Massagem Biodinâmica em bebês, o espaço potencial e a constituição do verdadeiro Self

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Sônia Megumi Iriya

Para iniciar…

Entender o sentido não é preciso. Sentir o sentido é que é vital. (Novembro de 2007)

Além do mar, a lenda do amor que constrói. Construo e atravesso gerações. Menstruo, menstruo, até breve, não demora. Amora, amorinha, Mariana um dia. Uma noite, do amor, de Mauro. (Dezembro de 2005)

Sete anos depois a amorinha se fez Ana Paula, não Mariana, em ventre e corações férteis. Nossa família é agora um trio: eu, Sônia, esposa e mãe; Mauro, marido e pai; Ana Paula, filha amada e tão querida. Após tantos e tantos meses (que no fim se transformaram em anos), a mim foi concedida a regalia, a honra e o prazer de escrever o relato de caso sobre as massagens na minha pequena grande filha, nascida no início do terceiro ano do curso. Nenhum assunto se esgota nos recortes que fiz ao longo deste trabalho. E em nenhum nível, seja ele mental, emocional, teórico ou prático. Escrever sobre as massagens em Ana Paula… E quando foi mesmo que elas começaram? A princípio, lembrei das vezes em que fiz o Toque da Borboleta e a Shantala, essa de forma mais constante a partir dos 2 meses de vida dela. Mas de repente foi inevitável recordar todo o trabalho corporal que fiz ao longo de quase 39 semanas de gestação. Um relato disso e algumas reflexões serão colocadas inicialmente. Para então falar das massagens realizadas desde o nascimento e que ainda acontecem de forma diária. A massagem que começa no ventre: minhas práticas corporais físicas e energéticas Durante boa parte da gestação, pratiquei tai chi regularmente, como já era da minha rotina há mais de 20 anos. Pelos estilos que vinha praticando, muitos dos movimentos incluiam não apenas o vai e vem de peso de um lado para o outro e de uma perna para outra, mas também rotações de quadril, como num movimento de máquina de lavar. Movimentos ora lentos, ora rápidos. Nesse tipo de movimentação, sinto que faço uma auto massagem interna. Como não imaginar Ana Paula sendo massageada já no ventre atavés dessas práticas? Para além da movimentação mecânica e dos benefícios ao corpo, sempre acreditei que todo o bem estar provocado em mim seria algo compartilhado com ela. Muitos exercícios de alongamento, relaxamento, vitalização e melhora da circulação energética, dentro da tradição do tai chi, práticas tibetanas e outras mais próximas do yoga. Pelos mestres que me referenciam, os objetivos são muito semelhantes, apesar das variações no tipo de movimentação. Andrezza Franzoni Alexandre, em artigo sobre a preparação corporal para o parto e a psicoprofilaxia na gestação, cita Fadynha (2008, p.17), que destacou os benefícios da prática regular de yoga durante o período gestacional. Alguns deles são: adaptação ao novo eixo e maior equilíbrio em função da alteração do centro de gravidade do corpo; alívio de desconfortos como prisão de ventre e gases já que muitas posturas realizam uma massagem nos órgãos internos; melhora da circulação sanguínea e do retorno venoso; alívio de dores na coluna ao proporcionar maior alongamento, fortalecimento muscular e manutenção de uma boa postura corporal; fortalecimento do assoalho pélvico, evitando assim lacerações de períneo e episiotomia; melhora da capacidade respiratória e, assim, da oxigenação tanto da mãe como do bebê; estimulação do contato entre mãe e bebê ainda no útero; promoção de relaxamento geral. (ALEXANDRE, 2010, p. 5-6) Cada praticante de tai chi tem sua motivação pessoal, e os objetivos variam conforme a época da vida. Há muitos anos, busco e encontro no tai chi o que a Biodinâmica chama de auto-regulação. Em termos gerais, podemos dizer que auto-regulação é a capacidade inerente a todo ser vivo de funcionar organicamente da forma mais adequada em direção à sua saúde integral, utilizando seus próprios recursos e potenciais. Na Medicina Tradicional Chinesa, na qual o tai chi pode ser inserido como um pilar fundamental, o conceito de organismo engloba todos os aspectos do ser, não só o físico. E um aspecto afeta o outro. Dessa forma, favorecer a circulação nos chamados meridianos ou canais de energia promove a saúde geral e previne o aparecimento de desequilíbrios. Manter minhas práticas corporais durante a gestação era uma extensão do que sempre busquei em termos preventivos. Para a Biodinâmica, “o organismo saudável tem (…) o poder de exprimir, resolver e digerir até mesmo violentos choques emocionais, contanto que tenha as condições necessárias de paz e segurança. Apenas quando a pessoa perde sua capacidade inerente e natural de auto-regulação e de autocura é que a neurose se desenvolve.” (IBPB, 1983) De modo mais específico, Gerda Boyesen fala sobre o papel fundamental da auto-regulação psicoperistáltica na eliminação das tensões do dia-a-dia. “Descobri que o corpo tem seu próprio mecanismo natural de eliminação e de regulação. O psicoperistaltismo tem como função dissolver e eliminar a tensão nervosa. (…) Eu procurava descobrir a auto-regulação que me permitiria eliminar toda a tensão nervosa sem ter de recorrer às massagens. (…) Pareceu-me evidente que o psicoperistaltismo acompanhava o movimento interior de prazer, de contentamento consigo, de gratificação e de realização de si. Descobri que havia dois tipos de tensão que podiam impedir o bom funcionamento do