Contornos do trabalho corporal: O setting na massagem biodinâmica

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Andrea de Arruda Botelho-Borges

A Personalidade Primária avançará à procura de expressão e realização, desde que o terapeuta e o cliente forneçam espaço e encorajamento suficientes.

Clover Southwell

Sempre que falamos em setting ou enquadre, está em pauta um lugar ¬e seus contornos – tanto do ponto de vista físico como emocional e simbólico. Para que seja possível um trabalho que visa ao incremento da saúde física e psíquica dos pacientes, num tratamento biodinâmico, é necessário estabelecer um lugar que acolhe. Muitas vezes não dispomos das condições concretas ideais, mas mesmo assim é possível realizar um bom trabalho. Isso ocorre porque o ambiente emocional é mais importante do que o ambiente físico. Além disso, o terapeuta em si condensa ambas as dimensões, física e emocional: seu gesto e seu olhar são também lugar, e a pergunta que se coloca a cada entrevista é se esse lugar pode ser morada para aquele indivíduo específico que vem em busca de ajuda terapêutica. Massagear alguém é “tê-lo nas mãos” e, por analogia, nos braços – algo que remete diretamente ao regaço materno. O bebê no colo da mãe é o grande paradigma da psicanálise winnicottiana, uma referência teórica fundamental para os terapeutas biodinâmicos no Brasil, devido à existência de diversos pontos de contato entre as duas abordagens. Por exemplo, para ambas é questão-chave a crença no potencial inerente ao ser humano para o desenvolvimento. Para que esse potencial se realize, no entanto, é necessário um ambiente sustentador (holding environment). Daí vem o tipo de intervenção terapêutica não interpretativa conhecido na psicanálise winnicottiana como holding ou manejo de setting. É importante lembrar que o toque remete à primeira forma de amor que conhecemos: O holding inclui especialmente o holding físico do lactente, que é uma forma de amar. É possivelmente a única forma em que uma mãe pode demonstrar ao lactente o seu amor. Há aquelas que podem suster um lactente e as que não podem; as últimas produzem rapidamente no lactente uma sensação de insegurança e um chorar nervoso. (WINNICOTT, 1983, p. 48) O espaço onde se dá o atendimento é vivido pelo paciente como extensão do corpo do terapeuta. É desejável, portanto, que as condições ambientais estejam em ressonância com a capacidade do terapeuta de oferecer sustentação emocional ao devir em questão. Assim, embora seja mais relevante o espaço simbólico e emocional que se constela entre paciente e terapeuta, a importância do ambiente físico não deve ser desprezada. Quando se trata de um atendimento de massagem, o aspecto concreto da relação fica especialmente presente em algumas sutilezas que comunicam cuidado, e isso é percebido, registrado e incorporado no tratamento. O terapeuta mostra atenção com o conforto do paciente usando lençóis macios, mantendo o ambiente limpo, eventualmente aromatizado, ventilado, aquecido no inverno e refrescado no verão. É aconselhável sugerir uma ida ao banheiro antes das sessões. Faz diferença também que o próprio terapeuta esteja confortável, atento a sua postura e respiração, usando roupas que não atrapalhem as manobras, por serem muito justas ou terem mangas largas, por exemplo. Contrato: o que se combina na primeira sessão Mais do que falar sobre a frequência (semanal, quinzenal, mensal) das sessões, horários e honorários, o contrato é uma conversa sobre as expectativas do paciente em relação ao tratamento e como o terapeuta acredita que possa ajudá-lo. Ou seja, o momento do contrato é aquele em que ambos – paciente e terapeuta – se posicionam em relação ao percurso que está prestes a se iniciar. É importante que o terapeuta fale sobre um dos princípios básicos da massagem biodinâmica: o da autorregulação, evidenciando assim que o tratamento com massagem é um processo no qual algo endógeno será mobilizado no sentido da cura ou do bem-estar, e não uma técnica aplicada “de fora para dentro” que possuísse, em si mesma, as qualidades capazes de promover transformações. Algo que talvez esteja adormecido será despertado, ou, mesmo não estando adormecido, será encorajado, alimentado, fomentado – e esse algo é a capacidade do organismo de recuperar um estado de equilíbrio após uma experiência de estresse. Enfatizando esse aspecto da visão biodinâmica, convidamos o paciente a participar do processo de maneira ativa e