O olhar da Psicologia Biodinâmica que permite a revisão de diagnóstico em atendimento infantil

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Acima de tudo, toda criança merece ser olhada como uma semente já germinada, porém sedenta daquilo que a fará grande, forte, viçosa, e nutrida com o mais puro amor e disponibilidade.

INTRODUÇÃO
Este trabalho possibilita uma reflexão sobre o atendimento de dois meninos na idade de 04 e 05 anos que foram encaminhados para psicoterapiainfantil, com hipóteses diagnósticas apontadas antes do tratamento.
Com base nos conceitos da Psicologia Biodinâmica e daPsicanálise Winnicottiana os atendimentos psicoterapêuticos com as crianças foram conduzidos com a intenção de viabilizaro contato com o self verdadeiro, criando um espaço potencial para a realização do gesto espontâneo, assemelhando-se a uma parteira, na qual, a psicoterapeuta acolhe e devolve o gesto mais autêntico do ser da criança.
Os atendimentos não se fixaram nos diagnósticos trazidos pelos pais nas entrevistas, foram personalizados de acordo com as necessidades das crianças em cada sessão, respeitando a singularidade, ritmo e redescoberta da personalidade primária de cada um, através de um setting confiável, estável, seguro e disponível para elaborações imaginativas.
D. Winnicott em seu livro “Da Pediatria a Psicanálise” relata em uma de suas palestras que:
“As pesquisas iniciadas mais ou menos em conjunto com o trabalho pioneiro de Freud estabeleceram o fato de que, na análise das psiconeuroses, a infância do paciente revela-se abrigando conflitos intoleráveis, que por sua vez levaram à repressão e à instauração de defesas, e assim à interrupção do desenvolvimento emocional do indivíduo, com a consequente formação de sintomas. Naturalmente, portanto, a pesquisa passou a interessar-se pela vida emocional das crianças. Não demorou muito para perceber-se que a reconstrução feita pelos adultos de seus conflitos infantis – conflitos associados às suas ideias e experiências instintivas – podiam ser observadas em crianças, e observadas com toda a clareza no tratamento psicanalítico de crianças”.
HISTÓRICO DOS PACIENTES
Paciente 1: Miguel
Idade: 4 anos
Histórico familiar: Mãe e pai casados, mãe professora, pai empresário, tem um irmão na idade de 11 anos, tem um gato e passarinho de animais domésticos. Moram em casa térrea, em um condomínio fechado em São Bernardo do Campo. Ele estuda em uma escola particular, próximo de casa, está no Pré I e estuda no horário semi-integral, das 07h às 14h. A mãe passa mais tempo com os filhos, o pai é mais ausente, e fica com as crianças mais aos domingos.
Queixa: agressividade, ele bate nos pais, nos professores e em outras crianças quando contrariado.
Encaminhamento: Escola através de uma carta aos pais.
Na entrevista vieram os pais com uma carta da escola de Miguel solicitando que os pais o encaminhassem a um psicólogo devido às agressões a professora, as crianças da sala e a não participação das atividades propostas em sala.
A mãe informou que Miguel está nesta escola desde janeiro de 2014, que anteriormente estudava em uma escola particular menor desde a idade de 01 ano e 6 meses com crianças na idade entre 3 e 6 anos, todas misturadas na mesma sala.
A mãe percebeu o comportamento mais agressivo do filho há 01 ano e meio quando na escola anterior a professora e o corpo docente haviam sido alterados.
Desde então, Miguel tem ficado mais agressivo inclusive em casa, algo que antes não acontecia, ele bate nos pais e no irmão mais velho, depois se arrepende, pede desculpa e quer um abraço dos pais.
Quando perguntei ao pai o que ele faz quando Miguel o bate, ele respondeu que o deixa bater até cansar e não fala nada. Depois Miguel volta, pede desculpas e o abraça. A mãe diz que quando ele tenta bater nela, ela bate nele. Ela acredita que Miguel a respeita mais por conta disso, sendo que, ele a desafia o tempo todo. O pai discorda da mãe, acha que ela não deve bater.
Miguel tem preferência em brincar com crianças mais velhas que ele. Na escola anterior brincava de correr e pintar com um menino na idade de 6 anos e no condomínio em que mora brinca com 2 meninos, também na idade de 6 anos, de correr, de arma, de matar um ao outro, de bicicleta, jogar vídeo game e jogos no tablet. Na escola atual ele não tem amigos.
Atualmente, Miguel não quer ir à escola, pelo menos 01 dia da semana ele chora, arranha e bate na mãe por não querer ir à escola.