psicoperistaltismo: o primeiro tipo era concernente aos múltiplos conflitos antigos recalcados, e o segundo, aos efeitos do stress cotidiano sobre o organismo. (…) A auto-regulação consiste na prática diária da abertura do psicoperistaltismo que permite dissolver as tensões do dia.” (BOYESEN, 1986, p. 86-87) Na gestação não foi diferente. Durante a prática, à medida em que a energia circulava, era comum ouvir minha peristalse abrir. Queria estar bem em vários níveis, do orgânico ao espiritual, e assim beneficiar minha cria. E compartilhar com ela o prazer da atividade em si, daquele momento de bem estar e de meditação em movimento. No livro T´ai Chi Ch´uan para a Saúde, os autores falam basicamente dos aspectos do tai chi relacionados ao treino de energia (Ch´i Kung) e à meditação. Nele consta que “realizando os exercícios, você relaxa o corpo, mantém o fluxo de ch´i (energia) e libera seus pensamentos. Os benefícios devem aparecer rapidamente: superação da tensão, mais energia e imunidade a doenças psicossomáticas” (LEE, 1989, p. 15). Salientam ainda a importância do equilíbrio entre os elementos yin e yang (presentes em tudo na natureza) para a saúde integral. Pois as modificações nesse relacionamento é que mantêm o fluxo livre de energia (ch´i ) no organismo. Praticando tai-chi na medida das minhas possibilidades e da minha vontade, a auto-regulação ia sendo favorecida por esse equilíbrio dinâmico E, pela movimentação do meu corpo, Ana Paula se movimentava também e ia sendo massageada durante os exercícios e durante a realização das sequências (formas). A massagem intensiva do parto natural Em 2009, participei de um Spa do Movimento com Ivaldo Bertazzo. Coreógrafo, ele coordena a Escola do Movimento, pautada no Método Bertazzo de educação e trabalho corporal. Uma das bases de sua atuação é o estudo do Método GDS das Cadeias Musculares e Articulares de Godelieve Denys-Struyf. Em cada edição do Spa, Bertazzo enfoca um aspecto diferente do movimento. Quando participei, impressionou-me seu comentário sobre o papel do parto normal na estruturação saudável da coluna do bebê e a importância desse processo na construção de um ser que também se movimenta de forma saudável. Todo o esforço realizado pelo bebê na hora do parto e a pressão exercida sobre sua cabeça são importantes mais para frente, quando de fato vão se estabelecer as curvaturas saudáveis da coluna vertebral. Para além do aspecto estrutural biológico, imagino todo o trabalho de parto e o momento em si expulsivo como um intensivo trabalho corporal para ambos, mãe e bebê. E as repercussões desse processo também são várias, em diferentes níveis. André Trindade, formado no Método GDS, sugere algumas delas. Inicialmente descreve que, antes de se iniciarem as contrações uterinas, o bebê encontra-se em posição de flexão, voltado para o próprio centro, em posição fetal e com a cabeça voltada para o canal vaginal. “Ao perceber as fortes contrações que o expulsam do útero, o bebê inverte a posição de enrolamento anterior e precisa abrir seu corpo, desenrolando-se completamente, passando para uma posição de extensão (…). Nesse percurso, o corpo do bebê faz, ao mesmo tempo, um movimento em espiral, efetuando uma rotação. O movimento em espiral facilita a progressão nesta passagem estreita e difícil. (…) Após o nascimento e o grande esforço no trabalho de parto, há um estado de relaxamento para a mãe e o bebê. Ele retorna espontaneamente (possivelmente de forma reflexa) à posição de flexão e enrolamento (…). Aqui o autor chama a atenção para a “alternância de posturas corporais de abertura e recolhimento vivida pelo bebê. Tais posturas farão parte de seu repertório de movimentos e representarão para ele atitudes e comportamentos: ir para fora, conhecer o mundo movido pela curiosidade em relação ao desconhecido e, em seguida, poder voltar para si, para o próprio centro, recolhido no seio de sua comunidade, da família, no colo do adulto ou em seu berço, nutrindo-se e preparando-se para novos movimentos. Expansão e recolhimento se sucedem, como nos movimentos das ondas do mar.” De forma bastante familiar ao pensamento biodinâmico, ele coloca que uma das funções de seu livro é “encontrar soluções criativas para podermos viver a alternância de forma plena.” (TRINDADE, 2007, pg. 42-44) Expansão e recolhimento, o pulsar natural daquilo que é vivo. Conceitos e vivências muito familiares também aos praticantes de tai chi quando falam do equilíbrio dinâmico entre os elementos yin e yang. As aulas sobre gestação, parto e puerpério do curso de Massagem Biodinâmica só intensificaram meu desejo de ter um parto natural humanizado. Escolhi uma obstetra indicada por Dulce Amabis, e uma indicação levou a outra. Uma doula também obstetriz que me ensinou a fazer a preparação do períneo, uma anestesista que, a princípio, usaria apenas acupuntura, uma pediatra neonatal que só faria procedimentos realmente necessários. O parto de Ana Paula foi realmente natural e muito rápido. Entre o acordar com um pouco de cólica e o nascimento, foram menos de 4 horas. Os primeiros toques, ainda na maternidade Desde o início, optamos pelo alojamento conjunto na maternidade. Não víamos motivo para nem sentido numa separação abrupta. Ficamos os três no ninho que já vinha sendo construído desde antes da concepção. O contato pele com pele foi então constante e intenso, continuidade do que já vinha sendo. O