretendem amamentar. Caracterizou-se por uma oficina vivencial dos aspectos emocionais da amamentação, em que as futuras mães experimentaram em seus próprios corpos aspectos que envolvem o amamentar, como o colo, o olhar, sensações, sentimentos e emoções, e aspectos do ambiente que influenciam a relação mãe-bebê – ser cuidada para cuidar bem.