Miguel apresenta sono agitado, até já caiu da cama, às vezes pergunta para a mãe se há monstro no quarto e ultimamente tem apresentado medo de relâmpago.
A mãe já o colocou na natação, mas ele não fez, ficou só observando as outras crianças.
Enquanto brinca, a mãe relata, que Miguel ‘esquece da vida’ e não pára nem para fazer xixi, fazendo na roupa, e se é interrompido sendo chamado para ir ao banheiro, fica nervoso e agride. Ele só pára quando as outras crianças param.
Quanto à alimentação, a mãe disse que ele come de tudo, ele é grande para a idade, está acima da altura e peso médio, mas de acordo com o pediatra está tudo bem. Acredito que seja genético, pois os pais são grandes. A mãe informa que ele ainda toma mamadeira, sendo, uma de manhã, às 14h, às 18h e outra antes de dormir, além de almoçar e jantar.
Paciente 2: Marcos
Idade: 5 anos
Histórico familiar: Pais casados, mãe formada em psicologia trabalha em empresa na área de recursos humanos em São Paulo, pai trabalha em uma empresa de logística, próximo da residência em São Bernardo do Campo. A mãe quando era criança era tímida. Os pais planejaram a gravidez, o parto foi de cesárea, ele foi amamentado até os 3 meses de idade, depois foi com mamadeira, leite NAN. A família morou na casa dos pais da mãe de Marcos até 2006, por conta disso, ele não tinha um quarto, dormia com os pais. Aos cinco meses de idade Marcos já ia para escola que ficava próxima à residência.
Queixa: Insegurança, timidez, não interage com outras crianças e pessoas. Desde os 03 anos de idade a mãe vem percebendo essa dificuldade, pois ele é muito grudado com ela e não queria ficar muito com o pai.
Encaminhamento: Uma amiga, psicóloga clínica, percebeu que ele tinha um comportamento muito retraído.
Na entrevista a mãe disse que Marcos está estudando no jardim II, num colégio particularem São Bernardo do Campo. ele iniciou este ano, sendo que, nos anos anteriores estudou em uma escola pequena no bairro próximo a residência. Atualmente na sala de aula há 07 crianças. Em novembro de 2012, ele ficou internado por 10 dias no Hospital Carlos Chagas e no Hospital Samaritano, com diagnóstico de bactéria giardia, sentindo fortes dores no abdômen. Até o momento ainda apresenta dificuldades em ir ao banheiro. A mãe relata que ele tem vergonha de ir ao banheiro, este ano por 03 vezes chegou sujo em casa por não ter ido ao banheiro na escola. Com a mudança de escola, Marcos começou a roer as unhas. Sua rotina: passa o dia na escola, a perua escolar o entrega na casa da vó materna, chegando por volta das 18h-18h30; ele janta e espera sua mãe busca-lo por volta das 20h30, horário que chega do trabalho. O pai tem paciência com ele e brinca bastante, a mãe chega em casa e já cuida dos afazeres domésticos. Aos sábados de manhã, o pai joga futebol com os amigos e algumas vezes leva Marcos com ele.
ENTREVISTA COM OS PAIS: HOLDING AS QUEIXAS
Durante as entrevistas com os pais foi percebido um grau de preocupação devido às descrições das hipóteses diagnósticas relatadas nos encaminhamentos.
D. Winnicott esclarece que:
“Crianças comuns e saudáveis não são neuróticas (embora possam ser), e bebês normais não estão loucos. O relacionamento entre a pediatria e a psiquiatria é mais sutil do que isto. A teoria que estou formulando é a de que no desenvolvimento emocional de cada criança ocorrem processos deveras complexos, e que a falta de progresso, ou o fato de o processo não ter chegado a completar-se, predispõe o indivíduo ao distúrbio mental ou ao colapso. A completação desses processos cria a base para a saúde mental (Da Pediatria à Psicanálise)”.
Nas entrevistas foi possibilitado aos pais um holding (sustentação) das preocupações, das queixas e de como eles receberam seus filhos em suas vidas.Ao longo da sessão, as preocupações foram dando lugar à capacidade de se acreditar que tudo que eles vinham fazendo para seus filhos não estava errado, mas que a psicoterapia seria uma oportunidade de direcionar um olhar singular e respeitoso para entender a necessidade de seu filho naquele momento, ajudando assim a superá-lo e seguir em frente sem o estigma de uma “criança com problemas”.