toque amoroso e as massagens leves eram inevitáveis e, em muitas ocasiões, intuitivas. Na amamentação, nos momentos de choro, nos de silêncio. Pela delicadeza do início, um pouco de Massagem Toque da Borboleta já ia acontecendo. Dormimos no hospital duas noites. Toque da Borboleta é uma massagem bastante suave e delicada que pode ser realizada desde o nascimento. Seu fundamento encontra-se na Bioenergética Suave de Eva Reich. Ela lembra que “a amamentação deve voltar a ser natural, incontestável. Com a mãe amamentando o filho e, ao mesmo tempo, acariciando-o amorosamente, tem-se o mesmo efeito da massagem para bebês.” (REICH, 1998, p. 20) Sobre a importância da massagem suave desde o início de vida dos bebês, Eva comenta que eles “não possuem couraças ‘enraizadas’ (rígidas), mas flexíveis e facilmente reversíveis. Isso significa também que é possível evitar o surgimento de couraças rígidas em crianças. (Em minhas intervenções, a massagem suave para bebês e outras técnicas ajudam de modo surpreendentemente rápido.) Eu havia dito também que a presença da mãe durante e após o nascimento pode ajudar a evitar o surgimento de distúrbios psíquicos (…).” (IDEM) Eva diz denominar seu trabalho de Bioenergética Suave “porque, essencialmente, é um trabalho realizado com a energia.” (IDEM, p. 25) Sua atuação na medicina pré e perinatal, mais as pesquisas e observações na clínica, levaram-na a utilizar a vegetoterapia suave como método terapêutico com bebês, crianças e adultos. Diz que “ela serve, primeiro, para evitar o processo de encouraçamento em bebês muito pequenos e criar a ligação energética corporal entre os pais e o filho. (…) Meu método também é importante para evitar distúrbios (precoces ou não), para evitar que o encouraçamento se solidifique, para garantir uma ligação (bonding) boa e suficiente entre o bebê (…) e seu responsável (…)”. (IDEM) Por conta de minha formação e das informações resgatadas no curso, sabia da importância do contato próximo e amoroso desde os primeiros momentos. E a delicadeza no trato e no toque era algo que simplesmente “acontecia”, uma necessidade natural que devia e podia ser respeitada. Por isso também a opção pelo alojamento conjunto e pelo parto natural humanizado para facilitar essa interação. Dulce Amabis lembra que, “ao ser massageado, o bebê fica rosado, quente, vibrante, e um sentimento de bem estar se faz presente tanto na mãe quanto no bebê. As sensações agradáveis que o bebê vivencia no corpo transformam-se no núcleo ao redor do qual ele formará sua identidade. A intensidade do contato mãe e bebê é um pré-requisito para a profundidade e o sucesso da comunicação entre eles e para a criação do vínculo amoroso.” (AMABIS, 2014, p. 102) Eliana Pommé comenta que “uma das funções mais importantes da mãe nos primeiros meses de vida do bebê é oferecer-lhe holding , termo descrito por Winnicott como ‘toda ação que pode criar um ambiente acolhedor’, a forma total do relacionamento mãe-bebê que torna possível ao bebê tornar-se compreendido em suas necessidades específicas, e atendido, tanto no sentido físico quanto psicológico, de acordo com as mudanças que acompanham seu crescimento. Protegê-lo das agressões, levar em conta a sensibilidade da pele, dar-lhe colo quando necessário e desempenhar a rotina adequada de cuidados fazem parte do holding que possibilita ao bebê a experiência de confiabilidade. Para que os recém-nascidos tenham um desenvolvimento saudável e possam amadurecer ganhando independência gradativamente, as experiências do princípio da vida devem acontecer num ambiente propiciador”. (POMMÉ, 2014, p. 90) A descoberta do contentamento mútuo e do olhar amorosoChegar em casa com nossa bebê foi maravilhoso e, ao longo dos dias, também difícil. Hoje compreendo que a opção de morarmos apenas os três nesse início foi uma aventura desafiadora e complexa. Mas as reflexões sobre isso ficarão para uma outra ocasião. Voltemos às massagens. Nem sempre foi fácil e espontâneo fazer massagem em Ana Paula após esse início em casa. Resistência minha, ansiedade, medo… De estar tensa, de não agradar, não sei ao certo. Havia o contato constante, os cuidados diários, mas não ainda uma prática sistemática de massagem. Todo esse processo, no caso, com a massagem Shantala, teve início quando minha bebê estava com 2 meses. A psicóloga Helena Guimarães foi fundamental. Numa atuação conjunta com minha obstetra, ela fez um acompanhamento domiciliar do pós parto. Trouxe uma escuta atenta e cuidadosa, além de propor coisas simples e importantes, como ir conosco pela primeira vez dar uma volta de carrinho pela vizinhança. Foi como uma acompanhante terapêutica, num “estar junto” que diluiu algumas dificuldades e inseguranças. Em relação à massagem, eu já tinha a teoria, já tinha ensinado outras pessoas a fazer, mas agora era eu e minha cria. Meus sentimentos, meu cansaço, minha energia sendo investida. Como fez diferença alguém me pegar pela mão e dizer com calma “Hoje vamos fazer um pouco de massagem na sua bebê. Vou fazer um pouco, depois você faz, depois o Mauro faz”. Esse fazer junto dissolveu uma resistência. Foi o início de um ritual diário antes do banho. Eu fazia a massagem, e Mauro dava banho em seguida, complementando com mais alguns toques e deslizamentos. Foram meses e meses nessa cumplicidade. Apesar do meu cansaço e de inseguranças em relação a choros, cólicas e outros