responsável. É interessante advertir o paciente de que o percurso pode incluir momentos e até fases de extremo desconforto, embora o objetivo, a longo prazo, seja melhorar a saúde e o bem-estar. Pois muitas vezes sob uma tensão crônica está uma primeira camada de rigidez se dissolve. Psicoterapia ou “só massagem” Diferenciar um tratamento exclusivo com massagem de um processo de análise biodinâmica também é aconselhável, evidenciando-se os contornos de uma e outra situação. Embora a massagem biodinâmica seja em si transformadora, pelo próprio fato de fomentar a autorregulação, num processo analítico dispomos de outros recursos para caminhar com o paciente no sentido da elaboração de seus conflitos. A primeira dessas diferenças é que, num contrato de massagem, todas as sessões começarão e terminarão na maca, mesa ou colchonete de massagem. Já numa sessão de análise, a pessoa pode começar numa poltrona, mais tarde estar de pé, em movimento, em algum momento ir para a maca… E pode passar várias sessões sem sequer ir para a maca. A própria fala é manejada de forma diferente em cada um desses dois enquadres: numa sessão de massagem, ela será útil para nortear o terapeuta na busca do toque mais adequado, que favoreça, por exemplo, a abertura do peristaltismo. Já numa sessão de psicoterapia, a fala se insere no amplo contexto do desenvolvimento de um processo, no qual se tece um diálogo – verbal e não verbal – acerca do funcionamento psíquico do paciente. O intuito é que ele não apenas se torne “esclarecido” sobre sua neurose, mas possa também situar-se e reposicionar-se em relação a si mesmo e ao outro. Esse processo se desenrola no contexto de uma experiência viva e real com alguém que se abre para ouvi-lo. Os diversos caminhos através do labirinto da terapia são ostensivamente bastante difíceis, ou mesmo inúteis, a menos que um “fio condutor” seja encontrado do começo ao fim. A pessoa pode então ser colocada em contato com as razões pelas quais suas “somatizações” ou defesas funcionam para ela. (…) O fio condutor é a chave para a fechadura do padrão neurótico de cada pessoa. O terapeuta pode assinalar a possibilidade de segui-lo através do labirinto de atitudes e emoções aparentemente incompatíveis dentro do cliente. Contudo, acompanhar esse fio é um trabalho do próprio cliente. (BOYESEN, 1983, p. 24) Pode ocorrer que um contrato inicialmente estabelecido como sendo de massagem em algum momento se transforme em contrato analítico. O terapeuta deve estar atento às falas do paciente e pontuar a ele se perceber que começa a surgir a demanda de abordar diretamente conflitos psíquicos para elaborá-los verbalmente ou por meio de outros procedimentos. “Com que roupa?” A maior parte das manobras em massagem é feita com maior desenvoltura se o paciente estiver vestindo apenas roupas íntimas, de forma que o toque seja feito diretamente sobre a pele. No entanto, algumas pessoas não se sentem confortáveis seminuas, e é preciso usar de flexibilidade e criatividade para lidar com a questão, principalmente procurando compreender caso a caso o significado dessa restrição. Num primeiro momento, são de grande utilidade a massagem das extremidades, bem como outras manobras que podem ser realizadas sobre a roupa. Ser tocado nas mãos, pés, rosto, pescoço e cabeça é em geral sentido como menos invasivo do que receber massagem nas regiões que geralmente estão cobertas pelas roupas, como barriga, peito, costas, coxas. À medida que for ficando mais à vontade e ganhando confiança no terapeuta, eventualmente o paciente tomará a iniciativa de expor porções maiores de sua pele ao toque. Ou não – e isso não significa que tal pessoa não possa se beneficiar da massagem. O próprio fato de o terapeuta poder acolher sua inibição pode ser extremamente benéfico, pois na visão biodinâmica o processo de cura se inicia sempre com um “não movimento”, que não deve ser confundido com passividade: é uma decisão ativa de acolher. A partir dela é que se pode plantar. E, se tudo correr bem, colher. Bibliografia:

  • BOYESEN, E. A essência da terapia. In: Cadernos de Psicologia Biodinâmica. São Paulo: Summus, 1983. V. 2, p. 23-31.
  • SOUTHWELL, C. Pressão organísmica interna. Cadernos de Psicologia Biodinâmica. São Paulo: Summus, 1983. V. 1, p. 14-21.
  • WINNICOTT, D. W. Teoria do relacionamento paterno-infantil (1960). In: O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. p.
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