Winnicottafirma que o holdingé proporcionado por um ambiente saudável, que a mãe se entrega a tarefa, “a mãe devotada comum” e assim possibilita que o bebê se humanize.Um dos conceitos da Psicologia Biodinâmica afirma que um humano se torna humano no contato com outro ser humano e que uma das tarefas do psicoterapeuta é dar holding a mãe, apresentando uma função de ego auxiliar. O cuidado com a relação terapêutica, elemento primordial do processo, propicia uma intervenção adaptada às necessidades e possibilidades, enfatizando a amizade com a resistência e assimbusca dissolver as couraças sem quebra-las, constituindo uma abordagem sistêmica que procura integrar as diversas formas de intervenção verbal, simbólico (sonhos), imaginação, incluindo a abordagem somática.
D. Winnicott também afirma em Consultas Terapêuticas que para atingir resultados é necessário levar em consideração o fato de que os pais antes naturalmente acreditarão no terapeuta do que acharão que o esforço deles tem sido inútil, por isso alguns deles são confiáveis de fazerem de forma favorável um relatório, caso para tanto forem capazes. O relato dos pais, que é o que tem de ser usado em muitos casos, é altamente suspeito como avaliação objetiva e na obtenção de resultados.
ENTREVISTA COM AS CRIANÇAS: APRESENTAÇÃO DO SETTING TERAPÊUTICO
Winnicott a respeito da entrevista de diagnóstico com a criança comenta no livro Da Pediatria à Psicanálise:
“Na primeira entrevista é muitas vezes possível, e nada perigoso, fazer uma espécie de tratamento psicanalítico em miniatura. Se a análise é iniciada posteriormente, em geral descobre-se que foram necessários vários meses para cobrir novamente o mesmo território. Nessas entrevistas, o médico não está tão seguro de si quanto numa análise longa, mas por outro lado ele alcança profundos insights num grande número de casos e isto, de algum modo, equilibra a exiguidade numérica de sua experiência analítica. Aliás, em psiquiatria, uma entrevista de diagnóstico só é frutífera se for também terapêutica”.
Nas entrevistas iniciais com as crianças, observa-se um receio delas ao entrar na sala sozinha com a terapeuta, pedindo a presença da mãe, mas a dificuldade durou pouco tempo, pois ao ver que não havia perigo, e que era um lugar seguro, com muitas possibilidades de brincar com brinquedos, logo as mães foram dispensadas, como vemos nos relatos abaixo:
“Miguel chegou falante ao consultório, pedindo água, mas estava receoso de entrar sozinho na sala comigo. Pedi para mãe entrar conosco para ver os objetos coloridos que tínhamos na sala para brincar, ao ver o receio passou, então a mãe saiu da sala e fiquei sozinha com ele”.
“Na primeira consulta, a mãe de Marcos entrou com ele na sala, pois estava muito desconfiado. Ele entrou na sala, com cabeça baixa e não me olhou nos olhos, sentou no sofá quieto. A mãe saiu da sala, perguntei a ele se gostava de brincar de massinha de modelar, balançou a cabeça afirmativamente, sem me olhar.”
Winnicott, no livro Consultas Terapêuticas, aborda à aplicação da psicanálise na psiquiatria infantil. Apresenta que não há casos iguais e há um intercâmbio muito mais livre entre o terapeuta e o paciente do que num tratamento psicanalítico rígido. O terapeuta deve ser capaz de conter os conflitos dos pacientes, ou seja, contê-los e esperar pela sua resolução no paciente, ao invés de procurar ansiosamente a cura, deve haver uma ausência da tendência a retaliar sob provocação. Além disso, qualquer sistema de pensamento que proporciona uma solução fácil é por si mesmo uma contra-indicação, já que o paciente não quer outra coisa além da resolução de conflitos internos, junto com a manipulação de obstruções externas de natureza prática que podem ser operantes ou mantenedoras da doença do paciente.Essa técnica é extremamente flexível.
Para ilustrar isto comento que apostura da Psicologia Biodinâmica em relação às interpretações e cuidados com o paciente assemelha-se ao que Winnicott descreve em seu relacionamento terapêutico com crianças em seu livro Consultas Terapêuticas,(1984):
“Quando faço uma interpretação, se a criança discorda ou parece se omitir na resposta, presto-me imediatamente a revogar o que disse. Quando me ocorre fazer uma interpretação e estar errado, a criança é capaz de me corrigir. Algumas vezes naturalmente há uma resistência, o que significa que fiz a interpretação correta e que esta está sendo negada. Mas a interpretação que não funciona significa, sempre, que a fiz no momento errado ou da maneira errada, e a revogo incondicionalmente. Se a interpretação estiver correta, pode ocorrer que me tenha equivocado ao verbalizar esse material daquele modo e naquele momento em particular. Interpretações dogmáticas deixam à criança apenas duas alternativas: a aceitação do que eu disse como uma doutrina ou a rejeição da interpretação, de mim e de toda a situação”.