desconfortos, nosso contato ia ficando cada vez mais fortalecido. Massagear aquele ser era um momento de prazer mútuo. A massagem Shantala foi difundida no ocidente pelo pediatra francês Frederick Leboyer. Em viagem à Índia, ele ficou encantado ao observar Shantala, uma mãe, massageando seu bebê. Essa massagem trabalha com muitos deslizamentos contínuos e ritmicos. Aqui, falar sobre a técnica em si e seus movimentos não é o fundamental. Quero apenas destacar alguns comentários preciosos de Leboyer que estão em perfeita sintonia com as propostas da abordagem biodinâmica. Muito poético, ele diz que a “massagem dos bebês é uma arte tão antiga quanto profunda. Simples, mas difícil. Difícil por ser simples, como tudo o que é profundo. Em toda arte há uma técnica. Que é preciso aprender e dominar. A arte só aparecerá depois. De fato ela está ali o tempo todo. Visto que, justamente, ela está além da existência.” (LEBOYER, 1995, p. 29)

“De resto, virá um dia em que a massagem, finalmente, emanará da fonte. Virá um dia em que cada ‘tempo’, de modo natural, simples e necessário, parecerá nascer do tempo precedente. Como os passos de uma dança. Então, atingida tal perfeição, onde estará você? Quem massageará? Quem será massageado? Quem guiará? Você? O bebê? Quem conduzirá o balé? Qualquer coisa… no interior. Que está ali. Que sempre esteve ali. Adormecida, porém. Qualquer coisa que está ali e que sabe.” (LEBOYER 1995, p.133)

A parte do rosto me emocionava muito pela nossa troca de olhares. Não era só um olhar macio de prazer, era um olhar adocicado, suave, de amor silencioso. Quase impossível descrever como me senti a primeira vez em que, passando suavemente meus dedos pela sua testa, ela sorriu de forma encantadora. “Meu amor, isso é bom, não é? É gostoso mesmo, e eu também adoro massagear você. Te amo tanto!…” Dulce Amabis lembra que “os bebês precisam do calor, do cheiro, da voz e do olhar da mãe ou de uma figura materna. Segundo o psicanalista D.W.Winnicott, o olhar da mãe é um aspecto essencial da comunicação silenciosa com seu bebê. Quando o bebê olha o rosto da mãe ele vê ele mesmo. O que transparece no olhar da mãe é a própria visão do bebê e a satisfação que está ali contida. ‘ Ser visto pelo olhar da mãe é uma das bases do sentimento de existir: quando olho sou visto; logo existo’ (WINNICOTT, 1975, p. 157).” Reforça ainda que, “quando o cuidado materno favorece a coesão psicossomática, o eu pessoal é sentido como estando contido nos contornos dados pelos limites da pele. A massagem propicia ao bebê a percepção dos limites do seu corpo. Segundo Winnicott, o amadurecimento emocional depende de uma tendência inata e da existência contínua de cuidados adequados.” (AMABIS, 2014, p. 100) Levando isso em consideração de forma, em parte, intuitiva, comumente minha intenção era também propiciar sensação de continuidade e de inteireza. Nesse sentido, a massagem Shantala era interessante pela forma de aplicação, em que o contato com o bebê é quase ininterrupto. Quando, por exemplo, uma das mãos de quem aplica está quase chegando à mão do bebê, a outra já está iniciando o mesmo deslizamento lá em cima no ombro. Há uma continuidade bastante agradável também a quem aplica a massagem. E um delicioso contato pele com pele que flui com cadência ritmada. De novo Amabis, ao falar sobre a importância dos cuidados gerais com o bebê, salienta que eles “são alimentos tão indispensáveis quanto o leite, pois a pele é o maior órgão sensorial do corpo, e o toque provoca uma sensação muito significativa no ser humano. Na visão de Montagu (1986, p. 22), ela é mais determinante que a do olfato, paladar, audição ou visão, especialmente nos bebês e nas crianças. O tato é o sentido mais desenvolvido no recém-nascido, pois é acionado cedo, uma vez que os bebês são cercados e tocados por tecidos e líquidos mornos desde o início da vida fetal (KLAUS & KLAUS, 1989, p. 60). Os bebês sentem o mundo através da pele, pois é pela experiência táctil que eles começam a explorar e perceber o mundo. Todas as pessoas precisam de contatos carinhosos, mas isso é essencial nos primeiros meses de vida. A massagem propicia esse contato carinhoso. Os bebês que são tocados e acariciados desde o início da vida terão mais tarde melhores condições de comunicação, de se aproximar e de se relacionar com outras pessoas, vivenciando relações mais felizes. O carinho tem o poder de se propagar de uma geração para outra. As impressões tidas nessa época marcam o ser humano para toda a vida futura.” (AMABIS, 2014, p. 101) As mudanças na possibilidade do massagear: a adaptação ao que é possível no momento Como era de se esperar, aos poucos o que seria uma massagem mais completa, de corpo inteiro, foi dando lugar a breves sequências em algumas partes do corpo. Aproveitava os momentos antes e depois do banho, mas também outros, principalmente depois que ela passou a tomar banho em pé no box do banheiro (por volta de 1 ano e 4 meses). No meio de uma brincadeira massageava as costas, os braços ou as pernas. Enquanto ela pegava no sono, distribuía a energia em deslizamentos suaves. Aproveitava também antes de colocá-la no berço à noite. Era fácil percorrer todo o corpo dela e ainda carregá-la no colo. Enquanto ela era bem pequena, ao realizar a Shantala, e mesmo depois, era bem comum eu usar tipos de toques como o Toque Básico e a Massagem Suave de Contorno da Biodinâmica. No