A construção de uma relação de confiança entre o terapeuta e os pacientes foi iniciada na entrevista, a terapeuta relata como foi a apresentação do setting terapêutico:

“Apresentei a massinha de modelar, fez expressão de reprovação, viu as caixas de tinta guache, perguntou o que eram, apresentei e na hora disse que queria pintar. Perguntei se queria as telas ou no papel cartolina, escolheu as telas e sentou-se ao chão”.

CloverSouthwell relata em suas experiências um dos fatores para construção da relação de confiança entre terapeuta e cliente na Psicologia Biodinâmica:

“Tolerância positiva. Ao estar totalmente presente, atento, disponível, radiante, entretanto com aquela paz interna que faz com que o cliente não tenha que afirmar sua própria posição – o terapeuta tem o poder de criar espaço terapêuticopositivo que encoraja a expansão do núcleo organísmico, criando na sala de terapia uma força como a do vácuo ou de um ímã, para trazer à superfície as pressões que estão empurrando do interior do núcleo organísmico.(Desta forma também, o silêncio pode ser uma força positiva)”

Observamos no relato a seguir da terapeuta o silêncio como força positiva na apresentação do setting terapêutico para outra criança:

“Na primeira consulta, a mãe de Marcos entrou com ele na sala, pois estava muito desconfiado. Ele entrou na sala, com cabeça baixa e não me olhou nos olhos, sentou no sofá quieto. A mãe saiu da sala, perguntei a ele se gostava de brincar de massinha de modelar, ele balançou a cabeça afirmativamente, sem me olhar e sem falar. Diante dele coloquei uma mesinha e uma caixa fechada de massinhas, ele ficou olhando, mas não mexeu.

Donald Winnicott no livro O Brincar e a Realidade comenta a existência de um espaço potencial entre o bebê e a mãe, o qual é possível se comparar à relação terapeuta e paciente:

“A fim de dar um lugar ao brincar, postulei a existência de um espaço potencial entre o bebê e a mãe. Esse espaço varia bastante segundo as experiências de vida do bebê em relação à mãe ou figura materna, e eu contrasto esse espaço potencial (a) com o mundo interno (relacionado à parceria psicossomática), e (b) com a realidade concreta externa (que possui suas próprias dimensões e pode ser estudada objetivamente, e que, por muito que possa parecer variar, segundo o estado do indivíduo que a está observando, na verdade permanece constante)”.