Manual de Massagem Biodinâmica, os autores escrevem, sobre o Toque Básico, que “metaforicamente, poderíamos dizer que essa técnica seria como uma pomada genérica, à qual se pode adicionar substâncias terapêuticas, para então aplicá-la no trabalho – um toque básico veicula uma dada intenção, um determinado ritmo, permite lidar com cada camada orgânica específica e assim por diante.” (REGO et alii, 2014, p. 133) Como agora Ana Paula já está com mais de 2 anos de idade, as diferentes intenções no toque estão mais explícitas dependendo do momento do dia. Mais perto da hora de dormir, um ritmo mais lento é bem vindo para acalmar a agitação de horas de brincadeira e curiosidade incessante. Tenho também aproveitado o momento do acordar para realizar uma massagem com toque mais vitalizante do que faço à noite. Com ela ainda no berço, ou mesmo na primeira troca de fralda e de roupa. Estando de pijama, é um toque mais pulsante. Se estiver só de fralda e usar um pouco de creme, aparecem mais deslizamentos, mas num ritmo mais rápido, para um despertar alegre. E cantamos juntas: “Bom dia, bom dia, vamos acordar! Que tal uma massagem para despertar?” De qualquer forma, tanto no início como hoje, toques suaves de muito amor e carinho sempre se misturaram ao toque presente e mais firme que transmite confiança e segurança. Nesse sentido, vale trazer o que Glória Cintra comenta sobre a Massagem Suave de Contorno e Limites Corporais. “Essa massagem tem a finalidade de favorecer os processos de integração psicossomática. É indicada quando se quer dar ao paciente continência, segurança e percepção do próprio corpo, especialmente dos seus limites. Ao receber essa massagem, muitos pacientes relatam sensações de tranquilidade, harmonia e vitalidade. O trabalho é feito em consonância com o pensamento de Winnicott, no sentido de favorecer a sensação de que o psiquismo está habitando o corpo (personalização, alojamento da psique no corpo). Assim, essa massagem tem momentos de holding (segurar) e handling (manejar).” (IDEM, p. 180-181) Independente do tipo ou do ritmo do toque, as massagens em minha filha tentam acompanhar respeitosamente seu momento e suas necessidades. Como acontece também no atendimento de pacientes, sabemos que, às vezes, um único toque preciso pode ajudar de forma rápida e eficiente. Para exemplificar, recentemente ela estava resistente a querer dormir. À noite, cansada, mas repetindo a clássica frase “Mamãe, não quero dormir, não” e já engatando uma conversa ou uma música mais animada. Disse: “Eu sei, meu amor. Mas você está com muito sono, dá para ver na sua carinha, nos seus olhos. Você só não quer parar de brincar. Mas agora você descansa e depois acorda melhor para brincar mais.” Sentada com ela na poltrona, falei isso e fiz alguns toques leves entre as sobrancelhas, deslizamentos curtos com o polegar para ela “sossegar a cabecinha”. Foram necessários apenas três, em alguns segundos, para ela tombar adormecida sobre o meu peito. Na variedade de possibilidades do massagear e do lidar com Ana Paula, cabe lembrar o que Eva Reich fala sobre a auto-regulação precoce. “A auto-regulação precoce é possibilitada por um entorno acolhedor. O que significa, também, colocar limites – mas nunca com violência. E mais: a criança tem a possibilidade da livre escolha. A auto-regulação é o objetivo do trabalho terapêutico. Abraço-o à medida que nunca continuo estimulando o paciente sem sua anuência. Dessa forma é possível o desenvolvimento de um sentir-se vindo de dentro, do próprio corpo. (…) A auto-regulação é um princípio amplo, abrangente: chamo-o de democracia em todas as relações sociais, na família, na escola etc. Significa que todos, tanto os componentes de um sistema quanto os afetados por ele, têm voz em decisões coletivas.” (REICH, 1998, p. 38-39) Creio que isso só pode ser de fato compreendido e atingido com muito respeito e amor, desde o princípio. Considerações sobre a massagem no ser: a massagem do espaço potencial, o verdadeiro Self e a personalidade primária A intenção é fundamental na massagem. Isso define também o tipo e a qualidade da energia que é mobilizada. Ao mesmo tempo, em muitos momentos, creio ser necessária a presença de um espaço potencial que acolha o que quer que se apresente. Daí meu apreço, na aplicação da massagem, por uma qualidade da mente que classifico como meditativa. Ainda que não haja propriamente um desequilíbrio a ser tratado, como no caso das massagens em Ana Paula, essa qualidade da mente é bem vinda para simplesmente permitir que a energia flua livremente. O que por si só já apresenta um importantíssimo caráter preventivo. Uma de minhas formações em terapias corporais é de Massagem Meditativa Tai. Essa massagem, chamada Nuad Bo’Rarn, é considerada a parte física de um sistema vasto que é a medicina tradicional da Tailândia. Richard Gold, estudioso dessa arte, lembra que a “palavra tailandesa Nuad significa o toque realizado com o propósito de curar. A palavra Bo’Rarn, derivada do sânscrito, refere-se a algo antigo e venerado”. (GOLD, 2000, p. 9 do Prefácio) Acalmar o coração, assim acalmar a mente, e com isso proporcionar saúde ao corpo. Esse caminho é considerado fundamental nessa arte. Gold salienta que a “aplicação específica das técnicas de cura do Nuad Bo’Rarn é considerada uma forma de prática meditativa, que beneficia tanto quem recebe a massagem como quem a executa. O massoterapeuta procura trabalhar num estado elevado de consciência, concentrado e presente em cada respiração, em todos os momentos. Cada movimento, procedimento, respiração e postura é uma oportunidade para quem recebe e para quem executa a massagem atingirem a clareza e a concentração. Trabalhar com esse objetivo, nesse estado de consciência, amplia a percepção e a intuição do massoterapeuta, permitindo assim uma percepção aguçada para alterações sutis de energia e mudanças no corpo e na mente do indivíduo, causando, portanto, um efeito terapêutico profundo”. (IDEM, p. 11) Tal qual o “método da parteira”, estou ali sem que meus pensamentos interfiram ou ocupem espaço desnecessariamente. Minha presença é fundamental, e meu silêncio, carregado e carregador de sentido. Na abordagem biodinâmica, o “método da parteira” consiste numa atitude do terapeuta que engloba aspectos como receptividade (…), aceitação e amor incondicional. Isso possibilita que no paciente o “estímulo interior” possa se desenvolver e contribuir para o processo de cura. “O terapeuta deve estar separado de sua necessidade de estar ativo, de falar etc, a fim de que possa estar passivo, paciente e que possa deixar desenvolver-se o processo dinâmico curativo. O terapeuta deve simplesmente oferecer uma aceitação e um amor total para que o ‘estímulo interior’ possa se desenvolver completamente e transformar o ser do paciente” (BOYESEN, 1986, p. 102). Nas massagens em Ana Paula, não se trata de atuar sobre algum problema específico, mas do cuidado, do toque amoroso, da construção de um vínculo saudável. Trata-se também de propiciar a prevenção pelo fluir mais livre da energia e pelo respeito às necessidades físicas, emocionais e energéticas de cada momento. Em um nível precoce de atuação, acredito que transitar por esse espaço potencial é também permitir o gesto espontâneo a que se refere Winnicott. Cito novamente Gold. “Essa qualidade de intercâmbio humano e de consciência ajuda a criar o espaço e a liberdade necessários ao crescimento e às novas percepções, para haver a harmonia, a graça e o fluxo da energia universal, essenciais para a cura” (GOLD, 2000, p. 11). No caso, melhor que “cura”, diria que para a constituição do verdadeiro self, segundo Winnicott. Ou a manifestação da personalidade primária, segundo Boyesen. Para Winnicott, “a função materna essencial possibilita à mãe pressentir as expectativas e necessidades mais precoces de seu bebê, e a torna pessoalmente satisfeita sentir o lactente à vontade. É por causa dessa identificação com o bebê que ela sabe como protegê-lo, de modo que ele comece por existir e não por reagir. Aí se situa a origem do self verdadeiro que não pode se tornar uma realidade sem o relacionamento especializado da mãe, o qual pode ser descrito com uma palavra comum: devoção. (…) No estágio inicial o self verdadeiro é a posição teórica de onde vem o gesto espontâneo e a ideia pessoal. O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real. Enquanto o self verdadeiro é sentido como real, a existência do falso self resulta em uma sensação de irrealidade e em um sentimento de futilidade. (…) O self verdadeiro provém da vitalidade dos tecidos corporais e das funções do corpo, incluindo a ação do coração e a respiração. Está intimamente ligado à ideia de processo primário e é, de início, essencialmente não-reativo a estímulos externos, mas primário. Não há sentido na formulação da ideia do self verdadeiro, exceto com o propósito de tentar compreender o falso self, porque ele não faz mais do que reunir os pormenores da experiência de viver.” (WINNICOTT, , p. 135-136) A personalidade primária é o self verdadeiro da pessoa, seu “núcleo vivo”, sua verdadeira natureza. Apresenta uma força vital positiva e impulsos que clamam por se expressar e se expandir. Para Boyesen, ela é “o Máximo Potencial Humano (de que temos conhecimento)”. (BOYESEN, 1983) O trabalho da Psicologia Biodinâmica visa que a pessoa entre em contato com e expresse os aspectos primários de sua personalidade: “unificá-los de maneira que a pessoa possa se libertar de suas pressões e medos e caminhar construtivamente, passo a passo, em direção a sua plenitude e satisfação. (…) Quando falo de uma Personalidade Primária, refiro-me a uma pessoa que não retirou ou encarcerou a sua Energia Vital, e “correntes energéticas” associadas. (…) É uma pessoa que está em contato com a circulação de sua “libido”; com o prazer derivado de sentir-se pertencente a seu meio ambiente e obtido através de sua participação em qualquer situação; e que não trairá nem negará, a si mesma ou aos outros, a existência disto dentro dela. Existe nela uma alegria natural, uma euforia, que também é prática e pragmática. (…) A Personalidade Primária é curiosa; não tem medo do novo. É também flexível, e pode lidar com o inesperado; não fica na defensiva, é capaz de se proteger. Existe nela segurança básica, estabilidade e integridade. Esta pessoa pode dar e receber abertamente. (…) A Personalidade Primária é aquela que não desenvolveu a couraça do caráter nos músculos e tecidos do corpo; assim, cada célula é suprida de energia que pode fluir livremente. A Personalidade Primária tem o que chamo de ‘bem-estar independente’ (…)”. (IDEM) Glória Cintra lembra que “Gerda afirma que a pessoa que vive sua personalidade primária está em contato com sua circulação libidinal. As correntes energéticas