Na psicoterapia o brincar com brinquedos, brincadeiras e atividades artísticas foram ferramentas utilizadas no processo com às crianças, devido à pouca idade e vocabulário para expressão verbal de seus sentimentos. Winnicott afirma que a brincadeira é um tipo autocurativo, é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros (livro O Brincar e a Realidade).
COMUNICAÇÃO BIODINÂMICA: TERAPEUTA E PACIENTE

Ricardo Rego expõe que a Psicologia Biodinâmica apresenta o recurso do método das pequenas palavras que consiste em uma técnica que o paciente vai falando, deixando as palavras surgirem sem programação. É um método que deixa vir do paciente um discurso que não segue nenhum direcionamento, que flui ao sabor da onda interna e que pode mudar de rumo a qualquer momento. O papel do analista consiste basicamente em estar presente e atento, interessado na fala, ele não interpreta, não busca ressignificar o que é dito, apenas acompanha (p.47 e 48).

Assim, ao atender os dois casos, procurei ser bastante cuidadosa em relação à minha comunicação com as crianças que atendi. Segue alguns exemplos de comunicação durante os atendimentos:

Miguel
“Perguntei se queria desenhar algum animal do jogo do MICO, começamos a imitar juntos cada animal que tinha no jogo, riu muito, pois fazíamos os sons e jeito de andar de cada animal. Depois voltamos ao desenho, perguntei se podia desenhar um peixe, ele concordou e pintou dentro do peixe com a cor vermelha, sugeri então, se poderíamos desenhar o MICO ou CHICO, concordou, mas disse que não sabia desenhar e se eu poderia desenhar, respondi que sim, disse que ele poderia pintar por dentro. Comecei a desenhar, ele fez também um desenho de um sol com a cor amarela e quando eu terminei, ele pintou o macaco que eu havia desenhado.”

Marcos

“Diante dele coloquei uma mesinha e uma caixa fechada de massinhas, ele ficou olhando, mas não mexeu. Perguntei se ele queria ajuda para abrir a caixa, afirmou com a cabeça que sim, sentei ao lado dele e devagar peguei a caixa, fui abrindo no campo de visão dele, deixando as massinhas em cima da mesa disponíveis para ele. Aos poucos eles tocando em cada fileira de massinha e fazendo pequenas bolinhas, depois as amassava separadamente, sem misturar as cores. Perguntei a ele se queria grudar as bolinhas amassadas em uma folha de sulfite, ele concordou com a cabeça (até o momento ele não olhava em meus olhos) e começou a grudar as bolinhas. Durante a esse processo, troquei de lugar e sentei na frente dele, então ele me olhou nos olhos por um breve tempo, baixou a cabeça. Perguntei o que eram as bolinhas amassadas, ele ficou em silêncio, disse se eram pizzas e ele respondeu que não, continuou a bater nas massinhas.”

EbahBoyesen, em A Essência da Terapia, questiona a maneira como um terapeuta se relaciona com o cliente e avalia as suas qualidades:
“Acredito firmemente em uma certa simbiose entre as pessoas, e especialmente entre cliente e guia. A atitude da parteira é simbólica. Ela aceita e guia aquilo que ‘vem de dentro’ do cliente. Isso está baseado na sólida suposição do cliente de que o terapeuta está em contato com seu ‘fluxo oceânico’; o fluxo que confirma que a pessoa está em contato com a vida, o universo, ou algo maior do que eles mesmos. Este fluxo e esta confiança atuam como o princípio da cura e vínculo entre as duas pessoas. A partir disso, o terapeuta pode encorajar o cliente a contactar, sentir e expressar a sua força interior”.
Nos atendimentos infantis a brincadeira e os brinquedos serviram de ferramentas de expressão para às crianças, apesar da pouca idade, havia uma necessidade de comunicação dos sentimentos. EbahBoyesen explica a seguir a importância da sensibilidade do terapeuta no processo dinâmico de comunicação:
“A essência dos sentimentos não pode ser verbalizada, pois eles parecem passar por uma metamorfose no momento exato em que são concebidos. Por isso, a comunicação pode ser um problema. Contudo, fazendo um exame vital das experiências dentro de si mesmo, o processo continua pelo seu próprio valor. É claro que as energias envolvidas, que podem parecer distintas em pessoas diversas, pela natureza de seu conteúdo emergem da mesma fonte em todos nós e pode ser comunicadas dependendo da confiança e do desejo dentro do indivíduo para se conhecer e compartilhar esse conhecimento com outros. O terapeuta deve permitir o processo dinâmico que vem de dentro do cliente e confiar na sua forma individual de auto expressão. É neste ponto que a confiança é testada pela sensibilidade do terapeuta no espaço experimental do cliente. É um momento dinâmico. Acompanha-lo é alcançar o sucesso terapêutico; interrompê-lo ou questioná-lo é como uma violentação energética (A Essência da Terapia)”.
O OLHAR BIODINÂMICO NOS ATENDIMENTOS

– Setting terapêutico com a função de acolher o gesto espontâneo e redescoberta da personalidade primária.