do corpo fluem livremente, permitindo a manifestação dos impulsos internos originais e promovendo a atualização dos potenciais humanos individuais. A personalidade primária é espontânea, criativa, confiante, auto-afirmativa, não tem dificuldades para dizer sim ou não, e tende para a auto-regulação, a auto-realização, a satisfação e a plenitude. É independente e possui a capacidade de estar só quando necessário e desejado. É capaz de expressar suas emoções sem culpa, de dar e receber, de amar, e de viver sua sexualidade de forma integrada. Vive em contato com seu eu instintual e espiritual. Tem prazer em viver, sentindo-se pertencente ao seu meio ambiente. (…) Ambos, Gerda e Winnicott, têm uma visão bastante positiva do ser humano, acreditando que existe algo de intrinsecamente belo dentro de cada pessoa, denominando isso personalidade primária ou verdadeiro self. A ênfase do trabalho de ambos não é sobre a patologia, mas sobre a possibilidade de atualização dos potenciais humanos e de amadurecimento emocional através do processo terapêutico.” (CINTRA, 2000) Ana Paula, um ser cuidadoso e amoroso Na relação que se constrói e se transforma a cada dia, o amor é a raiz que se mantém firme, forte e constante. Em várias ocasiões, com minha pequena ainda nos braços, antes de colocá-la no berço, disse a ela o que me vem lá de dentro. “Filha, leva com você vida afora esse sentimento. O que eu compartilho com você, esse amor imenso, esse carinho, essa sensação de proteção, de segurança, de bem estar, de paz. Que isso faça diferença positivamente nas suas relações com as pessoas e com as situações. Que te ajude a ser feliz.” É divertido, gratificante e emocionante perceber que a prática da massagem pode se tornar um hábito para ela. Já vi minha filha massagear as avós e as bonecas. Uma experiência tão prazeirosa sendo repetida em tom de brincadeira. Uma troca que era nossa passada adiante, com outras pessoas. E atualmente, em alguns momentos, ela mesma me pede um pouco de massagem. “Ah, que gostoso!”, diz ela enquanto aproveita, com fisionomia feliz e gestual leve. Vejo Ana Paula sendo carinhosa com outras pessoas, com suas bonecas e bichos de pelúcia, com as flores que encontra pelos passeios. Isso começou cedo, entre 1 ano e 1 ano e meio de idade. Do nada, vem um “Vô fazê um carinho… Vô dá um beijinho…” E, no ato em si, o olhar é doce, suave e satisfeito. Em ocasiões em que bato um cotovelo, ou me queimo numa panela, ela sempre responde prontamente “Dexa eu fazê um carinho”, e lá vem uma massagem com mãos diminutas e atentas. Muito além da simples imitação, o gesto é repetido porque foi vivenciado, internalizado e tornou-se natural para ela. A partir de 1 ano e meio até hoje, também tem me encantado seu jeito de perguntar “Tá tudo bem com você, mamãe?” A entonação e o foco no olhar reafirmam que ela estabelece comigo um contato profundo. Em seguida, vem um abraço carinhoso e presente. Eliana Pommé comenta que “o primeiro ato educativo da história de uma pessoa acontece no princípio da vida, na relação mãe-bebê. ‘Se as crianças do futuro nascerem e crescerem em ambientes acolhedores terão mais possibilidades de amadurecer e tornarem-se adultos auto-regulados, provavelmente mais felizes’ (Reich, 1983). (…) A forma como nascemos e somos recebidos no mundo influencia a direção que nossa história pessoal pode tomar. A qualidade do vínculo mãe-filho imprime marcas no desenvolvimento da personalidade de uma pessoa, e também nas relações que ela estabelece em seu cotidiano e com o mundo.” (POMMÉ, 2014, p. 92) O Cuidado Cuidar de Ana Paula sempre será uma missão, assumida com coração, mente, corpo, energia e espírito. Quer ela esteja perto ou longe. Quer seja com elogio, com abraço, com voz doce ou mais dura, será um compromisso, a preservação de um pacto firmado muito antes de ela sequer ser concebida. Gosto muito de um livro de Leonardo Boff chamado “Saber cuidar, ética do humano, compaixão pela terra”. Adquirido numa visita descompromissada a um sebo em 2004, volta e meia ele recebe minha atenção. Reafirma valores e conceitos que considero fundamentais. Em muitos trechos me reconheço e sinto me reencontrar com meus pares de coração e de pensamento. Aqui cabe falar basicamente sobre a fábula-mito sobre a qual se desdobra todo o restante da obra: a Fábula-mito do Cuidado. “Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: ‘Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá , pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que há entre vocês acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil.’ ” (BOFF, 1999, p. 46) O texto é do poeta, antes escravo, Caio Júlio Higino, que consta ter vivido entre os anos 69 a.C. e 10 d.C. É a partir desse texto que Boff vai dizer que o cuidado constitui a “verdadeira essência do ser humano.” Boff indica que, na fábula-mito de Higino, o Cuidado “não é visto como uma divindade, mas como uma personificação de um modo-de-ser fundamental”. (…) O cuidado é tão essencial que é anterior ao espírito infundido por Júpiter e ao corpo fornecido pela Terra. Portanto, a concepção do ser humano composto de espírito-corpo não é originária. A fábula diz: ‘o Cuidado foi quem primeiro moldou o ser humano’. O cuidado se encontra antes, é um a priori ontológico, está na origem da existência do ser humano. E essa origem não é apenas um começo temporal. A origem tem um sentido filosófico