O paciente pode obter do terapeuta um ambiente facilitador, uma mãe suficientemente boa, para que o processo de amadurecimento e sua personalidade possam se desbloquear e florescer. Quando o processo ocorre satisfatoriamente desenvolve-se o self verdadeiro: o gesto espontâneo é correspondido pelo ambiente. A pessoa é o que ela é, e isso é bom para ela mesma e para o ambiente que a rodeia, há uma inteireza e coerência no existir, um modo espontâneo e pessoal de realizar as tarefas cotidianas.

No livro Deixa Vir… Elementos clínicos da Psicologia Biodinâmica, Ricardo Rego explica que quando o ambiente é capaz de acolher e complementar este gesto, não há uma ruptura na continuidade do ser. Mas quando o gesto cai no vazio ou é frustrado, ele é substituído por uma submissão ao ambiente, ocorre assim o falso self (p.67).

Ricardo Rego relata que em alguns casos, o falso self pode se beneficiar com a utilização da técnica de associação livre de movimentos.
Ocorre muitas vezes uma excitação de esperança e descoberta quando o paciente se permite deixar fluir uma sequência de movimentos involuntários, sons e expressões que brotam dentro dele, ações que não foram voluntariamente decididas, mas que mesmo assim acontecem e que são inegavelmente algo que a ele pertence (p.68).

A seguir vemos um exemplo do setting terapêutico com a função de acolher o gesto espontâneo do paciente:

Marcos
“Depois de algumas sessões ele encontrou na caixa lúdica, a meleca verde, que parece uma gosma gelada, não apresenta uma forma especifica, mas é divertida. Marcos ao pegar na meleca começou a rir, e achou divertida por ela escorrer pelos dedos, ser gelada, e então começou a jogá-la no chão, até que em um dos movimentos ele jogou na parede, ele parou e me olhou tenso, eu disse que ele podia jogá-la na parede que não tinha problema, quando ele ouviu isso, não parou mais de jogar a meleca na parede, ele ria muito, pulava, até um momento que sem querer a meleca caiu no short dele, ele quis tirá-la rapidamente e ficou preocupado porque havia molhado um pouco. Eu tranquilamente o ajudei e disse para ele não se preocupar que antes da sessão acabar a roupa dele já estaria seca. Ele ouviu e continuou a brincar com a meleca. Por um período, quando ele chegava na sala era o brinquedo que primeiro procurava”.
Donald Winicott, descreve o conceito de self verdadeiro no texto Distorção do Ego em termos de falso e verdadeiro self (1960):

“No estágio inicial o self verdadeiro é a posição teórica de onde vem o gesto espontâneo e a ideia pessoal. O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real. Enquanto o self verdadeiro é sentido como real, a existência do falso self resulta em uma sensação de irrealidade e em um sentimento de futilidade.
O falso self bem sucedido em sua função, oculta o self verdadeiro ou então descobre um jeito de possibilitar ao self verdadeiro começar a existir”.

Winnicott no livro O Brincar e a Realidade aborda o brincar como descoberta do seu self:
“É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”.

– A amizade com a resistência

No período de resistência, tudo que se opõe ao acesso do paciente ao inconsciente que pode ser consciente ou inconsciente, ou seja, o paciente apresenta forças dentro de si que se opõe ao tratamento, como preguiça, vergonha, desconfiança ou medo ou ainda algo a ser desvendado. Cabe ao terapeuta a difícil tarefa de dirigir o andamento da análise.