de fonte donde brota permanentemente o ser. Portanto, significa que o cuidado constitui, na existência humana, uma energia que jorra ininterruptamente em cada momento e circunstância. Cuidado é aquela força originante que continuamente faz surgir o ser humano. Sem ela, ele continuaria sendo apenas uma porção de argila como qualquer outra à margem do rio, ou um espírito angelical desencarnado e fora do tempo histórico. Foi com cuidado que ‘Cuidado’ moldou o ser humano. Empenhou aí dedicação, ternura, devoção, sentimento e coração. E com isso criou responsabilidades e fez surgir a preocupação com o ser que ele plasmou. Essas dimensões, verdadeiros princípios constituintes, entraram na composição do ser humano. Viraram carne e sangue. Sem tais dimensões, o ser humano jamais seria humano. Por isso, a fábula-mito de Higino termina enfatizando que cuidado acompanhará o ser humano ao largo de toda a sua vida, ao longo de todo o seu percurso temporal no mundo.” (IDEM, p. 101) É interessante ver que essas ideias podem ser relacionadas diretamente à importância do cuidado primordial ao bebê tantas vezes comentada por Eva Reich, Winnicott e pelos autores biodinâmicos citados ao longo deste trabalho. Além disso, pelo lado de quem cuida, meu percurso temporal nessa existência me mostra, há tempos, que exercer esse cuidado é vocação. Por isso mesmo formei-me psicóloga e em tantos cursos de terapias naturais que, de modo geral, visam o cuidado do outro. Além disso, optei pela maternidade, e é aí que essa dimensão do cuidar emerge em sua plenitude. Mesmo antes de engravidar, o verbo cuidar sempre esteve atrelado ao verbo massagear. Verbo e ação. Com a vinda de Ana Paula, muitos se entrelaçam: gestar, tocar, maternar, cansar, sofrer, amar, cuidar, viver… Para encerrar, por ora…Abril de 2013. Grávida de cinco meses, em pleno workshop biodinâmico de Alberto D´Enjoy, sonho que alguma força me conduz aos limites mais altos do cosmos. Uma voz firme, vinda de dentro e de fora, grita: “Vai!”. Sensação de queda. Acordo ofegante, um pouco assustada e muito emocionada. Abraço minha barriga, Ana Paula e eu mesma. Digo baixinho em certeza que ecoa por todo o meu corpo: “Filha, não fica com medo… Nascer não é cair no abismo. É se entregar, se entregar para a vida…” 28 de agosto de 2013, 10 horas e 10 minutos. Das entranhas, nasce a filha. Nasce a mãe. Renasço eu. Eu amo, tu amas, nós amamos. Eu cuido, tu cuidas, nós cuidamos. Nos amamos e nos cuidamos. Jamais serei a mesma.

“E este segredo estava bem ali. Feito, simplesmente, de amor e luz, de silêncio e gravidade.” (LEBOYER, 1995, p.152)

Referências bibliográficas: ALEXANDRE, Andrezza Franzoni. O corpo na preparação para o parto: a psicoprofilaxia na gestação. In: ENCONTRO PARANAENSE, CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOTERAPIAS CORPORAIS. XV, X, 2010. Anais. Curitiba: Centro Reichiano, 2010, CD-ROM. [ISBN – 978-85-87691-18-7]. Disponível em: www.centroreichiano.com.br/artigos. AMABIS, Dulce. “Por que massagear bebês?”. In: REGO, Ricardo “Guará” Amaral; PORTO, Dinorah Poletto; AMABIS, Dulce C.; FORLANI, Maria; MARTINS, Sandra Ferreira (ORG.). O toque na psicoterapia: massagem biodinâmica. Petrópolis: KBR, 2014. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. BOYESEN, Gerda. Entre psique e soma: introdução à psicologia biodinâmica. São Paulo: Summus, 1986. BOYESEN, Gerda. Texto do IBPB “O que é personalidade primária”. In: Cadernos de Biodinâmica 3. São Paulo: Summus Editorial, 1983. CINTRA, Glória. “Gerda Boyesen, a mãe suficientemente boa descrita por Winnicott. Trabalho apresentado no II Congresso Brasileiro/V Encontro Paranaense de Psicoterapias Corporais, realizado em Curitiba (PR) em abril/maio de 2000. São Paulo: Revista Reichiana, número 11, 2002. Disponível em: www.massagembiodinamica.com.br CINTRA, Glória. “Massagem Suave de Contorno e Limites Corporais”. In: REGO, Ricardo “Guará” Amaral; PORTO, Dinorah Poletto; AMABIS, Dulce C.; FORLANI, Maria; MARTINS, Sandra Ferreira (ORG.). O toque na psicoterapia: massagem biodinâmica. Petrópolis: KBR, 2014. Disponível em: www.massagembiodinamica.com.br. GOLD, Richard. Massagem tai: uma técnica médica tradicional. São Paulo: Manole, 2000. IBPB “O que é Psicologia biodinâmica?” (texto). In: Cadernos de Psicologia Biodinâmica 1. São Paulo: Summus, 1983. LEBOYER, Frederick. Shantala: uma arte tradicional – massagem para bebês. São Paulo: Ground, 1995. LEE, Martin; LEE, Emily; JOHNSTONE, Joan. T´ai chi ch´uan para a saúde. São Paulo: Pensamento, 1989. POMMÉ, Eliana. “Massagem na gravidez: gestando mães”. In: REGO, Ricardo “Guará” Amaral; PORTO, Dinorah Poletto; AMABIS, Dulce C.; FORLANI, Maria; MARTINS, Sandra Ferreira (ORG.). O toque na psicoterapia: massagem biodinâmica. Petrópolis: KBR, 2014. REGO, Ricardo “Guará” Amaral; PORTO, Dinorah Poletto; AMABIS, Dulce C.; FORLANI, Maria; MARTINS, Sandra Ferreira (ORG.). O toque na psicoterapia: massagem biodinâmica. Petrópolis: KBR, 2014. REICH, Eva; ZORNÀNSZKY, Eszter. Energia vital pela bioenergética suave. São Paulo: Summus, 1998. TRINDADE, André. Gestos de cuidado, gestos de amor: orientações sobre o desenvolvimento do bebê. São Paulo: Summus, 2007. WINNICOTT, Donald W. “Distorções do ego em termos de verdadeiro e falso self (1960)”. In: Winnicott, D. W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

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