Miguel

“Em todas as consultas apresentou dificuldades em finalizar as sessões, em terminar as brincadeiras, na quarta sessão chorou e na quinta jogou os brinquedos em várias direções dentro da sala, nesta sessão, o segurei firme, fiquei na altura dos olhos dele e disse que lá não poderia fazer aquilo. Após esse episódio, sessão após sessão foi aceitando melhor o término. Após supervisão, deste episódio, comecei a informá-lo com mais antecedência quantos minutos faltavam para terminar. Percebi que se acalmou ao aprender sobre o tempo”.
André Samson no artigo Couraça Secundária aborda que a Psicologia Biodinâmica visa como meta terapêutica a auto regulação, que tem prioridade sobre o fechamento da curva orgástica. O que determina a capacidade de autorregular é antes de mais nada a capacidade de vivenciar a ansiedade gerada pelo momento em que o material inconsciente se torna conciente. é aí que entra o papel do terapeuta que irá dar suporte e segurança para que o paciente realize esta passagem. Aqui a ‘amizade com a resistência’ e o respeito ao tempo orgânico do paciente se tornam mais importantes. O terapeuta deverá servir de âncora e, ao mesmo tempo, fazer o papel de ‘parteira’ para o paciente, prevenindo-o do contato prematuro com o material reprimido. O terapeuta age como um ‘regulador externo’ para o paciente até que este aprenda a se autorregular. Para o terapeuta o importante é ter a noção de pulsação do movimento de prazer do paciente, com o objetivo de incentivar sua expressão. A flexibilização do movimento pulsativo prazeroso vai depender da capacidade do paciente de lidar com o material reprimido e com o conflito presente-futuro. É o trabalho do terapeuta facilitar o aumento desta flexibilidade.
– O respeito à singularidade

A Psicologia Biodinâmica trabalha com o respeito à singularidade do paciente, cada pessoa é um mundo, cada um tem um jeito específico de ser, pensar e agir e frente a essa multiplicidade, o terapeuta se adequa à necessidade vigente apresentada no momento presente das sessões.

A seguir vemos exemplos de atendimentos infantis respeitando a necessidade individual das crianças:

Miguel
“O acordo de levar um brinquedo ao finalizar a sessões se manteve durante todas as consultas. Nas primeiras sessões ele queria levar muitos brinquedos, depois foi diminuindo, levava apenas 01 ou 02 carrinhos com a ideia de brincar com o irmão mais velho. Ele também sempre trazia de volta o que levava e gostava de me mostrar no início de cada sessão que tinha trazido de volta o brinquedo”.
Marcos
“Após a primeira sessão, Marcos voltou e por muitas sessões ele brincou com as massinhas, fazendo bolinhas e amassando, até chegar o momento de misturá-las, ele colava nas folhas de sulfite em formato de círculo. Aos poucos foi possível ver Marcos mais solto, falante, ele chegava e contava o que tinha acontecido na escola ou na família”.

CONTRIBUIÇÃO PSICANALÍTICA À CLASSIFICAÇÃO PSIQUIÁTRICA
Nos atendimentos infantis é possível observar a necessidade do ego da criança dependente inicialmente de um ego auxiliar, o qual a ajuda no processo de adaptação e absorção do meio durante o desenvolvimento emocional:

“Nós agora vemos o ego da criança como algo dependente inicialmente de um ego auxiliar, algo que aproveita a estrutura e a força do sistema altamente complexo e sutil de adaptação às necessidades, sendo essa adaptação suprida pela mãe ou pela “substituta da mãe”. Vemos também o interessante processo da absorção, na criança, dos elementos do cuidado com a criança, aqueles que poderiam ser chamados de elementos ‘do ego auxiliar’ (D.Winnicott, Contribuição Psicanalítica)”.
A classificação deve ser afetada por essas formulações teóricas como menciona Donald Winnicott, no capítuloContribuição Psicanalítica à classificação psiquiátrica, e também afirma que:

“A história do desenvolvimento instintivo pré-genital levou à elaboração da ideia de regressão a pontos de fixação. Pontos de fixação eram os pontos de origem dos diferentes tipos de doença. Indicavam que a ansiedade (sendo intolerável) tinha levado o indivíduo à organização de defesas de grau ou qualidade que resultavam no bloqueio do progresso adicional no desenvolvimento instintivo. A classificação se tornou relacionada a esses pontos de fixação, bem como aos mecanismos de defesa do ego, que foram eventualmente explorados exaustivamente em termos psicanalíticos por Anna Freud (1936). No centro de tudo isso, estava ansiedade de castração e o complexo de Édipo. As doenças eram as neuroses”.

Podemos ver esse exemplo em um dos atendimentos infantis:

“Após quatro meses de sessões, Marcos me pediu para chamar os pais para participar de uma de nossas sessões… Na sessão seguinte vieram mãe e pai, entraram com Marcos na sala. Marcos conduziu a sessão, pegou as massinhas, mostrou para os pais como fazia as bolinhas, pediu para eles fazerem também, como as amassavam e colavam na folha de sulfite, pegou canetinhas e fez desenhos com o pai e a mãe, pediu para cada um desenhar, inclusive e, o qual observava tudo sem interferir. Apresentou a meleca para os pais, jogou na parede, jogou nos pais, em mim, enfim, estava muito solto e feliz. Perguntei a mãe, como ele era em casa quando ele se sujava com alguma coisa, ela me disse que ele não gostava, mas não porque ela brigava, mas o pai, que ele não gosta muito de se sujar. Foi uma sessão muito rica, Marcos mostrou aos pais como é brincar com coisas simples e que é possível brincar todos juntos, parar um tempo para se divertirem.”

A partir da análise do self verdadeiro é possível auxiliar o paciente em seu processo de desenvolvimento emocional. A psicanálise do falso self, análise que é orientada para o que não significa mais do que o ambiente internalizado, só pode levar à decepção. Pode haver um sucesso aparente inicial. Tem se reconhecido nos últimos anos que para se comunicar com o self verdadeiro onde se deu uma importância patológica ao falso self é necessário para o analista antes de mais nada propiciar condições que permitam ao paciente delegar ao analista a carga do ambiente internalizado, e assim se tornar uma criança altamente dependente, mas imatura e real; então, e somente então, o analista pode analisar o self verdadeiro, D. Winnicott.
Na Psicologia Biodinâmica, uma das metas importantes consiste em ajudar o paciente a reconhecer em si as manifestações da personalidade primária, integrando essas características à sua vida e personalidade.

CONCLUSÃO

A Psicologia Biodinâmica propõe a associação livre de ideias e movimentos e a amizade com as resistências do paciente durante o tratamento psicoterápico.

GerdaBoyesen, aborda que a criança nasce com sua própria circulação de energia, com um sentimento de onda oceânica que a mantém num estado de profunda felicidade, de contentamento interior. E a criança sem circulação libidinal, entretanto, cria uma dependência da mãe, um sentimento de catástrofe iminente, a geração de uma personalidade secundária, a dependência para o prazer, e um não contato com interior do corpo e das emoções.

Nos atendimentos infantis observamos inicialmente um bloqueio da circulação da energia, demonstrado em sintomas nos comportamentos dos meninos.
Durante o processo psicoterapêutico alinhando as abordagens da Psicologia Biodinâmica e dos conceitos psicanalíticos de Winnicott, foi possível o restabelecimento do fluxo libidinal e ao retorno de um contentamento interno.

BIBLIOGRAFIA

Boyesen, E., A Essência da Terapia, texto em Cadernos de Psicologia Biodinâmica, vol. 2 –páginas 23 a 31- Editora Summus.

Rego, R., Deixa Vir… Elementos Clínicos de Psicologia Biodinâmica,AxisMundi Editora, 2014.

Samson, A., A Couraça Secundária, artigo publicado na Revista Reichiana número 3, São Paulo, 1994.

Site http://ibpb.com.br/?page_id=321, O que é Psicologia Biodinâmica.

Southwell, C., Pressão Organísmica Interna, artigo publicado Cadernos de Biodinâmica vol.1 –páginas 14 a 21 – Editora Summus (1983).

Winnicott, Donald W. Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil, Imago Editora, 1984.

Winnicott, Donald W.,Da Pediatria à Psicanálise, Obras Escolhidas, Imago Editora, 2000.

Winnicott, Donald W.,O Ambiente e os Processos de Maturação, Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Artmed Editora,1983, reimpressão em 2007.

Winnicott, Donald W., O Brincar e a Realidade, Coleção Psicologia Psicanalítica, Imago Editora, 1975.

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